segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Mulheres e o Punho Invisível: Como a Violência Contra as Mulheres Aplica a Lei Não Escrita do Patriarcado

Mulheres e o Punho Invisível
Como a Violência Contra as Mulheres Aplica a Lei Não Escrita do Patriarcado

por Charles Johnson

"Pois o Direito Comum da Inglaterra não é nada mais do que o Costume Comum do Reino: e um Costume que obteve a força de Lei é dito ser Jus non scriptum; pois ele não pode ser feito ou criado nem pela Constituição, nem pelo Parlamento, que são Atos reduzidos à escrita, e são sempre matéria de Registro; mas sendo apenas matéria de fato e consistindo de uso e prática, não pode ser registrado em nenhum lugar além da memória do povo... e, então, por iteração frequente e multiplicação do Ato, se torna um Costume; e, sendo continuado sem interrupção por tempo imemorial, ele obtém a força de uma Lei." (John Davies, Irish Reports)

"A multidão dos homens [sic] é dirigida, em suas instituições e medidas, pelas circunstâncias em que é colocada; e raramente se desviará de seu caminho, para seguir o plano de qualquer arquiteto individual. Cada passo e cada movimento da multidão, mesmo no que se denominam idades esclarecidas, são tomados com igual cegueira sobre o futuro, e nações tropeçam em instituições que são, de fato, o resultado da ação humana, mas não a execução de qualquer desígnio humano." (Adam Ferguson, "An Essay on the History of Civil Society")

"Ao contrário das maneiras em que os homens sistematicamente escravizam, violam, desumanizam e exterminam outros homens, que expressam desigualdades políticas entre os homens, as formas de domínio dos homens sobre as mulheres foram realizadas socialmente assim como economicamente antes da operação da lei, sem atos expressos do estado, frequentemente em contextos íntimos, como a vida cotidiana." (Catharine MacKinnon, Toward a Feminist Theory of the State)

I. Cultura do Estupro e a Teoria Feminista Radical

Teorias sociais feministas mantém que sociedades históricas e contemporâneas são marcadas pela desigualdade sexual generalizada - por privilégios sistêmicos para homens e ônus sistêmicos infligidos sobre as mulheres. Feministas radicais, em particular, mantém que a desigualdade sexual não é só generalizada, mas profundamente enraizada e autossustentável - o sexismo casual, os padrões duplos misóginos, as disparidades de gênero em salários e posição social, a exploração do trabalho não remunerado de esposas e mães, os ataques políticos à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres e outros danos infligidos sobre as mulheres deveriam todos ser compreendidos como componentes interligados num sistema de poder de classes (normalmente chamado de "patriarcado" ou "supremacia masculina"). A maior parte das feministas radicais se foca especialmente de perto no papel da generalizada violência masculina contra as mulheres como uma fonte fundamental, uma expressão clara, e um reforço constante, do poder masculino sistêmico sobre as mulheres1.
As teorias feministas radicais de fato mencionam e de fato tentam explicar formas de violência massiva contra as mulheres que foram organizadas e dirigidas centralmente por autoridades políticas masculinas - tais como as letais leis contra o aborto, o uso do estupro como arma de guerra e a tortura e execução em massa de mulheres durante a caça às bruxas na Europa no início da idade moderna. Mas elas frequentemente se concentram, em especial, nas formas generalizadas mas difusas de violência, tais como o estupro, a violência doméstica, o assédio e outras formas de intimidação e coerção interpessoal, que são tipicamente infligidas a indivíduos mulheres e homens - íntimos, famíliares, conhecidos ou estranhos - por seus próprios motivos e na vida "privada", não na esfera "pública" de políticas governamentais ou campanhas centralmente coordenadas. Relatos feministas sobre essas formas de violência individualizada têm pelo menos três características chave em comum. Primeiro, eles caracterizam a violência como generalizada em vez de anormal, citando, a princípio, as experiências compartilhadas, descobertas em grupos de conscientização de mulheres e, mais tarde, em pesquisas empíricas que confirmam que um a cada 13 homens nos E.U.A. tentaram ou cometeram estupro2, que uma a cada seis mulheres foram estupradas em sua vida3 e que aproximadamente uma em cada quatro mulheres foram estupradas ou fisicamente agredidas por seu marido, namorado ou encontro4. Segundo, eles caracterizam a violência generalizada como sistematicamente estruturadas por sexo (esmagadoramente cometidas por homens contra mulheres e raramente vice-versa). Terceiro, eles argumentam que a violência masculina sistêmica deve ser entendida como estrutural ou política - além dos danos físicos e psicológicos infligidos às vítimas individuais da violência, a violência tem efeitos dominó adicionais e poderosos para a liberdade social e para o bem-estar material de todas as mulheres. Para insistir nesse ponto e para protestar contra a tendência comum de anular a violência contra as mulheres escondendo-a na esfera "privada", como um problema meramente "pessoal", as feministas radicais frequentemente desafiam a dicotomia comum entre as esferas "privada" e "pública", frequentemente citando a declaração famosa de Carol Hanisch de que "o pessoal é político"5.

II. Susan Brownmiller: Mirmidões e Más Interpretações

Teorias feministas radicais sobre a violência sexual também possuem uma quarta característica em comum: elas são comumente mal-entendidas ou mesmo distorcidas por seus críticos. Como um exemplo de todos os quatro pontos, considere a "teoria dos Mirmidões" de Susan Brownmiller sobre o estupro por desconhecidos, como apresentada em Against Our Will (1975), sua discussão histórica e teórica pioneira do estupro enquanto força política. No final do primeiro capítulo, Brownmiller celebremente escreve que:

A descoberta do homem que sua genitália poderia servir como uma arma para gerar medo deve se classificar como uma das mais importantes descobertas dos tempos pré-históricos, junto com o uso do fogo e do primeiro machado de pedra bruta. Dos tempos pré-históricos ao presente, creio eu, o estupro tem desempenhado uma função crítica. Não é nada mais, nada menos do que um processo consciente de intimidação pelo qual todos os homens mantêm todas as mulheres num estado de medo. (14-15)

Críticos antifeministas têm batido em Brownmiller por supostamente caluniar todos os homens como estupradores6 (ela não disse isso realmente; o verbo na frase não é "estuprar", mas "manter... em um estado de medo") ou por promover uma teoria essencialista ou determinista sobre o estupro, na qual suas observações sobre "A capacidade estrutural do homem para estuprar" são tomadas como expressivas não meramente de simples probabilidades, mas de algum fato profundo, talvez mesmo inevitável, sobre a biologia do macho humano7. Ambos os tipos de leitura são difíceis de reconciliar com qualquer leitura do texto que vá além da página 15. No último capítulo do livro, pode-se encontrar Brownmiller escrevendo, tão claro como se poderia, que "A inserção do pênis (uma frase descritiva menos semanticamente carregada do que penetração, eu acho) não é, em si mesma, apesar do que muitos homens pensam, um ato de dominância masculina. A verdadeira razão para a eterna confusão da lei quanto ao que constitui um ato de estupro e o que constitui um ato de relação sexual mútua é a suposição cultural subjacente de que é o papel natural masculino proceder agressivamente em direção a meta declarada, enquanto o papel natural feminino é 'resistir' ou 'submeter-se'" (384-385, ênfase adicionada); a suposição cultural subjacente é, presumivelmente, uma suposição cultural que ela acredita ser possível e desejável mudar. Talvez mais importante para nossos propósitos analíticos, no Capítulo 6, "The Police-Blotter Rapist" ("O Estuprador de Registro Policial", em tradução livre), Brownmiller discute a realidade criminológica comum por trás dos mitos sensacionalistas sobre o estereotípico estuprador desconhecido e os efeitos de suas ações sobre as vidas cotidianas das mulheres:

O estupro é um ato lento, brusco e repulsivo cometido por crianças punk, seus primos e irmãos mais velhos, não por playboys charmosos, espirituosos, inescrupulosos, heroicos e sensuais; ou por almas tímidas privadas de uma expressão sexual normal ou por super-homens possuídos de luxúria incontrolável. E, ainda assim, sobre os ombros desses moços imprudentes, previsíveis, insensíveis e propensos à violência repousa um fardo milenar que equivale a uma missão histórica: a perpetuação do domínio masculino sobre as mulheres pela força.

O guerreiro Grego Aquiles usava um enxame de homens descendentes de formigas, os Mirmidões, para fazer sua vontade enquanto capangas contratados em batalha. Leais e sem objeções, os Mirmidões serviam bem a seu mestre, atuando em anonimato como agentes efetivos do terror. Os estupradores dos registros policiais, em um sentido muito real, realizam uma função de mirmidão para todos os homens em nossa sociedade. Encobertos de mitos que obscurecem suas identidades, eles, também, atuam como agentes anônimos do terror. Embora sejam eles os que fazem o trabalho sujo, o atentado de verdade, é para outros homens, seus superiores em classe e posição, que os benefícios duradouros de seu mal simplório sempre advieram.

Um mundo sem estupradores seria um mundo em que as mulheres se moveriam livremente, sem medo dos homens. Que alguns homens estuprem fornece uma ameaça suficiente para manter todas as mulheres num estado constante de intimidação, para sempre cientes do conhecimento de que a ferramenta biológica deve ser mantida em reverência, pois ela pode se tornar uma arma com rapidez súbita, carregada de intenções prejudiciais. Mirmidões para a causa da dominância masculina, os estupradores de registros policiais têm realizado bem seu dever, tão bem, na realidade, que o real significado de seu ato tem passado largamente despercebido. Em vez de aberrantes da sociedade ou corrompedores da pureza, os homens que cometem estupro têm servido, com efeito, como tropas de choque masculinas na linha de frente, guerrilhas terroristas na batalha mais longamente sustentada que o mundo jamais conheceu (208-209).

Brownmiller não retrata, então, todos os homens como estupradores ou conduzidos biologicamente a estuprar; um aparato importante em sua teoria se volta aos efeitos estruturais que as ações dos estupradores têm para os homens que não estupram. Quando ela diz que o estupro é um processo consciente de intimidação pelo qual todos os homens mantêm todas as mulheres num estado de medo, ela tem que ser entendida como afirmando não que todos os homens estupram, mas sim que a prática do estupro por alguns homens atua para dar a todos os homens uma posição de poder sobre as mulheres. Esse entendimento corrigido ainda pode ser contestado. Muitos críticos se voltam dos efeitos estruturais para os motivos do estuprador, sugerindo que, uma vez que a maior parte dos estupradores não age sobre qualquer plano grandioso de manter o controle patriarcal, mas sim sobre desejos concretos, pessoais (de qualquer fonte), não faz nenhum sentido alegar que eles agem para favorecer os interesses dos homens enquanto classe. Por outro lado, os críticos frequentemente acusam Brownmiller de ignorar o quanto homens individuais, assim como as instituições públicas dominadas por homens, condenam o estupro (por exemplo, ao fazer e aplicar leis contra ele), dessa maneira, presumivelmente, demonstrando que o estupro, não importa o quão comum e devastador, deve ser entendido como um crime privado, repudiado pela autoridade política existente e cometido por homens isolados por suas próprias razões.
Ambas as abordagens respondem a Brownmiller como se ela tivesse proposto um tipo de teoria da conspiração para explicar a omnipresença da violência masculina - como quando Michel Novak alegou que Brownmiller vê a heterossexualidade como uma "máfia de extorsão" auto-consciente8 - em que os homens todos se juntam, de alguma maneira, e as tropas de choque anônimas que cometem o estupro conscientemente colaboram com os homens mais respeitáveis, que ganham poder estrutural sobre as mulheres, a fim de promover um plano compartilhado para reprimir as mulheres. Se essa fosse a proposta de Brownmiller, então certamente seria suficiente mostrar que a maioria dos homens não está em nenhum grande plano do tipo. Não é a proposta de Brownmiller; ela nunca diz qualquer coisa do tipo e, na verdade, explicitamente declara que o papel do estupro de "registro policial" em manter a supremacia masculina "tem passado largamente despercebido", inclusive entre os homens. Tais respostas a Brownmiller revelam uma falha exegética - elas leem no texto uma alegação que Brownmiller nunca faz. Mas, mais do que isso, elas revelam uma falha conceitual: uma falha em ver o que Brownmiller está dizendo, porque você não tem as lentes conceituais corretas através das quais ver, ou entender, o que, teoricamente falando, está acontecendo. Esta ou aquela má leitura podem ser despachada, mas a fonte de cada má leitura não pode ser evitada com leituras mais cuidadosas da ipsissima verba. O que é necessário é uma tentativa de uma reconstrução mais caridosa.
Ao contrário dos mal-entendidos canônicos das teorias feministas sobre a violência masculina, eu vou argumentar que as compreensões centrais da análise feminista radical podem ser iluminadas por sua releitura à luz de uma fonte surpreendente - ao caridosamente reconstruir a teoria dos Mirmidões de Brownmiller como uma aplicação incomum, mas reconhecível, do conceito de "ordem espontânea", como desenvolvida nos trabalhos dos teóricos sociais libertários e, mais notavelmente, do economista livre-mercadista austríaco Friedrich Hayek. Rearticular a teoria de Brownmiller em termos hayekianos fornece um recurso surpreendente para a crítica feminista radical da cultura do estupro; pode também dialeticamente esclarecer e enriquecer o conceito de "ordem espontânea" no processo de aplicá-la ao problema concreto.

III. Ordem Espontânea e a Teoria Social Libertária

Abordagens libertárias na teoria social são formadas por sua preocupação central com a liberdade individual e por expectativas estritas de consentimento mútuo enquanto norma para todas as relações interpessoais e instituições sociais. A liberdade individual é compreendida como o direito de estar seguro em sua pessoa, trabalho e haveres sem interferência coercitiva - ser deixado livre para dispor delas de qualquer maneira que lhe aprouver, contanto que você não interfira forçosamente com a igual liberdade de qualquer outra pessoa de fazer suas próprias escolhas. Um acordo é entendido como consentimento genuíno somente quando todas as partes estão livres para participar ou pacificamente declinar o acordo, enquanto indivíduo, sem a ameaça de força ou fraude.
Direitos de entrada e saída e a consensualidade em instituições sociais informam tanto o interesse positivo da libertária pelo papel da sociedade civil na vida comunitária, quanto também seu interesse negativo pelo tamanho e escopo do governo. Ao passo em que teorias políticas não-libertárias frequentemente entendem o estado como um mecanismo para produzir bens positivos e serviços sociais, as libertárias tipicamente se focam nas funções militares, policiais e prisionais do governo, a fim de chamar atenção aos meios negativos pelos quais os estado estabelece um controle hegemônico sobre os bens que fornece. Ao contrário de outras instituições sociais, os governos afirmam a prerrogativa única de usar a ameaça de força esmagadora para compelir obediência a seus planos, proibir a retirada de apoio a projetos e proibir a participação em relacionamentos (até mesmo relacionamentos pacíficos entre adultos consentidores) que o governo declara contrários a seus próprios interesses institucionais violentos9.
Uma vez que as libertárias veem os governos não como veículos para o serviço social, mas como instrumentos de violência organizada, a questão não é simplesmente que valores e prioridades uma comunidade deve expressar através do estado, mas que valores ou prioridades, se houver, podem legitimamente ser impostos sobre partes não aquiescentes por meios de força esmagadora. Enquanto teóricos libertários são comumente acusados de simplesmente desvalorizar ou desprezar a esfera dos bens públicos ou projetos sociais compartilhados, isto é simplesmente um mal entendimento do tipo de limites normativos que os libertários trazem às questões de organização social. Negar que uma tarefa deveria ser assumida pelo governo não é negar que ela deveria ser assumida pela sociedade consensual. E, embora um bem social possa ser digno de se ter em si mesmo, pode não ser digno ferir ou matar pessoas para alcançá-lo. Quando as libertárias insistem que relações políticas não consensuais são não meios aceitáveis para um dado bem social, a conclusão a ser tirada não é que deveríamos simplesmente esquecê-lo, mas sim que a hegemonia do estado sobre aquela área da vida pública precisa ser dissolvida e que a responsabilidade sobre aquele bem deveria ser devolvida e assumida pela criatividade de pessoas individuais, por convenções comunitárias de base ou pela organização social consensual.
Críticas libertárias ao planejamento econômico governamental e a ênfase na livre troca enquanto espaço para a criatividade individual e para a experimentação social inspiraram o desenvolvimento de conceitos de "ordem espontânea" como um elemento central das teorias sociais libertárias. Teorias sobre a ordem espontânea surgem de uma observação de que os fundamentos vitais da vida social humana incluem padrões de interação em larga escala e estruturas de coordenação que parecem emergir sem - e, na verdade, para além da capacidade de - qualquer planejador ou planejadores inteligentes construirem ou manipularem para fins específicos. Hayek escreve em "Kinds of Order in Society" (1964) que essas "ordens espontâneas", ao contrário das ordens que resultam de uma organização consciente de acordo com um plano pré-concebido, são "ordens de um outro tipo, que não foram planejadas pelos homens [sic] mas resultaram da ação de indivíduos sem sua intenção de criar uma tal ordem" (¶ 7); mais tarde ele caracterizou a ordem espontânea como um "ordem policêntrica" (¶ 9) em que, em vez de "se criar uma ordem concreta pré-concebida, colocando-se cada indivíduo em uma tarefa designada por uma autoridade", as ações interconectadas, mas espontâneas, de indivíduos produzem uma ordem emergente, sem colocar qualquer pessoa ou comitê de pessoas no controle, como "uma adaptação a uma multidão de circunstâncias que são conhecidas apenas pelos membros individuais mas não como um totalidade por nenhum deles".
Exemplos de ordens sociais espontâneas são familiares e estão sempre se multiplicando tanto na economia quanto na teoria social libertária; exemplos comuns incluem o ajuste de sinais de preço de mercado à escassez relativa, sob condições de livre comércio e a convergência para um meio comum de troca em economias de escambo. Similarmente, a ordem espontânea pode ser vista em trabalho no desenvolvimento original das rotas do âmbar e de outras rotas terrestres primitivas na Europa. Essa extensa rede de estradas fortemente trafegadas e economicamente vitais, que cruzavam toda a extensão da Europa antes da história escrita, nunca foi estabelecida de acordo com um trajeto pré-planejado, nem construída ou mantida por qualquer construtor de estradas10. O que aconteceu é que viajantes por entre a selva desconhecida iriam simplesmente cortar seu caminho, removendo barreiras e limpando o trajeto para seu próprio uso conforme progredissem. Uma vez limpo, o caminho seria coberto apenas lentamente; viajantes posteriores, não tendo ideia de quem eram os viajantes originais, ainda encontrariam o terreno mais plano e uma cobertura mais fina e nova ao longo da velha rota - bem mais fácil de limpar do que o terreno acidentado e a cobertura antiga fora da trilha. Então, quanto mais um caminho fosse tomado, mais atrativo ele se tornava para futuros viajantes, que por sua vez limpavam e aplainavam o caminho novamente, criando um ciclo de feedback conforme os caminhos evoluíam organicamente de trilhas de mata fechada para vias grandes e abertas. A rede de estradas em evolução era sustentada principalmente por aqueles que dependiam delas, e as estradas melhores e mais limpas naturalmente se desenvolveram ao longo das rotas com a maior necessidade local de mobilidade. Foi assim, de fato, que a maior parte das estradas foi "construída" e mantida através da maior parte da história humana, até que governos expansionistas posteriores, tais como Roma e as potências Ocidentais Europeias posteriores, acabaram com as redes espontâneas de estradas ao construir e manter suas próprias estradas, estabelecidas principalmente para deslocar exércitos de conquista e ocupação e construídas por meios de arrecadações de impostos e trabalho forçado.
Embora intimamente associada com a economia de livre mercado, não há absolutamente razão conceitual pela qual o emprego de conceitos de ordem espontânea necessite estar limitado a economias capitalistas ou tópicos estritamente econômicos11. Hayek argumenta que a atenção às ordens espontâneas é a característica distintiva de todas as ciências sociais sérias e frequentemente mencionava como exemplos a emergência e a contínua evolução das linguagens e dos sistemas humanos de escrita, que, ele observa, "possuem uma ordem que ninguém projetou deliberadamente e que temos que descobrir" através de uma ciência da linguística. Ele devota sua máxima atenção, em trabalhos posteriores, à evolução policêntrica dos princípios consuetudinários da lei comum para resolver disputas pacificamente, sem recorrer a rixas familiares ou vinganças12. Anarquistas anticapitalistas do século XIX, tais como Peter Kropotkin, frequentemente mencionavam, como ilustrações de suas teorias sobre federação consensual e harmonia social sem estado, a maneira em que as estradas de ferro Europeias conseguiam desenvolver padrões através de livre acordo para fornecer mobilidade confiável em todo o continente, cruzando diversas fronteiras políticas, apesar de nunca ter havido uma única empresa, país ou autoridade global unificada de ferrovias para agir como o "Governo Central Europeu das Ferrovias"13 ou para ditar os padrões para as centenas de equipamentos separados envolvidos. Outros exemplos proeminentes de normas comunitárias espontaneamente desenvolvidas incluem convenções que regulam o uso de terras agrícolas comuns14 e mesmo a evolução de regras comuns para o beisebol Americano15.
Nas mãos de Hayek e outros teóricos sociais libertários, o conceito de "ordem espontânea" é empregado não somente como uma alternativa explicativa para ordens monocêntricas e "construtivas" e para o planejamento governamental, mas também como um ideal normativo alternativo. Dessa maneira, em suas contribuições para o debate do cálculo socialista e suas respostas às preocupações marxistas e fabianas sobre a "anarquia social de produção", Hayek invocava a ordem espontânea para argumentar que uma ordem social positiva pode emergir sem uma "regulação social" deliberada e que a produção sem controle centralizado não precisa nem ser cega, nem destrutiva, nem caótica16 - que, na verdade, indivíduos comuns, agindo sobre o conhecimento disperso incorporado nos sinais de preço, poderiam descobrir oportunidades, antecipar necessidades futuras, corrigir erros alocativos e se adaptar às condições variáveis muito além da capacidade mesmo das mais abrangentes estatísticas agregadas ou do planejador ou regulador central mais bem intencionado. Trocando as marchas do conhecimento da produção para a produção de conhecimento, um exemplo cada vez mais popular com os jovens hoje em dia é o crescimento explosivo, o refinamento e o sucesso dos sistemas de conhecimento e comunicação em geral da Internet e da Wikipedia em particular17 - um projeto que foi diretamente inspirado pelas observações de Hayek sobre conhecimento local disperso em "The Uses of Knowledge in Society"18 e que depende de contribuições dispersas, do consenso emergente e das implementações policêntricas de normas comunitárias evolutivas para informar e moldar seus artigos. Em menos de uma década, a Wikipédia se tornou a maior e mais bem sucedida enciclopédia apesar de - ou melhor, precisamente porque - seu desenvolvimento é direcionado pela "anarquia social" de contribuições e iniciativa descentralizada de milhões de leitores/editores voluntários, sem convite, autorização ou seleção prévios, ou direção por parte de qualquer ponto central de autoridade.

IV. Três Versões de Espontaneidade

Dado o tom esmagadoramente positivo da maioria dos empregos teóricos de "ordem espontânea", pode ser surpreendente perceber que uma releitura cuidadosa da passagem dos Mirmidões de Brownmiller, com essas lições Hayekianas em mente, claramente apresenta uma série de características em sua análise da cultura do estupro que são reminiscentes de caracterizações comuns de ordem espontânea. Brownmiller mantém que a cultura do estupro envolve algumas campanhas conscientes, coordenadas centralmente - tais como o uso do estupro como uma arma de guerra em conflitos entre estados-nação governados por homens. Mas sua compreensão da cultura do estupro depende de maneira crucial dos efeitos estruturais de ações largamente dispersas, que são realizadas por um "enxame de homens" agindo "em anonimato", em vez de por governos ou grupos organizados de homens agindo sobre um plano centralmente direcionado; isso deve sugerir um paralelo muito claro e direto com as caracterizações de Hayek de ordem espontânea como uma ordem policêntrica, mais parecido com um "organismo" do que com uma "organização".  As ações não direcionadas, mas sistemáticas, do "enxame" de estupradores-Mirmidões tem efeitos sociais profundos, mas, por causa de seu próprio anonimato, "os estupradores de registros policiais tem realizado bem seu dever... tão bem... que o real significado de seu ato tem passado largamente despercebido" (209); justamente como Hayek caracteriza as ordens espontâneas em termos tais como "os resultados não intencionais e frequentemente incompreendidos das ações separadas e ainda assim interrelacionadas dos homens [sic] na sociedade"19. Ainda assim existem, claro, outras maneiras em que as políticas sexuais de uma cultura de estupro são mais reminiscentes de ordens "construídas" e da política governamental, do que são de ordens espontâneas paradigmáticas. Crucialmente, os atos dispersos que estamos discutindo não são, afinal, atos de trocas livres ou negociações voluntárias, mas atos de força, e, então, qualquer ordem social emergente deles deve ser vista como uma ordem social imposta às mulheres contra seus desejos, assim como os planos sociais ou econômicos dos governos são impostos aos governados sem o genuíno consentimento individual20.
Tanto as similaridades quanto as diferenças de nossos casos paradigmáticos podem ajudar a revelar dois pontos importantes e interrelacionados que eu gostaria de fazer sobre a noção de "ordem espontânea". Ambos os pontos são facilmente esquecidos e são frequentemente esquecidos na literatura existente sobre ordem espontânea, em parte por causa do trabalho normativo que a ordem espontânea faz em argumentos libertários a favor da liberação das trocas econômicas do controle governamental. Mas tão valioso e perspicaz quanto o emprego normativo possa ser, tentar aplicar as categorias hayekianas ao relato de Brownmiller sobre a cultura de estupro pode ajudar a realçar o fato de que as trocas de mercado e a intervenção governamental, considerados como sistemas de coordenação interpessoal, diferem um do outro ao longo de mais de uma dimensão. Talvez porque essas dimensões sejam tão frequentemente ligadas umas com as outras nos casos que os teóricos da ordem espontânea geralmente discutem, elas sejam frequentemente tratadas como inseparáveis, senão simplesmente fundidas umas às outras. Mas a cultura de estupro, como compreendida na teoria de Brownmiller, exibe algumas das características das ordens espontâneas hayekianas, ao passo em que parece ser, em outros sentidos, definitivamente "construída" e imposta, e considerar um caso em que essas características se separam pode ajudar apresentar esses diferentes sentidos e, assim, mostrar que a noção de "ordem espontânea", da forma em que é empregada na escrita libertária, é sistematicamente ambígua. Eu argumentaria, na verdade, que o termo pode evocar ao menos três diferentes tipos de distinções, dependendo do senso preciso do termo crítico, "espontânea"21. "Ordem espontânea" pode ser usado para significar um padrão em macroescala de coordenação social que é:

        Consensual ao invés de coercitivo (quando "espontânea" significa "não coagida");
        Policêntrica ou participativa ao invés de diretiva (quando "espontânea" significa "não incitada");
ou
        Emergente ao invés de um padrão projetado conscientemente (quando "espontânea" significa "não planejada com antecedência");

Quando "ordem espontânea" significa consensual ao invés de coercitiva, a coordenação é atingida através de ações e acordos livres de diferentes pessoas, em contraste com a coordenação imposta pelo uso de força para compelir a participação de partes relutantes. Então, por exemplo, quando mercadorias comercializáveis como cigarros emergem como moedas de facto em economias de escambo, elas não são selecionadas porque nenhuma autoridade força os negociadores a aceitá-las como pagamento para todas as dívidas publicas ou privadas; é porque um número suficiente de pessoas barganharão voluntariamente por um cigarro que mesmo não-fumantes acham que vale a pena aceitar cigarros como pagamento, na expectativa de que poderiam facilmente fazer uma troca posterior com uma terceira parte que fuma, a fim de conseguir coisas que podem usar.
Quando "ordem espontânea" significa uma ordem policêntrica ao invés de diretiva, a coordenação acontece através de microações convergentes de muitos atores agindo independentemente, ao invés de submeterem-se a supervisores designados ou decisores oficiais ou de confiar em planos ou instruções externos. Em ordens diretivas, a coordenação acontece verticalmente conforme os atores agem sobre as ordens de uma autoridade pessoal reconhecida, que assume a responsabilidade por atribuir, vetar e integrar os seus muitos cursos de ação em microescala. Ordens policêntricas, em contraste, dependem de ação participativa ou empreendedora: não há qualquer autoridade final reconhecida, a ação é guiada por normas impessoais em vez de deferência pessoal, e cabe aos atores individuais se coordenar horizontalmente com os outros participantes para determinar quais cursos perseguir a fim de atingir suas metas e assim por diante. Considere o contraste de o sistema diretivo de veto editorial de cima pra baixo na Enciclopédia Britânica, com o sistema escancarado de autocorreção na Wikipedia, que depende da atenção e da iniciativa de um conjunto do tamanho da Internet de potenciais leitores/editores para revisar e corrigir artigos. As contribuições para a Wikipédia são guiadas por uma meta compartilhada de precisão factual e normas comunitárias explícitas tais como o Princípio da imparcialidade22 ou Carece de Fontes23, mas ao invés de serem impostas por editores privilegiados, a interpretação e implementação dessas normas, assim como da maior parte de outras questões de veto e de política, se apoiam quase inteiramente no consenso convergente produzido pelo vai-e-vem entre Wikipedianos, todos com igual poder de adicionar, revisar ou reverter mudanças e todos livres para se juntarem à luta em qualquer dado momento.
Quando "ordem espontânea" significa "ordem emergente", contrastando com desígnio consciente, as formas de coordenação social emergem das ações de muitas pessoas diferentes, agindo por motivos separados de qualquer desejo consciente de efetuar aquela forma de coordenação social. Ordens intencionais efetuam a coordenação social através de pessoas agindo por causa de um propósito compartilhado, qualquer que ele possa ser; em ordens não planejadas, os participantes podem não saber nada sobre o macropadrão que emerge de suas ações entrelaçadas em micro-escala; ou podem estar cientes dele, mas considerá-lo apenas um efeito colateral - mesmo que agradável - de se perseguir um propósito privado diferente. Uma abridora de caminhos cujas ações ajudam a limpar e manter uma estrada através da mata não está lá principalmente para ajudar futuros colegas viajantes, nem para preparar o terreno para uma futura rodovia; ela está lá para remover os obstáculos que bloqueiam seu caminho do ponto A ao ponto B. Se isso ajudar outras pessoas mais tarde, esse efeito colateral é só sorte.
Por simplicidade retórica, essas três dimensões de espontaneidade e não espontaneidade são apresentadas aqui, assim como normalmente o são em outros lugares, como se fossem simples dicotomias. Mas cada uma delas deve ser avaliada em relação a um nível de organização social - uma ordem policêntrica em geral pode conter, como Hayek diz, "diversos núcleos" de organização centralizada (tais como firmas ou associações num mercado aberto); um processo consensual pode produzir seus resultados espontâneos distintivos porque opera contra um pano de fundo de restrições coercitivas (quando cigarros são consensualmente adotados como a moeda de facto numa economia de prisão, a adoção é consensual em um nível; mas, claro, ela é profundamente moldada pelas restrições universais e coercitivas sobre posse e troca, o que proíbe a maioria dos usos de dinheiro externo). E tanto a distinção entre ordens policêntricas e diretivas, quanto aquela entre ordens emergentes e intencionais, são realmente diferenças de grau, com muitos tons intermediários e casos limítrofes em vez de divisões categóricas claras. Os participantes podem exercitar graus maiores ou menores de autonomia ao selecionar ou vetar seus cursos de ação; a lacuna entre intenções em microescala e o padrão em macroescala que resulta pode ser uma lacuna maior ou menor.
É importante entender cada uma dessas três distinções como pares de categorias interrelacionados, mas analiticamente distintos - mas, de fato, eles tendem a coincidir frequentemente o bastante para que possam ser confundidos como indistinguíveis em conceito. Notavelmente, quando os libertários contrastam redes abertas de trocas de mercado com planejamento e alocação econômica por governos, eles estão contrastando ordens socioeconômicas que diferem ao longo de todas as nossas três dimensões: a alocação governamental é legalmente imposta, coordenada por exigência de uma autoridade designada, e projetada conscientemente para atingir um conjunto pré-determinado de metas políticas; ao passo que mercados livres produzem estruturas orgânicas que são o produto de acordos consensuais que são de caráter participativo (sem um centro fixo de autoridade), e desenvolvem uma estrutura emergente, que as partes da troca não se propuseram conscientemente a criar. A questão, então, é quais dessas diferenças deveríamos tratar como definitiva da ordem espontânea. Hayek mesmo era razoavelmente consistente quando tentava definições formais de "ordem espontânea" - como vimos acima, ele a definia em termos de coordenação emergente, com uma lacuna perceptível entre microintenções e macropadrões, e frequentemente recorrendo aos "resultados da ação humana, mas não do desígnio humano" de Ferguson. Mas Hayek também constantemente caracteriza ordens espontâneas por contraste com ordens "construídas", que ele definia em termos de autoridade monocêntrica, simplesmente igualando-as a ordens "policêntricas", que não eram "feitas por ninguém"24, ao contrário de uma ordem "que foi feita por alguém colocando os elementos de um conjunto em seus lugares ou direcionando seus movimentos" (1973, 37). Sua aplicação do conceito, ao discutir processos do livre mercado, consistentemente contrastava seu processo saudável e desimpedido com a "interferência" ou a "intervenção" intencionais, que são ambas monocêntricas e paradigmaticamente apoiadas pelo poder coercitivo do governo25, e, em geral, as ligava intimamente a casos em que a consensualidade da transação era pelo menos tão importante quanto suas propriedades emergentes ou seu contexto participativo. Em todo caso, tanto acadêmicos hayekianos posteriores, quanto a escrita popular, repetidamente usaram "ordem espontânea" indiferentemente para se referir a ordens que são "espontâneas" em qualquer dos nossos três sentidos ou em todos eles; ou foram ambíguas entre os diferentes sentidos de "espontânea" de uma declaração para a outra.
Dessa maneira, por exemplo, em seu capítulo sobre Hayek em Against Politics (1997), Anthony de Jasay caracteriza, de passagem, "ordens espontâneas" como ordens emergentes, "um resultado não intencional de ações humanas direcionadas a outros fins" (121-122), ao distingui-las dos resultados do ativismo político consciente. Mas, mais tarde no mesmo capítulo, ele iguala diretamente as ordens espontâneas a ordens consensuais, a fim de argumentar que elas possuem uma "idoneidade moral prima facie" de que ordens construídas (leia-se "coercitivas") carecem:

A atração da espontaneidade é tanto moral quanto prudencial. Ainda que não esteja claro se Hayek via mais que um valor instrumental nela, ele enfatizou que os elementos numa ordem espontânea "organizam a si mesmos" em vez de serem organizados por um "direção unificada" (1960, p. 160). Quando os elementos são seres humanos, sua propriedade e suas escolhas, as disposições de ninguém são impostas a ele [sic] pelo comando de outro. Todo mundo escolhe por si próprio [sic] o que a ele [sic] lhe parece o melhor, dado que todas as outras pessoas escolhem igualmente. Todas as escolhas são interdependentes e tornadas mutualmente compatíveis pelos direitos de propriedade e por suas trocas voluntárias. Ninguém domina e ninguém é subordinado. Isso empresta à ordem em questão um laissez passer moral, ao passo em que ordens não espontâneas, construídas ao se impor alguma alternativa sobre os participantes por autoridade ou pela ameaça de força, são moralmente deficientes por seu elemento coercitivo. Para que possam se passar por legítimas, elas precisam mostrar algum mérito compensatório. Ordens sociais espontâneas, em outras palavras, tem uma idoneidade moral prima facia. Ordens construídas devem merecer ou ficar sem. (125-126, ênfase adicionada)

Mas, no parágrafo seguinte, de Jasay argumenta pela "atração prudencial" das ordens espontâneas, ao se referir ao problema do conhecimento de Hayek para ordens construídas - à habilidade única das ordens policêntricas de reunir conhecimento "irremediavelmente disperso ou latente" e, assim, superar as limitações epistêmicas dos planejadores, o que inevitavelmente impede a habilidade de se ampliar ordens diretivas:

A atração prudencial de ordens espontâneas brota da crença, firmemente mantida por Hayek e bastante apoiada pela evidência histórica, de que, uma vez que o conhecimento exigido para projetar com sucesso uma ordem complexa está ou irremediavelmente disperso, ou latente, ou ambos, a ordem construída corre um grande risco de ser ineficiente, se não gravemente contraproducente. (126)

Esses dois parágrafos são seguidos de diversas páginas de agonia sobre a aparente dificuldade de que a compreensão de Hayek de seus próprios argumentos prudenciais parece depender da aplicação deliberada de regras por uma agência autoritária; mas de Jasay não faz nenhuma distinção clara, em suas preocupações sobre mecanismos de "aplicação forçada"a, entre (1) as características coercitivas de tais mecanismos (em oposição às "convenções voluntárias", como o ostracismo, eles são baseados na força punitiva e pagos com arrecadações de impostos) e (2) seu caráter diretivo (em oposição às sanções sociais participativas, que são implementadas, de maneira não incitada por pessoas comuns, a "aplicação forçada" vem de ordens oficiais e "sanções exógenas" de um "aplicador último e soberano"). Embora cada um desses argumentos dependa de um sentido distinto de "espontaneidade", de Jasay usa o termo "ordem espontânea" do começo ao fim, sem notar que cada argumento se volta a uma característica distinta e conceitualmente separável, e que as ordens sociais podem ser "espontâneas" em quaisquer desses sentidos, sendo ou não "espontâneas" nos outros26.
Mas, é claro, elas podem. Essas são simplesmente três distinções diferentes e, embora muitos exemplos se sobreponham, as características podem se separar mesmo em alguns dos casos paradigmáticos de "ordem espontânea". Quando permutadores convergem para uma mercadoria altamente comerciável como o meio comum de troca, eles a escolhem através de repetidas trocas consensuais; eles também fazem as trocas em interações dispersas, sem qualquer centro direcionador. Os ajustes de preços de mercado produzem padrões emergentes que poucos ou nenhum dos participantes individuais poderia ou tinha planejado (seja a alimentação de Paris ou a manufatura de um humilde lápis número 2); essas ordens emergentes são possíveis por causa da mobilização do conhecimento, de outra forma irreversivelmente disperso, através de uma rede policêntrica de trocas consensuais. Mas ordens podem ser consensuais embora sejam (voluntariamente) diretivas; e ordens podem ser policêntricas embora sejam, em uma medida substancial, projetadas. Dessa maneira, por exemplo, embora o desenvolvimento da Wikipédia seja um exemplo claro de uma ordem participativa e consensual - ninguém é forçado a contribuir; o processo de edição é amplamente aberto a qualquer pessoa que quiser pular dentro sem esperar por instruções - ele não é um exemplo forte de uma ordem emergente. Tipicamente, as pessoas editam a Wikipédia, pelo menos em parte, com a intenção de melhorar a abrangência e a precisão da informação na Wikipédia - ou seja, o sucesso em macroescala da Wikipédia é uma parte conscientemente adotada da intenção ao micronível.
O segundo ponto de alto nível a ser feito sobre a noção de ordem espontânea está relacionado ao ponto que fizemos sobre o significado ambíguo de "espontaneidade". Devido aos paradigmas para a aplicação do conceito terem geralmente sido casos em que uma ordem social é participativa ou não planejada e também consensual, o que os libertários têm tendido a ver na ordem espontânea é quase sempre um padrão em macroescala que é livremente escolhido e em que todos envolvidos encontram algum benefício mútuo do processo. Você não precisa de um comando e controle de cima pra baixo para ter muitas coisas importantes que os libertários gostam de usar - língua, ou dinheiro, ou estradas, ou a Wikipédia... Então, no vocabulário libertário, "ordem espontânea" é quase sempre empregada para se elogiar ordens benignas, especialmente ordens benignas que espontaneamente realizam algo que os planejadores do governo não podem fazer tão bem ou de maneira alguma. É notável e maravilhoso que formas de cooperação social de baixo pra cima possam tão frequentemente produzir resultados sociais em larga escala não planejados melhores do que poderiam ser conseguidos através de esquemas políticos abrangentes e conscientemente planejados para a coordenação social. Mas nada conceitualmente exige que ordens emergentes necessitem ser ordens benignas. Se formas amplamente distribuídas de inteligência, conhecimento, virtude ou prudência podem se somar, através de muitas ações individuais autointeressadas, em uma ordem benigna não projetada, então não há razão pela qual formas amplamente distribuídas de ignorância, preconceito, tolice ou vício não possam se somar, através de muitas ações individuais autointeressadas, em uma ordem não projetada e maligna27. Também o podem práticas de violência amplamente distribuídas e em micronível; uma vez que libertários estão centralmente preocupados com a liberdade individual contra violência e coerção, a possibilidade que nossa tripla distinção levanta de uma ordem emergente, mas não consensual deve certamente nos fazer parar para pensar.

V. O Punho invisível e a Lei Não Escrita do Patriarcado

Eu gostaria, então, de retornar a Brownmiller, a fim de tentar reconstruir, de maneira caridosa, sua teoria sobre os Mirmidões, com mais detalhe e à luz de nossos conceitos enriquecidos e propriamente distinguidos de ordem espontânea. Da maneira em que eu entendo Brownmiller, sua hipótese de que estupradores desconhecidos servem uma função de Mirmidão para a supremacia masculina, com benefícios que se revertem não apenas para os estupradores praticantes, mas para todos os homens, é mais bem entendida como uma argumentação de que o fato generalizado do estupro e a ameaça que sua universalidade inflige a todas as mulheres produzem uma ordem espontânea (emergente), mas coerciva, em que ações não consensuais em microescala infligidas por estupradores desconhecidos, anônimos e independentes, acabam reforçando um padrão em macroescala de domínio masculino sobre as mulheres e a superestrutura cultural e institucional do patriarcado28.
Feministas salientam a vasta significância do fato diário de que a ameaça de estupro restringe o alcance da livre ação das mulheres. Essas restrições operam através de um perigo percebido e através de avisos explícitos: não caminhe sozinha; não após anoitecer; não naquela vizinhança; não vá àquela festa; não se vista assim; tome cuidado com o que você bebe; tome cuidado com que tipo de "sinais" você está emitindo. Duplos vínculos paternalistas frequentemente limitam o alcance a um ponto de fuga29: não saia de um evento tarde da noite sem um homem para te levar de volta; não saia com um homem, ao menos que você pretenda convidá-lo para entrar - ou você vai "dar a ideia errada a ele", e quem sabe o que poderia acontecer aí?30 As mulheres são avisadas sobre os perigos de espaços públicos lotados como metrôs, festas ou shows, ao passo em que são simultaneamente alertadas sobre os perigos de espaços vazios, isolados ou privados como estacionamentos, becos, campos abertos, ou a casa ou o carro de um homem. Os duplos vínculos idealizam tanto o espaço público quanto o espaço privado, tanto estar sozinha quanto estar acompanhada, como permeados por um grau maior ou menor de perigo; em última análise, o único espaço idealizado como "seguro" é o espaço protegido por homens. E a confiabilidade da proteção masculina está intimamente ligada a conexões pessoais com homens, dentro de um conjunto limitado de relacionamentos muito específicos e estruturados - normalmente autoridade paternal, ou proteção marital, ou disponibilidade heterossexual31.
Essas restrições sobre as vidas cotidianas das mulheres, sobre seu uso ou exploração do espaço público, sobre o que elas podem fazer ou dizer com segurança, especialmente na presença de homens, simplesmente significa que a liberdade das mulheres é sistematicamente restringida pelo medo de homens, como um efeito dominó do perigo da violência masculina generalizada, intensa e aleatória, e da necessidade prática de solicitar a ajuda de homens aparentemente idôneos para a proteção contra a ameaça que outros homens criam. Dessa forma, como Brownmiller escreve, "Um mundo sem estupradores seria um mundo em que as mulheres se moveriam livremente, sem medo de homens", mas aqui, nesse mundo, "Que alguns homens estuprem fornece uma ameaça suficiente para manter todas as mulheres num estado constante de intimidação" (209). É importante notar aqui que, exatamente como Hayek escreve que, em ordens espontâneas, muito da estrutura da vida social é determinada por regras que são entendidas através de compreensão tácita e know-how, em vez da aplicação consciente de princípios gerais explícitos32, na discussão de Brownmiller, embora um pouco da "intimidação" que ela descreve seja expressa no ajuste autoconsciente a perigos sentidos e alertas explícitos, muito dela está tacitamente inscrita nos relacionamentos cotidianos ou simplesmente incorporada numa intensificação do tipo de atos subconscientes de pequena escala de vigilância e autoproteção que todos nós realizamos, como uma rotina diária, ou como uma expressão de uma ansiedade percebida.
Outra consequência natural do perigo criado pelos estupradores de registro policial é para os homens que não estupram e que sinceramente se importam com a segurança das mulheres enquanto indivíduos. Tais homens estão numa posição material e emocional em que eles facilmente se vêm como se necessitassem proteger as mulheres com quem eles se importam da ameaça da violência masculina e em que as mulheres, razoavelmente respondendo a essa ameaça, frequentemente precisam solicitar sua ajuda. O desejo de proteger os outros da violência é, por si só, uma virtude pessoal, não um problema social. Mas o perigo é o quão tentador e fácil - e quão corruptor - é que os homens dêem o passo psicológico de ir de uma atitude de solidariedade humana para uma fantasia de resgate masculino, que passem a ver a si mesmos como definidos por sua identidade enquanto Protetores em contraste com a frágil feminilidade e que passem a ver as mulheres como singularmente dependentes por natureza - em vez de singularmente ameaçadas devido às ações escolhidas de outros homens. E, para ir ainda mais longe, que tentem ter certeza que as mulheres busquem, e dependam e se mantenham dentro do escopo da "proteção" de um homem, quer elas realmente desejem isso ou não - usando alertas intimidadores e restritivos, assediando as mulheres - apontadas como tolas ou lascivas - que pisam fora da dependência dessa "proteção" ou dos limites sufocantemente estreitos dessas "dicas de segurança". Esse tipo de dependência imposta pode tão facilmente se tornar frustrante e confinador para as mulheres, e esse tipo de poder pode tão facilmente se tornar corruptor e explorador nos homens, quanto qualquer outra forma de dependência estrutural e de poder. Libertários e anarquistas, que tão prontamente vêem essa dinâmica quando se trata da proteção policial e militar de uma população desarmada pelo governo, não deveriam ter qualquer problema em ver isso, se estiverem dispostos a ver, quando se trata da proteção masculina das mulheres33.
Tudo isso pode ocorrer bem naturalmente quando uma minoria grande o suficiente de homens escolhem cometer atos de violência generalizados, intensos e aleatórios contra um número grande o suficiente de mulheres. E pode acontecer bem naturalmente sem que os homens estupradores, ou os homens protetores, ou as mulheres na sociedade jamais pretendam provocar qualquer resultado social em macroescala. O que realmente acontece, percebido ou não, é que a existência social das mulheres - como as mulheres aparecem e agem, enquanto mulheres, em público - será circunscrita sistemática e profundamente, e a quantidade de tempo e esforço que elas precisarão gastar mantendo os homens supostamente "protetores" por perto, e satisfeitos e dispostos a ajudar será aumentada; enquanto a influência material cotidiana dos homens sobre as mulheres será reforçada, e suas identidades psicossociais enquanto homens serão sistematicamente canalizadas para expressões mais patriarcais - através da ameaça difusa e descentralizada de violência e das consequências naturais, mas não intencionais, de muitas ações pequenas e autointeressadas realizadas por mulheres e homens ao reagir às posições desiguais que essa ameaça cria.
Eu tenho falado de estupro por desconhecidos todo esse tempo porque esse é o tópico de Brownmiller, e a teoria de Brownmiller é um bom estudo de caso sobre o ponto que estou tentando fazer. Mas observações similares, com consequências diferentes, mas relacionadas de maneira importante, poderiam ser feitas para outras formas de violência direcionadas contra as mulheres - tais como o assédio em espaços públicos, ou maus tratos e ataques sexuais em relacionamentos íntimos - que a teoria de Brownmiller não envolve. Na verdade, eu acho que o que as pesquisadoras feministas aprenderam sobre estupro nos anos desde a publicação do livro de Brownmiller - em particular, o fato de que a maioria esmagadora dos estupros é, na verdade, cometida por íntimos e conhecidos, não por estranhos - pode colocar algumas revisões significativas da teoria de Brownmiller sobre o estupro por desconhecidos34, embora o que restará após a revisão ainda seja uma teoria feminista importantemente similar à de Brownmiller. Mas quer a teoria de Brownmiller seja verdadeira, ou alguma outra coisa na vizinhança o seja, os diferentes papéis que diferentes formas de violência desempenham em moldar a ordem violenta e não planejada de uma cultura de estupro são mais bem entendidos quando são vistos como diferentes expressões do mesmo fenômeno subjacente.

VI. Crises e Oportunidades

Um conceito cuidadosamente articulado e completamente radicalizado de ordem espontânea apresenta tanto uma crise quanto uma oportunidade para as feministas radicais. Dada a análise sobre a cultura de estupro enquanto uma forma maligna de ordem espontânea (não consensual), pode parecer tentador supor que isso oferece razões feministas para um ceticismo geral em relação a ordens espontâneas e um desafio a qualquer coisa similar ao libertarianismo, que propõe transferir vastos espaços da vida social do controle governamental para ordens espontâneas dentro da sociedade civil. Mas se as distinções que eu tracei ajudaram a iluminar a compreensão feminista radical sobre a cultura de estupro, eu acredito que elas possam também ajudar a iluminar como uma necessidade genuína de uma resposta sistemática e abrangente à opressão não precisa implicar em uma resposta governamental: a espontaneidade não é caos, e a resistência pode ser sistemática e abrangente enquanto se mantém descentralizada e emergente. Abandonar soluções governamentais para sistemas políticos opressivos tais como a violência patriarcal dificilmente significa confiar que uma "sociedade civil" anônima vai apresentar uma solução, de alguma forma. Se distinguir as ordens consensuais das não planejadas e das participativas nos permite entender melhor a compreensão feminista sobre o problema, isso também pode nos ajudar a entender melhor o impulso radical por trás de muitas soluções feministas - movimentos sociais liderados por mulheres para se opor aos efeitos da violência masculina difusa fora ou além da esfera do governo e do lobbying político convencional. Grupos de conscientização, discursos, culture jamming, construção de redes de base de abrigos para mulheres agredidas, centros de crise de estupro e outros espaços feministas originalmente tinham pouca ou nenhuma conexão com a política hierárquica do poder ou com o Estado dominado por homens, e tudo podia produtivamente ser entendido como uma resistência política voluntariamente coordenada e policêntrica, mas conscientemente organizada, a uma ordem de opressão violenta policêntrica, emergente e coerciva.
Mas os teóricos sociais libertários enfrentam sua própria crise e sua própria oportunidade também. Dado o papel central que a violência generalizada contra as mulheres desempenha em manter o patriarcado, a maneira em que uma ameaça generalizada e difusa de força coerciva limita a liberdade das mulheres na vida cotidiana de se mover, e agir e viver como elas quiserem, os libertários devem reconhecer o patriarcado como um sistema de opressão política violenta ainda mais antigo, tão invasivo quanto e não menos poderoso do que a violência de um governo invasivo e do comando e controle do estado. Mas ao contrário dos tipos de violência estatal que os homens libertários estão acostumados a discutir - restrições violentas a liberdade passadas na forma de políticas explícitas, ratificadas através de processos políticos, promulgadas a centralmente e conscientemente cumpridas por agentes oficiais do Estado - o patriarcado se expressa em atitudes, comportamentos e restrições coercivas que são largamente produzidas por formas de violência emergentes e descentralizadas, cometidas de maneira independente por inúmeros homens sem relações entre si, terroristas autônomos que cometem violência por sua própria vontade, a partir de um desejo por dominação e controle, mas sem qualquer grande plano social unificado, sem colaboração consciente ou conspiração, às vezes em conflito com as provisões explícitas da lei (embora raramente investigados e ineficientemente processados no sistema legal dominado por homens). Isso é parte do que eu assumo que Catharine MacKinnon quer dizer quando ela escrever que:

Ao contrário das maneiras em que os homens sistematicamente escravizam, violam, desumanizam e exterminam outros homens, que expressam desigualdades políticas entre os homens, as formas de domínio dos homens sobre as mulheres foram realizadas, de maneira social assim como econômica, antes da operação da lei, sem atos expressos do estado, frequentemente em contextos íntimos como a vida cotidiana. (1989, 161).

É vital que os libertários reconheçam que as ordens sociais coercivas que surgem desse tipo de violência de gênero difusa - tanto como consequência direta, quanto como efeitos dominó sociais, psicológicos ou econômicos das consequências diretas - não são menos reais, menos importantes, menos políticas ou menos perversas porque não são planejadas, por socar as mulheres até a posição social que elas atualmente ocupam como se por um punho invisível. Como eu argumentei em outro lugar, junto com Roderick Long, as tradições radicais dentro do libertarianismo e do feminismo têm muitos discernimentos críticos a oferecer uma à outra na teoria social e na prática política e que a forma que a troca deveria tomar não é de comprometimento mútuo, em que o fim mais "extremo" dos princípios libertários ou feministas é jogado por água abaixo por causa de algum tipo de aliança política ou cultural superficial, ou por ela trocado, mas sim de radicalização mútua, em que cada lado do diálogo encoraja o outro a viver de acordo com seus melhores eus e a adotar de maneira mais complete os entendimentos radicais que matinham até agora, mas apenas à distância35. Aqui, como em outros lugares, as compreensões da teoria libertária são genuínas e essenciais, mas para que elas sejam aplicadas a todos os seres humanos, elas precisam ser radicalizadas e aplicadas em todo lugar em que a coerção sistêmica limite a liberdade. Isso inclui invasões da liberdade pelo Estado; mas também inclui formas de violência invasiva radicalmente diferentes, coordenadas através de meios completamente diferentes e que pedem por diferentes tipos de resposta.
A ordem espontânea e a sociedade civil, em concepções apropriadamente ricas e bem delineadas de ambas, podem ser um espaço para um ativismo de base determinado e consciente, pelo menos tanto quanto a política governamental convencional. Teóricos libertários demais escreveram como se somente formas de opressão promulgadas através das estruturas familiares da legislação e da força governamentais fossem dignas de serem tratadas como questões políticas sérias, ao passo que teóricos feministas demais, embora reconhecendo a prevalência de formas não-governamentais de opressão, escreveram como se somente a ação através do estado pudesse fornecer uma resposta sistemática e efetiva. Na realidade, a teoria da ordem espontânea é vital como uma ferramenta, seja para analisar o funcionamento de formas não governamentais de opressão, ou também para entender mais claramente as formas não governamentais únicas de solidariedade e resistência que as feministas radicais têm empregado - que, frequentemente ao longo dos últimos 40 anos, têm feito um trabalho muito mais efetivo em mudar atitudes sociais em relação à violência contra as mulheres e em fornecer uma ajuda que salva vidas de mulheres que precisam, mais do que qualquer programa governamental comparável. Quando as feministas desafiam a dicotomia de crimes "privados" generalizados e políticas "públicas" e insistem que o pessoal é político, críticos antifeministas frequentemente reagem a esse movimento tratando-o como uma tentativa de estender nossa noção convencional preexistente de ordem política para novos casos, que anteriormente tínhamos classificado como "pessoais" - em particular, como uma tentativa de interpretar a violência "privada" como partes de uma política social conscientemente coordenada, que visa algum fim comum definido e dirigida a esse fim por políticas emitidas pel'O Patriarcado como alguma autoridade central reconhecível ou corpo coordenador. Mas a meta é, na verdade desafiar as compreensões convencionais de política, a favor de concepções mais flexíveis, envolvendo outras dinâmicas de opressão e liberação: o poder expresso através de interações "privadas" dispersas sem coordenação consciente ou centros reconhecíveis de autoridade, mas que, não obstante, incorporam estruturas sociais e relacionamentos de poder que compartilham as características generalizadas, sistemáticas e de longo alcance de estruturas sociais mais convencionalmente "políticas". Se, como eu argumento, a teoria da ordem espontânea pode fornecer um recurso conceitual rico para articular essa nova concepção de ordem política e de resistência política, então um desenvolvimento e uma aplicação mais completos das teorias de ordem espontânea, para uma pauta estabelecida pelas necessidades da liberdade das mulheres assim como dos homens, pode fornecer um ponto vital de reconciliação entre as compreensões feministas e libertárias, ao radicalizar mais ainda o libertarianismo e liberar o feminismo radical, e ao ajudar a salientar as possibilidades de um ativismo radical mais efetivo do que a política estatal dominada por homens jamais poderia permitir. A teoria da ordem espontânea, tão frequentemente mal representada como uma ferramenta para o quietismo político ou para defesas conservadoras do status quo socioeconômico, pode e deveria ser defendida como uma ferramenta vital para a política radical e para a crítica social transformadora.

Notas

[1] Uma vez que meu tópico nesse artigo é o trabalho de uma teórica feminista radical específica (Susan Brownmiller), quando [as palavras] "feminismo" ou "feminista" são usadas por si só nesse texto, elas frequentemente são concebidas como abreviações convenientes para "feminismo radical" ou "feminista radical". Ser uma "feminista radical", nesse sentido, significa algo mais técnico do que simplesmente ser "extremamente feminista", ou "retoricamente militante sobre o feminismo", ou "uma radical política que entre outras coisas é uma feminista". Teorias radicalmente feministas são teorias em que a política sexual desempenha um certo papel único, e o feminismo radical nesse sentido é tipicamente distinguido do feminismo liberal, de um lado, e do feminismo socialista ou marxista, de outro. Em contraste com o feminismo liberal, o feminismo radical é radicalmente feminista no sentido de ser revolucionário em vez de reformista - ele vê a desigualdade sexual não como uma restrição superficial ou uma aberração dentro da sociedade civil, mas como uma forma profundamente enraizada de opressão de classe que pode ser encontrada "na raiz de" virtualmente todas as instituições políticas, culturais, sexuais e econômicas. Elas veem a opressão das mulheres como mantida não só pela discriminação arbitrária, por políticas ruins, por preconceitos explícitos ou por ideias antiquadas sobre as capacidades naturais das mulheres, mas também como constantemente reforçadas nas condições materiais das vidas cotidianas das mulheres e nos relacionamentos estruturados encontrados no local de trabalho, no governo, na família, no sexo, na educação, na língua, na religião, em todas as outras esferas da vida social. Colocar um fim na opressão das mulheres significaria não somente reformar as instituições sem o sexismo, mas em abolir e transformar as instituições e relacionamentos no nível mais fundamental. Em contraste com o feminismo socialista ou marxista, o feminismo radical é radicalmente feminista no sentido de tratar a opressão das mulheres como irredutível em vez de derivada - como uma forma de opressão que, por assim dizer, vai "até o fim" - na análise e crítica da sociedade existente. As teorias feministas socialistas tratam a desigualdade sexual como um subproduto ou epifenômeno da exploração econômica, e as teorias feministas marxistas focam especificamente no desenvolvimento da desigualdade sexual em famílias e em culturas como precursores históricos das divisões de trabalhos capitalistas e em sua reprodução como subprodutos da exploração econômica dos trabalhadores (homens e mulheres igualmente) no local de produção. As feministas radicais, em contrapartida, argumentam que uma teoria feminista deve explicar não só as maneiras em que as mulheres, assim como os homens da classe trabalhadora, são oprimidas enquanto trabalhadoras, mas também as formas únicas de opressão pelos homens que as mulheres enfrentam enquanto mulheres (tais como estupro, espancamento de esposas, perseguição, assédio sexual, leis governamentais de aborto e outras formas de violência masculina sistêmica contra as mulheres). Cf. MacKinnon (1989), Part I (“Feminism and Marxism”) e MacKinnon (1987), especialmente “The Art of the Impossible” (1-17)  e “Difference and Dominance: On Sex Discrimination” (32-­45).
[2] Koss (1988), 11 (Table 1.2). Os resultados de Koss, ocasionalmente, se tornaram um tópico de controvérsia, inclusive dentro de círculos libertários. Este sendo um artigo de filosofia, eu posso alegremente dizer que, embora eu ache que a maior parte das objeções levantadas contra Koss seja infundada, frequentemente ao ponto de negligência intelectual, senão desonestidade, a verdade ou falsidade das alegações empíricas de Koss é largamente independente do ponto analítico que eu desejo fazer sobre a relação entre a teoria dos Mirmidões de Brownmiller e o desenvolvimento do conceito de ordem espontânea de Hayek, e a primeira questão, empírica, está amplamente para além do escopo desse artigo. No entanto, vide Warshaw (1994) para uma discussão detalhada sobre os achados de Koss e uma defesa contra algumas das objeções mais comuns; assim como estudos posteriores com instrumentos de pesquisa bem diferentes, tais como Tjaden e Thoennes (2000). Nada essencial à questão empírica da prevalência da violência contra as mulheres depende unicamente da qualidade da pesquisa de Koss.
[3] A pesquisa ao longo dos últimos vinte anos tem tipicamente encontrado uma preponderância de entre uma em quatro mulheres e uma em seis mulheres tendo experienciado uma tentativa ou um estupro completo durante sua vida até o tempo da pesquisa. Para os números de limites superiores e inferiores vide Koss (1988) 10-11, e Tjaden e Thoennes (2000) 13-24, respectivamente. A diferença nos resultados pode ser devida grandemente a diferenças nas definições operacionais de "estupro" usadas em cada estudo: a Pesquisa Nacional da Violência Contra as Mulheres (National Violence Against Women Survey - NVAWS, no original) de Tjaden e Thoennes incluía apenas os casos em que um homem ou uma mulher foram coagidos ao sexo através do uso direto ou da ameaça de violência, enquanto Koss também incluiu casos em que uma mulher estava drogada ou demasiado bêbada para consentir. Quando questões relacionadas a álcool ou drogas eram removidas da análise de Koss, as taxas estavam mais próximas daquelas encontradas pela NVAWS. Além da diferença na definição, a NVAWS foi também conduzida durante a metade da década de 1990, uma década e meia mais tarde do que o estudo de Koss, e conduzida com uma amostra mais ampla (Koss pesquisou estudantes universitárias americanas; NVAWS pesquisou homens e mulheres de todas as idades e ocupações de todos os Estados Unidos).
[4] Tjaden and Thoennes (2000). 26 (Exhibit 9).
[5] Carol Hanisch (1969/1970), “The Personal is Political”, originalmente publicado em Notes from the Second Year. O conteúdo do artigo de Hanisch está explicitamente preocupado em derrubar a distinção de "pessoal" vs. "político", e no corpo do texto Hanisch escreve que "Uma das primeiras coisas que descobrimos nesses grupos [de conscientização] é que os problemas pessoais são problemas políticos", mas ao reeditar o artigo anos mais tarde, Hanisch quis clarificar que a frase específica "O pessoal é político", que aparece apenas como o título do ensaio, não foi escrita por ela, mas sim fornecida pelas editoras do Notes, Shulamith Firestone and Anne Koedt (Hanisch 2006).
[6] Por exemplo, o filósofo conservador Católico Michel Novak, em uma crítica particularmente mal-humorada e incrivelmente descuidada de Against Our Will para a Comentary (1976) escreve: "A tese manifesta desse livro pode ser declarada de forma simples: é que a relação sexual básica entre homem e mulher é o estupro. ...Pois ao definir o estupro tão amplamente e exigindo sua erradicação, com o que mais pode a Srta. Brownmiller estar flertando além da erradicação de todas as relações sexuais entre homens e mulheres?" (90). Wendy McElroy, uma feminista libertária professa cujos escritos tem se tornado cada vez mais antagônicos em relação ao feminismo radical recentemente, escreve em "The New Mythology of Rape" (2001) que "O mito de Brownmiller é que os homens, em geral, criaram uma massiva psicologia de estupro. Brownmiller alega que todos os homens são estupradores no fundo e todas as mulheres sua presa natural. ...Embora possa-se questionar como Brownmiller chega a suas incríveis informações sobre o estupro e atitudes masculinas em tempos pré-históricos, sua mensagem é clara. Os homens são inerentemente estupradores." (¶¶ 35-37).
[7] O mal entendimento de Brownmiller como uma determinista biológica não está limitado a polemizadores antifeministas ou partidários conservadores. No Companion to Gender Studies (2009) de Blackwell, o contribuidor sobre criminologia, Tony Jefferson, escreve que a teoria de Brownmiller (junto com outras teorias feministas radicais) fizeram contribuições pioneiras, mas "De outras maneiras ...elas [falharam] em superar o pensamento ortodoxo..... A noção de como um homem individual vem a adquirir valor patriarcais e masculinos, quer esses fossem vistos como enraizados na biologia (como o eram para Brownmiller) ou na cultura (como se tornou mais comum), é, como a teoria dos papéis de gênero, implicitamente deterministas: a 'jaula de ferro' de Weber" (220, ênfase adicionada). Rosalyn Baxadall e Linda Gordon (2000) - elas mesmas ativistas feministas veteranas e coeditoras de Dear Sisters: Dispatches from the Women's Liberation Movement - alegam que Against Our Will "promove uma teoria de que o estupro é biologicamente determinado" e "chamou a atenção para a anatomia como a base do estupro". Ambas as alegações, feitas de passagem, são aparentemente embasadas inteiramente na curta passagem ao final do primeiro capítulo do livro ou na recepção dessas curtas passagens por críticos. Para uma defesa mais detalhada de Brownmiller contra a acusação, veja Johnson (2004).
[8] Novak 1976, p. 90.
[9] Por isso as preocupações libertárias comuns em criticar políticas governamentais intrusivas, tais como fiscalização do estado policial, proibições paternalistas e moralistas de "crimes sem vítima" entre adultos e com consentimento, o uso da taxação e da desapropriação para prover programas de "desenvolvimento" patrocinados pelo governo e "serviços sociais" direcionados pelo governo, e restrições governamentais a trocas consensuais em mercados privados - são todas vistas como a substituição desnecessária da coerção governamental no lugar da dinâmica social consensual.
[10] Hayek (1952/1979) oferece a evolução das estradas como um breve exemplo sem qualquer referência histórica específica: "É somente nas instâncias mais simples de todas que se pode mostrar brevemente e sem qualquer aparato técnico como as ações independentes de indivíduos produzirão uma ordem que não é parte alguma de suas intenções; e nessas instâncias a explicação é normalmente tão óbvia que nunca paramos para examinar o tipo de argumento que nos levou a ela. A maneira na qual as trilhas são formadas num campo selvagem é uma tal instância. A princípio, todos buscarão por si mesmos o que lhes parece o melhor caminho. Mas o fato de que tal caminho foi usado uma vez provavelmente o tornará mais fácil de cruzar e, portanto, de ser usado novamente; e, dessa maneira, gradualmente rastros cada vez mais claramente definidos surgem e vêm a ser usados, à exclusão de outras possíveis vias. Os movimentos humanos através da região vêm a se conformar a um padrão definido que, embora seja o resultado de decisões deliberadas de muitas pessoas, ainda assim não foi projetado conscientemente por ninguém" (70-71).
[11] Ou mesmo explicações humanas. O desenvolvimento do conceito econômico foi ele mesmo diretamente influenciado pelo progresso nas explicações evolucionárias da complexidade biológica e na ciência dos sistemas autoorganizados. Falhas em ver a ordem espontânea em ação geralmente levam ao mesmo tipo de falácias criacionistas em ambos os campos, seja o Deus Relojoeiro de Paley ou os mitos do fundador-herói (Licurgo de Esparta, Numa de Roma, os Três Augustos e os Cinco Imperadores na China, etc.) que muitas sociedades usaram para inventar origens oficiais para a linguagem, a escrita, as cidades, o direito civil, os tecidos ou o dinheiro. Vide breves observações em Hayek (1964) e Hayek (1973) pp. 37ff e 81, e mais recentemente o tratamento em profundidade por Geoffrey Allan Plauché em "On the Myth of the Founder-Legislator in Political Philosophy" (2006). Para diversão, veja também "The Creation Myths of Cooperstown" (1991) de Stephen Jay Gould, discutido abaixo, que compara as motivações por trás do relato mais ou menos mítico da invenção completa do baseball por Abner Doubleday, aos impulsos intelectuais por trás do criacionismo fundamentalista.
[12] As teorias feministas tem, claro, se engajado em uma crítica de longa data ao tratamento das mulheres e das relações sexuais pelo direito comum - especialmente no que tange doutrina da cobertura* no direito comum, o tratamento do "castigo" (espancamento de esposas) e o estupro conjugal. Durante a "primeira onda" de feminismo no século XIX, a cobertura foi amplamente protestada como um ataque aos direitos das mulheres à propriedade e a seus direitos civis. Durante a "segunda onda" no século XX, as campanhas feministas de reforma finalmente conseguiram erradicar exceções conjugais que tornavam legalmente impossível que os maridos fossem acusados de estuprar suas esposas. Essas últimas reformas visavam eliminar as exceções conjugais escritas na lei codificada (estatal), mas essas exceções descendiam de doutrinas anteriores do direito comum que negavam a possibilidade do estupro conjugal (quer porque, conforme Hale, os votos matrimoniais eram considerados como envolvendo consentimento irrevogável a toda e qualquer exigência de sexo pelo marido legítimo de uma mulher; ou porque, conforme Blackstone, o ato de casamento fazia de marido e esposa "legalmente uma pessoa", tal que "A existência legal da esposa é suspensa durante o casamente ou, pelo menos, é incorporada e consolidada naquela do marido", e uma esposa não podia ajuizar nenhuma ação por lesões a sua pessoa ou sua propriedade exceto com a concordância do marido e no nome dele, assim como no dela própria). Para discussões parciais, vide o capítulo 2 de Brownmiller (1975), MacKinnon (1987) e MacKinnon (2007).
Hayek, junto com outros teóricos legais libertários tais como John Hasnas (2008), argumenta que um processo policêntrico e evolucionário de direito comum tende a assegurar resultados relativamente respeitadores de direitos e libertários, devido à vantagem que as doutrinas legais libertárias têm em evitar conflito legal e permitir a cooperação social pacífica (Hasnas 2004 preferiria o termo "direito consuetudinário" a "direito comum” **).  Mas em geral se pode dizer que o processo de seleção policêntrico alegadamente em ação só vai estar em ação de fato para aqueles que são reconhecidos como tendo legitimidade para trazer seus conflitos e defender seus interesses perante a corte. Consequentemente, aqueles que não se considera ter legitimidade ou somente uma legitimidade de segunda classe e parcial, derivada ou "coberta”, para participar nos processos legais policêntricos - em particular, em termos históricos, mulheres, crianças e homens escravizados - tendem a encontrar muito menos oportunidade para pressionar por resultados que respeitem a sua pessoa, propriedade ou liberdade, e a encontrar doutrinas no direito comum muito mais propensas a representar a opressão social congelada do que a liberdade individual. Na verdade, é só uma perspectiva minoritária peculiar que permite a escritores homens como Hayek ver "a lei como nós [sic] a conhecemos como a principal proteção da liberdade do indivíduo" (1973; 67); uma feme covert cuja existência legal tenha recentemente sido incorporada e consolidado naquela de seu barão teria consideravelmente mais problemas em descobrir como a ordem legal antiga diferia de "um aparato em que o indivíduo é obrigado a servir aos fins dos governantes [dela]" (1973, 67).
No entanto, o fato de que o direito comum produziu esses resultados não indica, claro, que a legislação monocêntrica produziu resultados melhores ou que campanhas para reformar a situação através de legislação corretiva - em vez de através de mudanças dentro do quadro policêntrico do direito comum - representavam a melhor estratégia para melhorar a situação. MacKinnon (2007), embora preocupada com o desenvolvimento de leis governamentais antidiscriminação que os libertários radicais rejeitam fundamentalmente, oferece uma defesa feminista radical de batalhas dentro de um processo policêntrico de direito comum, como preferíveis a campanhas para intervenção legislativa, com paralelos intrigantes com discussões posteriores de Hayek sobre o direito comum e o direito de legislação.
Pode-se perguntar se a batalha feminista em coro para alterar o equilíbrio da prática tradicional dentro de um sistema legal policêntrico, de modo a sistematicamente alterar ou eliminar as normais tradicionais que ignorem os direitos das mulheres ou restrinjam as liberdades das mulheres, deve contar como um desenvolvimento dentro de uma ordem legal "espontânea". Afinal, na medida em que tais campanhas forem bem sucedidas, parecerá que elas tiveram êxito ao decretar projetos específicos e não espontâneos para normas legais gerais, em vez de permitir que essas normas gerais se desenvolvessem involuntariamente. (Uma questão paralela é levantada por Timothy Sandefur (2009b) em seu desafio a Hayek e John Hasnas a respeito da ação racional dentro de ordens putativamente espontâneas). Mas se isso conta como uma "intervenção" não espontânea ou não vai depender, em parte, se "espontaneidade" tem a intenção de indicar uma ordem não planejada (ou emergente), como definida abaixo, ou uma ordem policêntrica - uma distinção que será estabelecida e se tornará central à discussão imediatamente abaixo.
*N. T.: "coverture", no original. Era uma doutrina legal pela qual, após o casamento, os direitos e obrigações legais da mulher eram subordinados pelos de seu marido, de acordo com o status legal de feme covert.
**N.T.: "customary law" e "common law", respectivamente.
[13] Kropotkin (1906), Capítulo XI, ¶ 15. Vide Cap. XI, ¶ 8 et seq. para a prolongada discussão de Kropotkin da rede de trens Europeia.
[14] Vide Boettke e Coyne (2005) para uma discussão do trabalho de Elinor Ostrom (inter alia), incluindo seu trabalho sobre regulação social policêntrica das terras agrícolas comuns e outras "recursos congregados comuns", em termos de teorias hayekianas de ordem espontânea.
[15] Gould (1991) mostra como as regras comuns do beisebol Americano evoluíram policentricamente a partir das regras locais de muitos jogos diferentes com bolas e tacos, já existentes no meio do século XIX. A convergência para um conjunto comum de regras foi largamente o resultado de acordos não coordenados ad hoc, conforme times de bairro começaram a se solidificar em clubes permanentes, e clubes com regras locais amplamente diferentes começaram a jogar mais partidas de exibição fora de suas cidades natais. Gould não se refere às formulações de Hayek ou a outras formulações econômicas da teoria da ordem espontânea; ele aborda o tópico por meios de uma analogia com a evolução biológica. Mas a sobreposição de frameworks explanatórios não é acidental. O pai e o avô paterno de Hayek eram ambos biólogos formados, e Hayek mais tarde explicou que seu interesse em ordem espontânea foi profundamente influenciado por suas leituras iniciais em biologia evolutiva. Vide o primeiro capítulo de Ebenstein (2003).
[16] Em contraste com a visão promovida por, por exemplo, Friedrich Engels (1880): "Forças sociais ativas trabalham exatamente como as forças naturais: cegamente, forçosamente, destrutivamente, conquanto não as entendamos e contemos com elas. Mas uma vez que as entendamos, uma vez que compreendamos sua ação, sua direção, seus efeitos, depende somente de nós as sujeitarmos mais e mais a nosso próprio desejo e, por meio delas, atingir nossos fins. E isso se mantém de maneira muito especial no que tange as poderosas forças produtivas atuais. Enquanto nós obstinadamente nos recusarmos a entender a natureza e o caráter desses meios sociais de ação - e esta compreensão vai contra o instinto do modo capitalista de produção e de seus defensores - é o quanto essas forças estão em ação a despeito de nós, em oposição a nós, o quanto elas nos dominam, como mostramos acima em detalhe. Mas uma vez que sua natureza é entendida, elas podem, nas mãos trabalhando juntas, serem transformadas de mestres demoníacos em servos voluntários... Com esse reconhecimento, finalmente, da real natureza das forças produtivas de atualmente, a anarquia social da produção dá lugar à regulação social da produção sobre um plano definido, de acordo com as necessidades da comunidade e de cada indivíduo" (Capítulo III. ¶¶ 35­36). Hayek (1973), aparentemente com visões similares à sua vista, escreve: "Se reformistas sociais indignados ainda reclamam do caos dos assuntos econômicos, insinuando uma completa ausência de ordem, isso é parcialmente porque eles não conseguem conceber uma ordem que não é deliberadamente criada e parcialmente porque, para eles, uma ordem significa algo que visa propósitos concretos que são, como veremos, o que uma ordem espontânea não pode fazer" (37-38).
[17] Para discussões sobre a Internet ou a Wikipedia à luz ou como um exemplo direto das ordens espontâneas hayekianas, vide, por exemplo, Boothby (2005), Mangu-Ward (2006), Sunstein (2006), Black (2007), Mangu-Ward (2007), Clark (2007), Lee (2008), Roberts e Wales (2009) e as referências de passagem no Prefácio e nos Agradecimentos de McCloskey (2010). Brague (2007) discute a Wikipedia em termos de processos de equilíbrio em mercados competitivos, mas não faz uma conexão explícita com Hayek ou com ordens espontâneas (parecendo, na verdade, recorrer à compreensão neoclássica, em vez da Austríaca, sobre a "estrutura competitiva de mercado").
[18] Vide, por exemplo, a entrevista da EconTalk "Wales on Wikipedia" (Roberts and Wales, 2009)
[19] Hayek (1952/1979), 58. Ênfase adicionada. Ao ler Against Out Will ao lado de Law, Legislation, and Liberty de Hayek, é difícil não ver um paralelo muito sugestivo entre a descrição de Brownmiller dos "imprudentes" estupradores de registro policial e sua contribuição "largamente despercebida" à estrutura duradoura do patriarcado, e a descrição de Hayek sobre o papel dos advogados na deformação da lei em direção a concepções cada vez mais autoritárias, em que "o advogado individual é necessariamente mais uma ferramenta involuntária, um elo na corrente de eventos que ele não vê como um todo, do que um iniciador consciente. ...Frequentemente se diz que o viés profissional do advogado é conservador. ...A situação é inteiramente diferente, no entanto, quando uma filosofia geral do direito que não está de acordo com a maior parte do direito existente recentemente ganhou ascendência. Os mesmo advogados irão, através dos mesmos hábitos e técnicas, e geralmente tão involuntariamente quanto, se tornar uma força revolucionária, tão efetiva em transformar o direito em todos os detalhes quanto antes o eram em preservá-lo. ...Os advogados em muitos campos já tem, como o instrumento de uma concepção geral que eles não criaram, se tornado as ferramentas, não dos princípios da justiça, mas de um aparato em que o indivíduo é obrigado e servir os fins dos governantes dele [sic]" (66-67)
[20] Vide Johnson e Long (2005) § 2 sobre os paralelos entre o consentimento sexual e político.
[21] Eu uso o termo "ao menos" de forma deliberada: existem muitas outras características associadas à distinção espontâneo/construído que estão para demasiado além do escopo desse artigo considerar - entre elas as distinções entre normas tácitas e explícitas, abordagens experimentais e abrangentes ou definitivas a politicas, seleções pluralistas e uniformes, soluções evolutivas e fixas, ordens baseadas em seleção à margem e ordens baseadas em refatoração e projetos crescentes, formas de crítica social imanentes e transcendentes, formas "endógenas" ou auto-organizantes de ordem e formas "exógenas" ou impostas, et cetera.
[22] "Wikipedia: Neutral point of view” * (WP:NPOV): "O ponto de vista neutro (NPOV) é um princípio fundamental da Wikipédia e de outros projetos Wikimedia. Todos os artigos e outros conteúdos enciclopédicos devem ser escritos de um ponto de vista neutro. Isso significa representar honestamente, sem preconceitos, todas as visões significativas que tenham sido publicadas por fontes seguras [WP:RS]. Isso não é negociável e é esperado de todos os artigos e editores." A política NPOV foi formulada dentro de meses após o lançamento da Wikipédia e foi baseada em políticas similares de projetos antecessores. Como a maioria das políticas comunitárias da Wikipédia, a regra foi inicialmente proposta em um formato simples com uma grande quantidade de espaço para interpretação; ao longo de uma década, os wikipedianos encontraram repetidamente pontos de interpretação, disputa, debate, e o consenso comunitário que lentamente emergiu dos esforços para resolver esses debates produziu uma quantidade tremenda de elaborações e interpretações das aplicações práticas da WP:NPOV. Originalmente seis parágrafos escritos pessoalmente por Jonny Wales (incluindo exemplos), a WP:NPOV agora tem 16 páginas de extensão, como um tutorial de 11 páginas e um FAQ de 9 páginas, virtualmente tudo escrito, reescrito e refinado pelos contribuidores da Wikipedia, embasados na experiência em comum e no consenso comunitário.
*N. T.: "Wikipédia: Princípio da imparcialidade" é o nome do mesmo artigo na Wikipédia em português.
[23] “Wikipedia:Verifiability”* (WP:V): "O limite para inclusão na Wikipédia é a verificabilidade, não a verdade - se os leitores podem checar que o material na Wikipédia já foi publicado por uma fonte confiável, não se os editores acham que é verdade. Todo o material nos artigos da Wikipédia deve ser atribuído a uma fonte publicada confiável para mostrar que não é pesquisa original [WP:NOR], mas na prática nem tudo precisa ser realmente atribuído. Esta política requer que todas as citações e qualquer material contestado ou suscetível de ser contestado seja atribuído a uma fonte publicada e confiável na forma de uma citação na linha e que a fonte diretamente suporte o material em questão." WP:V é a norma por trás da marcação de alegações com "[carece de fontes?]**" nos artigos da Wikipédia.
                 *N. T.: "Wikipédia:Verificabilidade" é o nome do mesmo artigo na Wikipédia em português.
                 **N. T.: "citation needed" no original.
[24] Hayek (1964) ¶ 8. Ibid. ¶ 9 explicitamente caracteriza tais ordens como "policêntricas", colocando o termo entre aspas, aparentemente porque ele o está tomando de Polanyi. Hayek (1973) nos conta que "A ordem espontânea que chamamos de uma sociedade também não precisa ter fronteiras tão nítidas quanto uma organização normalmente possuirá. Frequentemente haverá um núcleo, ou diversos núcleos, de indivíduos mais intimamente ligados ocupando uma posição central em uma ordem mais frouxamente ligada, mas mais extensa" (47, ênfase adicionada).
[25] Hayek, claro, reconhece que ordens monocêntricas (caracterizadas como taxis, "organização", ou "ordem construída") podem ser organizadas consensualmente - em firmas, famílias, associações, ou outros núcleos de organização social. Mas os empregos normativos que Hayek dá aos conceitos de ordem espontânea dificilmente se mantiveram dentro de tais limites conceituais cuidadosamente desenhados; a espontaneidade é constantemente contrastada, não com ordens construídas em geral, mas sim com "intervenções" ou "correções" intencionais, atribuídas a um desejo por uma forma totalitária e politizada de ordem construída, que coercitivamente "interfere" com uma ordem espontânea saudável. Dessa maneira, Hayek, às vezes, e escritores posteriores muito frequentemente, escrevem como se fosse uma questão de uma alternativa simples entre policentralidade e coerção, em vez de tratar as polaridades policêntrica-monocêntrica e consensual-coerciva como distinções transversais e conceitualmente separadas. Em sua discussão sobre as ordens planejadas e do mercado em The Road to Serfdom (1944/2007), Hayek trata o poder coercivo do governo e a centralização de autoridade em ordens planejadas como simplesmente idênticas: "A disputa entre os planejadores modernos e seus oponentes não é, portanto, uma disputa sobre se devemos escolher inteligentemente entre as várias possíveis organizações da sociedade... A questão é se para esse propósito, é melhor que o detentor [sic] do poder coercivo deve se confinar, em geral, à criação as condições sob as quais o conhecimento e a iniciativa dos indivíduos recebem o melhor escopo, de modo que eles passam planejar mais bem sucedidamente; ou se uma utilização racional de nossos recursos exige uma direção e uma organização centrais de todas as nossas atividades" (85). Similarmente, em The Constitution of Liberty (1960/1978), ao fim de seu ataque ao racionalismo construtivo, Hayek escreve que "Nenhuma dessas conclusões são argumentos contra o uso da razão, mas apenas argumentos contra aqueles usos que exigem qualquer poder exclusivo e coercivo do governo" (70). Em Law, Legislation and Liberty, Hayek caracteriza o construtivismo como a emissão de planos para "melhorar ou corrigir a ordem [espontânea] através ordens diretas" (51). Isso é claramente uma referência a uma ordem diretiva, contrastada contra uma ordem policêntrica; dependendo do sentido a que "ordens" se destina, pode ou não ser também uma referência direta a meios coercitivos. Em todo o caso, logo nos contam que "Esta é a essência do argumento contra a 'interferência' ou 'intervenção' na ordem de mercado" pela "autoridade dirigente", (Ibid.) que claramente é uma referência ao poder coercitivo do governo.
[a] N. T.: "enforced enforcement", no original.
[26] Similarmente, num diálogo recente no periódico online Cato Unbound, Timothy Sandefur (2009a) levantou algumas preocupações um tanto diferentes e, em minha opinião, majoritariamente infundadas sobre o rigor analítico das teorias de "ordem espontânea"; o filósofo jurídico hayekiano John Hasnas, no decorrer de sua resposta (largamente bem sucedida), disse "Eu teria pensado que a distinção, baseada em princípios, entre ordens construídas e espontâneas era patente", e então prosseguiu oferecendo três caracterizações diferentes dela em dois parágrafos adjacentes, aparentemente tratando todas essas caracterizações como mais ou menos equivalentes. Hasnas usa "ordem espontânea" como equivalente a "ordem policêntrica" quando ele escreve que "Ordens construídas têm um decisor final... Uma ordem espontânea não tem nenhum tal decisor centralizado e coletivo." (2009, ¶ 5). Imediatamente depois, ele escreve que "ordens espontâneas são sistemas de escolha individual" (Ibid.) e que "Ordens espontâneas são sistemas em evolução. O que faz o estado é seu poder de parar a evolução" (Ibid.), aparentemente se referindo ao poder coercitivo do estado e, dessa maneira (se isso é realmente o que se pretendia), caracterizando a distinção espontânea/construída em termos da distinção entre ordens consensuais e ordens coercivas. No parágrafo seguinte, Hasnas caracteriza a distinção espontânea/construída como francamente equivalente à distinção emergente/projetada conscientemente, invocando um lema que Hayek herdou de Adam Ferguson, de que "Ordens espontâneas são o produto da ação humana, mas não do desígnio humano; ordens construídas são o produto do desígnio humano" ” (¶ 6).
Um exemplo um pouco diferente aparece em "The Tradition of Spontaneous Order: A Bibliographical Essay" (1982) de Norman Barry, em que Barry efetivamente tenta distinguir dois sentidos diferentes de ordem espontânea, mas nos conta que:

Em um sentido, falamos de ordem espontânea para nos referirmos a uma estrutura agregada complexa que é formada a partir das ações não coagidas de indivíduos, ao passo que em outro sentido falamos do crescimento evolutivo de leis e instituições através de um tipo de processo darwiniano de "sobrevivência do mais apto" (e a analogia biológica não é inapropriada). Em ambos esses significados estamos descrevendo estruturas sociais que são similares em não serem de projeto consciente e que emergem independentemente de nossos desejos... (¶ 11)

A real preocupação de Barry aqui aparentemente é, primeiro, a distinção entre um foco sobre a interação individual e um foco na persistência institucional e. segundo, a persistência ou ausência de uma explicação do estilo “mão invisível” para a reconciliação de interesses inicialmente díspares. A primeira metade de sua distinção tentativa simplesmente funde ordens emergentes e consensuais, sem qualquer justificativa ou argumento a mais, enquanto a segunda metade explicitamente descarta o consentimento individual como um critério, mas infelizmente invoca a metáfora da evolução biológica, que é, por natureza, tanto policêntrica quanto emergente, enquanto a referência à "mão invisível" invoca uma forma específica de consequência emergente (conciliatória e mutualmente benéfica). Gordon (1982) critica a caracterização não explicada de Barry da ordem emergente como necessariamente consensual, dizendo "Não é óbvio, de maneira alguma, por que um acordo consciente é moralmente inferior a uma ordem espontânea. Pode-se dizer que com uma ordem espontânea, pelo menos se sabe que as ações dos indivíduos constituintes não foram coagidas. Mas isso está errado: por que as ações coagidas não podem ser sujeitas a explicações da mão-invisível? E acordos, por outro lado, podem ser inteiramente voluntários. Barry evidentemente discorda com a primeira parte disso, já que ele aparentemente (p. 11) torna um requisito de uma ordem espontânea que ela opere sobre ações não coagidas. Mas ele não dá qualquer razão para isso" (¶ 12, ênfase adicionada).
[27] O prospecto de ordens espontâneas malignas raramente foi inteiramente esquecido pelos teóricos da ordem espontânea e dificilmente é, ate onde eu sei, negada de uma vez. A preocupação, na verdade, é que, na prática, ele é raramente mencionado ou salientado como uma possibilidade significativa. No entanto, Hayek certamente entretém a possibilidade; como quando ele sugere que a motivação do lucro sozinha não "garante que [as ordens espontâneas do mercado] serão de um caráter benéfico” (1964 ¶ 22) e que para uma ordem benéfica "é necessário que as pessoa também obedeçam a certas regras convencionais... que se tornaram habituais em sua sociedade. As regras comuns da moralidade e da lei são os principais exemplos disso" (Ibid.). Kirzner (1982) explicitamente introduz a possibilidade conceitual de se tratar ordens sociais como tanto espontâneas quanto malignas, mencionando teorias que reconheceram o poder descritivo dos conceitos de ordem espontânea, mas que "questionaram a desejabilidade social de pelo menos alguns aspectos dessas regularidades aceitas" e "alegaram, corretamente ou não, perceber a teoria como mostrando a emergência sistemática de imoralidades e ineficiências sociais" (¶ 3). Mas enquanto Kirzner pensa que isso tem efeitos importantes na estória histórica que precisa ser contada sobre o desenvolvimento de teorias de ordem espontânea, e nas figuras intelectuais que precisam ser incluídas nessa estória, ele associa a visão com pensadores tais como Marx, Pigou e Keynes, cujas economias Kirzner rejeita de todo o coração; ele firmemente sugere que a possibilidade conceitual de uma ordem maligna não é parte de sua própria visão atual do mundo social. Na verdade, ele sugere que a contribuição distintiva de escritores como Hayek é "a ideia de que o caráter normativo desses resultados sistemáticos dificilmente pode ser julgado como outra coisa que não socialmente benéfico" (¶ 2).
O reconhecimento mais enfático da possibilidade vem de Roderick Long, que tem ocasionalmente discutido fenômenos que ele assume serem ordens sociais reais que são tanto espontâneas quanto "maleficentes", para as quais ele cunhou o trocadilho imperdoável "esterco espontâneo"* (Long 2006)
*N. T.: "spontaneous ordure", no original. "Ordure" e "order" tem a pronúncia similar, daí o trocadilho.
[28] Os mal-entendidos comuns à teoria de Brownmiller, discutidos acima, podem ser vistos como um paralelo aos mal-entendidos sobre as ordens espontâneas na sociedade, que Hayek disseca ao longo de sua obra. Em Hayek (1973) 20-21, por exemplo, Hayek discute como ordens espontâneas formam uma terceira categoria, de ordens cultivadas, entre as ordens encontradas do mundo natural e as ordens criadas a partir do desígnio humano consciente. Para Hayek essas ordens cultivadas demonstram a inadequação da "falsa dicotomia entre 'natural' e 'artificial'" (20). "A distinção pretendida pode ser entre objetos que existiam independentemente e objetos que são o resultado da ação humana, ou entre objetos que surgiram independentemente e objetos que surgiram como resultado do desígnio humano. A falha em distinguir entre esses dois significados levou à situação em que um autor poderia argumentar, a respeito de um dado fenômeno, de que ele era artificial porque era o resultado da ação humana, enquanto outro poderia descrever o mesmo fenômeno como natural porque não era evidentemente o resultado do desígnio humano" (Ibid.). Respostas comuns à teoria de Brownmiller a tratam como se ela devesse estar ou estivesse descrevendo a cultura de estupro como uma ordem encontrada (baseada em algumas características naturais inescapáveis do macho humano) ou então como uma ordem criada (o produto de uma conspiração deliberada entre homens). Tais respostas indicam a mesma dificuldade em ver a possibilidade de uma ordem cultivada, o produto de ações humanas dispersas, mas não do desígnio humano concentrado, como uma possibilidade séria, é pouco diferente da dificuldade que a maioria dos teóricos sociais tem tido em reconhecer que a lei pode não surgir nem de uma ordem encontrada de natureza imutável, nem de uma ordem criada de fundadores-legisladores heroicos.
[29] Vide especialmente Marilyn Frye (1983) sobre o papel constitutivo de tais duplos vínculos no conceito de Opressão: "...Um dos aspectos mais característicos e ubíquos do mundo como experimentado pelas pessoas oprimidas é o duplo vínculo - situações em que as opções são reduzidas a um número muito pequeno e todas elas expõem a pessoa a pena, censura ou privação. Por exemplo, frequentemente se exige das pessoas oprimidas que devemos sorrir e estarmos alegres. Se obedecermos, sinalizamos nossa docilidade e aquiescência a nossa situação. Não precisamos, então, sermos notadas... Por outro lado, qualquer coisa além do semblante mais ensolarado nos expõe a sermos percebidas como malvadas, amargas, zangadas ou perigosas... Só se pode escolher arriscar sua forma e taxa preferidas de aniquilação... Você não pode vencer. Você está presa num beco sem saída, presa entre pressões sistematicamente relacionadas. As mulheres são pegas assim, também, pelas redes de forças e barreiras que expõem uma pessoa a pena, perda ou desprezo, quer ela trabalhe fora de casa ou não, esteja recebendo benefícios ou não, tenha filhos ou não, crie filhos ou não, fique casada ou não, seja heterossexual, lésbica, ambos ou nenhum.... Cada um desses fatores existe numa tensão complexa com todos os outros, penalizando ou proibindo todas as opções aparentemente disponíveis. E mordiscando os calcanhares, sempre, está o pacote infinito de pequenas coisas... A experiência das pessoas oprimidas é que a vivência da própria vida é confinada e moldada por forças e barreiras que não são acidentais ou ocasionais e, por isso, são evitáveis, mas estão sistematicamente relacionadas umas às outras de tal maneira que capturam uma pessoa entre si e restringem ou penalizam a movimentação em qualquer direção. É a experiência de ser enjaulado: todas as avenidas, em toda direção, estão bloqueadas ou cheias de armadilhas." (2-4)
[30] As mulheres frequentemente se sentem forçadas a persuadir homens a ajudá-las a simplesmente chegar em casa ao final da noite; e os constantes alertas e riscos reais tornam o perigo da noite intenso o suficiente para que as mulheres se sentam inseguras em simplesmente sair do carro de um homem ou de sua casa, tarde da noite, não importa o quanto elas possam simplesmente querer ir para casa sozinhas. Claro, o homem em questão pode não ter nada a ver com isso; ele pode não ter jamais pensado sobre isso ou ele pode lamentar o fato. Mas, não obstante, as ações do estuprador anônimo tornaram a casa dele uma cela de facto - e fez dele seu carcereiro.
[31] Daí o argumento de Brownmiller, no Capítulo 2 e em outros lugares em Against Our Will, de que a ameaça de estupro está essencialmente conectada às origens primitivas e à estrutura do casamento, assim como os privilégios sociais exigidos pelos maridos como uma condição de sua "proteção".
[32] "O homem [sic] não sabe a maior parte das regras sobre as quais ele [sic] age... Em sociedades animais e, em uma grande medida, na sociedade humana primitiva, a estrutura da vida social é determinada por regras de ação que se manifestam apenas ao serem obedecidas... Embora o homem [sic] nunca tenha existido sem lei que ele [sic] obedecesse, ele [sic] existiu por milênios sem lei que ele conhecesse, no sentido de que ele fosse capaz de articulá-las" (Hayek 1964, ¶ 18). Hayek enfatiza ao longo de sua obra que essa confiança em reservas consideráveis de conhecimento tácito é modificada em seu escopo, mas se mantem de central importância - de fato, se torna bem mais importante ao funcionamento bem sucedido - em sociedades altamente especializadas, complexas e modernizadoras, a "Grande Sociedade" constantemente discutida em Law, Legislation, and Liberty (1973).
[33] Os anarquistas individualistas do século XIX certamente o viam claramente: como Ezra Heywood escreve, "Uma gentileza cruel, que se pensa ser uma relação amigável, supõe "proteger" aqueles que, pelo divino direito da existência racional, estão intitulados, ao menos, a serem deixados em paz. Não estamos entre as feras selvagens; de quem, então, a mulher precisa de proteção? De seus protetores" (cit. em Johnson e Long 2005). Vide também Johnson e Long (2005) sobre o feminismo libertário radical dos individualistas do século XIX e os paralelos entre a "proteção" patriarcal das mulheres e a "proteção" paternalista do estado a uma população desarmada.
[34] Against Our Will foi escrito entre 1971 e 1975. Embora discursos feministas sobre estupro e o compartilhamento das experiências das mulheres em grupos de conscientização tivessem começado a revelar que muitas mulheres tinham sido estupradas, não por estranhos, mas por maridos, namorados, encontros e conhecidos, a extensão total dessa descoberta não se tornaria clara até o trabalho pioneiro de pesquisadoras feministas sobre o "estupro oculto" durante a década de 1980 (mais notoriamente Koss 1987). Consequentemente, Brownmiller discute o estupro conjugal (380-382) e o estupro por conhecidos (400) mais para o fim do livro, como áreas em que o escrutínio feminista está começando a revelar um problema que tinha até então sido ocultado ou permanecido sem dizer. Mas ela não dá - e em 1975, ela ainda não poderia - a nenhum dos tópicos o tratamento de um capítulo que ela devota a tópicos tais como o estupro como uma arma de guerra, o estupro dentro das instituições ou o estupro por desconhecidos "de registro policial". Em 1975, Brownmiller podia escrever que "Sabemos, ou pelo menos as estatísticas nos dizem, que não mais do que a metade de todos os estupros denunciados são obra de estranhos, e nas estatísticas ocultas, aqueles quatro de cada cinco estupros que não são denunciados, a percentagem cometida por totais estranhos é provavelmente menor." Em 1988, a investigação de Mary Koss das "estatísticas ocultas" revisou o "não mais que a metade" para baixo para menos que 15%.
A descoberta de que a maioria esmagadora da violência sexual cometida contra as mulheres é cometida por homens que as conhecem e professam amor a elas, dentro de relacionamentos íntimos e alegadamente "protetores", teve um efeito profundo na escrita feminista sobre sexualidade e violência durante a década de 1980 e posteriormente, quando as teorias feministas radicais começaram a incorporar essa nova informação, e isso mudou a perspectiva sobre os homens "protetores", em suas análises; vide, por exemplo, Dworkin (1983), Dworkin (1987), ou "Sex and Violence: A Perspective" in MacKinnon (1987), et cetera.
[35] Johnson e Long (2005)

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