terça-feira, 28 de agosto de 2018

Equidade e Posse

Equidade e Posse

Gary Chartier (2011)
A justiça na posse não é, per se, uma questão de relações entre pessoas e coisas. Antes, é uma questão de relações entre pessoas. Como muitas (talvez não todas) exigências morais, ela tem a ver com como é razoável que tratemos uns aos outros. A exigência moral básica de equidade significa que temos boas razões para levar os interesses uns dos outros em consideração quando tomamos decisões. Em paralelo com um conjunto de truísmos sobre o comportamento humano e a condição humana, esse princípio implica em respeito por um conjunto de regras sobre a posse. Há boas razões para que um sistema legal justo trate essas regras como sem exceção, embora um pouco menos de razão para que atores morais individuais o façam.
            Podemos falhar em sermos razoável uns em relação aos outros de várias maneiras. Por exemplo, eu posso optar por atacar algum aspecto do seu bem-estar por despeito, ou por um desejo de vingança, ou como um meio de realizar alguma meta minha. E esse tipo de irrazoabilidade é extremamente importante - ela está na raiz de muita injustiça na guerra, por exemplo. Mas ela não é o tipo de irrazoabilidade que tipicamente surge quando as pessoas ignoram ou ativamente violam os interesses de posse legítimos umas das outras. Geralmente, o tipo de ação irrazoável em questão em tais casos é uma discriminação arbitrária entre aqueles afetados pelas escolhas do agente. Este tipo de irrazoabilidade viola o que eu chamarei de Princípio da Equidade.
            Há diferentes maneiras de se expressar este princípio, nenhum deles imune a críticas. Para os presentes propósitos, eu quero ressaltar um aspecto bastante simples do princípio, que pode ser formulado assim: evite tratar os outros de maneiras que você não estaria disposto a ser tratado em circunstâncias relevantemente similares. Esta formulação está enraizada no que eu assumo ser a sugestão intuitivamente plausível de que aqueles afetados por nossos atos e omissões são, geralmente, bastante parecidos conosco e que a simples diferença numérica é insuficiente para justificar um tratamento fundamentalmente diferente.
            Esse aspecto do Princípio da Equidade pode servir como base para um conjunto de regras de posse.
            Primeiro, o princípio estabelece uma presunção a favor de permitir que as pessoas retenham controle das coisas que elas realmente possuem. Muitos de nós não estamos dispostos, na maior parte do tempo, que outros apanhem nossas coisas de maneira violenta ou enganosa. Então, geralmente não é razoável que tomamos as deles.
            Claro, essa presunção básica pode ser derrotada - como a própria noção de um afano censurável sugere. Ladrões não gostam de ter suas posses tomadas mais do que aqueles que chegam ao que têm de maneira honesta e pacífica, mas nossas reações às reivindicações de posse dos ladrões tendem, penso eu de maneira justificada, a ser um tanto diferentes de nossas respostar às reivindicações daqueles a quem eles despojaram.
            Considerações adicionais ajudam a esclarecer o alcance e delimitar a gama de regras de posse justas. Tomadas em conjunto com o Princípio da Equidade, essas considerações fornecem um apoio considerável para o que eu chamo de regras basais: (i) alguém estabelece uma reivindicação de posse justa a um objeto físico ou a um trato de terra não reivindicado, através do estabelecimento da posse efetiva dele; (ii) uma vez que uma pessoa tome posse de um objeto físico ou de um trato de terra, depende dela agora como ele será usado e o que será feito com ele (na medida em que, ao fazê-lo, ele não ataque os corpos ou as posses justamente adquiridas de outras pessoas); (iii) isso significa, em particular, que alguém com uma reivindicação de posse justa livremente permite que outra pessoa tome posse de um objeto ou trato de terra que seja dela, em quaisquer termos mutuamente acordados. Se eu estou certo sobre as regras basais, então, embora seja verdadeiro, em algum sentido, que as normas de posse são convenções, elas são convenções fortemente restritas, uma vez que a equidade parece exigir que normas de posse razoáveis incorporem as regras basais.
            Um olhar sobre algumas considerações relevantes irá ajudar a esclarecer como elas suportam as regras basais.
            * Acessibilidade. Todas as outras coisas sendo iguais (presumindo, em particular, que os custos não podem ser transferidos para os que não os desejam, como acontece tão frequentemente em relação a abusos que vão da escravidão à poluição), todos se beneficiam conforme o fornecimento de bens e serviços que as pessoas querem aumenta e seus custos diminuem. Se os direitos de posse das pessoas são estáveis, de modo que elas possam barganhar com outras e manter o que lhes é prometido em troca dos bens e serviços que fornecem, elas tem mais probabilidade de produzir esses bens e serviços em quantidades desejáveis a preços desejáveis.
            * Autonomia. As pessoas tendem a querer autonomia: elas querem ser capazes de tomar suas próprias decisões sem, no mínimo, uma interferência forçosa de outrem. Reivindicações estáveis de posse permitem que as pessoas preservem sua autonomia. Então será irrazoável que a maior parte das pessoas não favoreça regras que protegem tais reivindicações.
            * Coordenação. Coordenar o comportamento de atores econômicos - estabelecer preços e determinar níveis de produção e padrões de distribuição - só pode ser uma atividade racional se as pessoas tiverem direitos estáveis de posse.
            * Compensação. Direitos estáveis de posse permitem que as pessoas barganhem de maneira efetiva umas com as outras - tais direitos criam uma linha de base para a barganha - e fazem as pessoas serem compensadas por seus esforços passados.
            * Generosidade. Você não pode ser generoso se você não tem direitos estáveis de posse e se aqueles a quem você dá carecem de tais direitos.
            * Incentivos. As pessoas provavelmente serão produtivas - de maneiras que beneficiam a si mesmas e aos outros igualmente - quando elas mantêm o que ganham. Isto significa, por sua vez, que elas e aqueles com quem elas barganham precisam de direitos estáveis de posse.
            * Pacificação. Direitos estáveis de posse, reconhecidos como tal por todos, reduzem o conflito por recursos escassos.
            * Produtividade. Ter direitos estáveis de posse significa que as pessoas provavelmente colocarão os recursos em seu uso mais produtivo. (Este ponto precisa de alguma qualificação, claro, uma vez que diferentes pessoas têm metas diferentes; a meta de uma pessoa para um pedaço de terra, por exemplo, pode ser precisamente que ele funcione efetivamente como uma reserva natural.)
            * Confiabilidade. A confiabilidade contribui para a estabilidade e o planejamento efetivo.
            * Simplicidade. Regras simples são mais fáceis de formular, articular, entender e aplicar. A regras basais são mais simples do que quase todas as alternativas. (Elas talvez sejam menos do que um conjunto de regras que permita que todo mundo acesse tudo, mas as outras considerações certamente sugerem que tais regras seriam indesejáveis.)
            * Estabilidade. Algumas regras provavelmente estarão embasadas em convenções auto-aplicadoras. Tais regras são mais fáceis de entender e aplicar. E existem boas razões para pensar que as regras basais são, precisamente, convenções estáveis e auto-aplicadoras.
            * Gestão. A gestão importa: todos se beneficiam quando se toma bom cuidado das coisas, e toma-se bom cuidado das coisas quando alguém em particular é responsável por tudo.

            Essas várias considerações contribuem para treliças sobrepostas de justificativa para as regras basais de posse. Em geral, todas elas (a preocupação com a produtividade dos ativos individuais sem dúvidas é uma exceção) se inclinam na mesma direção: tratar os outros de maneira equânime, levar seus interesses em consideração de maneira apropriada, é agir de uma maneira que leve cada uma das considerações a sério.
            O Princípio da Equidade exigirá compensação para as violações dos interesses protegidos pelas regras basais. Afinal, as regras são basicamente insignificantes se elas podem ser violadas com impunidade. Interesses legítimos merecem proteção. Aqueles que consideram a possibilidade de causar prejuízo às posses de outrem estão melhor situados para evitar ou prevenir os danos que consideram causar; mais ainda, a equidade sugere que eles não deveriam deslocar os custos de compensar suas vítimas para os outros. E uma exigência de compensação obviamente servirá para incentivar aqueles que poderiam causar danos a evitar que o façam.
            Regras sem exceção são mais simples, mais confiáveis e mais estáveis do que aquelas que permitem exceções. Então faz sentido que um sistema legal justo incorpore tais regras e que as pessoas as apoiem. Contudo (mantenho eu), isso significa apenas que as pessoas deveriam apoiar a provisão de compensação para danos reais que resultem da violação de tais regras, não que elas deveriam favorecer, por exemplo, princípios legais que permitiriam o uso de uma violência física ilimitada para proteger os interesses delineados pelas regras. Igualmente, embora o Princípio da Equidade dê a todos razões significativas para apoiar a manutenção das regras basais, isso não significa que o próprio Princípio não justificará, às vezes, a violação dos interesses de posse.
            Isso é porque a equidade é, finalmente, uma característica das escolhas individuais. Quando você está implementando ou apoiando uma regra que será aplicada a uma gama de casos, faz sentido pensar na regra como uma regra geral. Mas quando você está decidindo por si mesmo em um caso particular - embora você ainda precise pensar no impacto da sua escolha, por exemplo, na confiança geral de que os interesses de posse justos serão respeitados - você tem que se perguntar o que é equânime que se faça nesse caso. Assim, fará sentido que alguém simultaneamente (a) apoie uma regra que exige a compensação pelos danos causados ao se invadir ou quebrar, sem exceções e (b) invada um chalé abandonado na montanha para escapar de uma avalanche.
            Isso significa que é consistente com o Princípio da Equidade que as pessoas violem os interesses de posse justo dos outros com impunidade, contanto que estejam dispostos a pagar compensação quando causaram um dano real? Não exatamente, uma vez que haverá, como sugeri, razões para que alguém contemplando uma possível violação reconheça que a ação na qual ela está decidindo se engajar possa ser irrazoável porque tenderia a minar a confiança na confiabilidade de reivindicações justas de posse, algo que todos têm razão em favorecer. Esse não será sempre o caso, mas certamente o será de vez em quando.
            As pessoas também terão outras razões para evitar interferir com as posses dos outros a esmo. Por um lado, a compensação por interferir com os bens de alguém não representa apenas o valor do dano resultante da interferência; ela incluirá também os custos razoáveis de recuperação - os custos de identificar a pessoa responsável pela interferência e de garantir a compensação dela. E a responsabilidade por esses custos certamente servirá como desincentivo. Além disso, as pessoas que tomem, ou danifiquem, ou invadam injustamente não serão vistas de maneira muito caridosa pelas outras. Elas provavelmente serão submetidas a vários tipos de sanções sociais, acima e além da exigência de que elas compensem suas vítimas.
            Junto com uma gama de generalizações plausíveis sobre o comportamento e as preferências humanas, o Princípio da Equidade pode fundamentar um conjunto de regras simples e confiáveis sobre a justiça na posse - as regras basais de posse. O Princípio não resolve todas as questões sobre posse e é compatível com múltiplos quadros jurídicos. Mas ele restringe de maneira bastante significativa o que contará como uma regra legal razoável em relação à posse e também, ainda que de maneira menos severa, o que contará como uma escolha razoável de se interferir com as posses justamente adquiridas de outra pessoa. Entre outras coisas, levar as regras a sério significará evitar a interferência com as posses dos outros, o que parece ser a característica definidora do estado predador.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Socialismo: O Que É


Socialismo: O Que É

Benjamin R. Tucker (1884)

"Você gosta da palavra Socialismo?" disse-me uma senhora outro dia; "eu temo que não; de alguma forma, eu me encolho quando a ouço. Ela está associada com tanta coisa que é ruim! Devemos mantê-la?"
            A senhora que me fez essa pergunta é uma sincera Anarquista, uma firme amiga da Liberdade e - é quase supérfluo adicionar - altamente inteligente. Suas palavras exprimem o sentimento de muitos. Mas, afinal, é apenas um sentimento e não resistirá ao teste do pensamento. "Sim", eu respondi, "é uma palavra gloriosa, muito abusada, violentamente distorcida, estupidamente mal compreendida, mas que expressa melhor do que qualquer outra o propósito do progresso político e econômico, a meta da Revolução neste século, o reconhecimento da grande verdade de que a Liberdade e a Igualdade, através da lei da Solidariedade, farão com que o bem-estar de cada um contribua com o bem-estar de todos. Uma palavra tão boa não pode ser poupada, não deve ser sacrificada, não será roubada".
            Como ela pode ser salva? Apenas ao erguê-la para fora da confusão que a obscurece, de modo que todos possam vê-la de maneira clara e definida e o que ela fundamentalmente significa. Alguns escritores fazem o Socialismo incluir todos os esforços para se melhorar as condições sociais. Proudhon tem a reputação de ter dito algo do tipo. Como quer que seja, a definição parece ampla demais. Etimologicamente, não é injustificável, mas, derivativamente, a palavra tem um significado mais técnico e definido.
            Hoje (perdão pelo paradoxo!) a sociedade é fundamentalmente antissocial. Todo o chamado tecido social repousa sobre privilégio e poder e é desordenado e retorcido em todas as direções pelas desigualdades que necessariamente resultam disso. O bem-estar de cada um, em vez de contribuir com o de todos, como naturalmente deveria e iria, quase invariavelmente diminui o de todos. A riqueza é tornada, por meio do privilégio legal, um anzol com o qual furtar dos bolsos do trabalho. Todo homem que fica rico, assim, torna seu vizinho pobre. Quanto melhor se está, tanto pior o resto está. Como Ruskin diz, "todo grão de Incremento calculado para o rico é equilibrado por seu equivalente matemático de Decremento para o pobre". O Déficit do Trabalhador é precisamente igual ao Éficit do Capitalista.
            Ora, o Socialismo quer mudar tudo isso. O Socialismo diz que o que é carne para um homem não deve mais ser veneno para o outro; que nenhum homem deve ser capaz de adicionar às suas riquezas, exceto pelo trabalho; que, ao adicionar às suas riquezas apenas pelo trabalho, nenhum homem torna outro homem mais pobre; que, pelo contrário, todo homem, adicionando dessa maneira às suas riquezas, torna todo outro homem mais rico; que o aumento e a concentração de riqueza através do trabalho tendem a aumentar, baratear e variar a produção; que todo aumento de capital nas mãos do trabalhador tende, na ausência do monopólio legal, a colocar mais produtos, produtos melhores, produtos mais baratos, e uma grande variedade de produtos ao alcance de todo homem que trabalha; e que este fato significa o aperfeiçoamento físico, mental e moral da humanidade e a efetivação da fraternidade humana. Isso não é glorioso? Uma palavra que significa tudo isso deveria ser jogada de lado simplesmente porque alguns tentaram casá-la com a autoridade? De forma nenhuma. O homem que concorda com isso, o que quer que ele pense de si mesmo, do que quer que ele possa se chamar, não importa o quão amargamente ele possa atacar a coisa que ele confunde com o Socialismo, é ele mesmo um Socialista; e o homem que concorda com o seu oposto e age pelo seu oposto, não importa o quão benevolente ele possa ser, não importa o quão devoto ele possa ser, qualquer que seja sua posição na sociedade, qualquer que seja sua posição na Igreja, qualquer que seja sua posição no Estado, não é um Socialista, mas um Ladrão. Pois existem, no fundo, apenas duas classes - os Socialistas e os Ladrões. O Socialismo, na prática, é a guerra contra a usura em todas as suas formas, o grande Movimento Antirroubo do século XIX; e os Socialistas são as únicas pessoas a quem os pregadores da moralidade não têm nenhum direito ou motivo para citar o oitavo mandamento, "Não roubarás!”. Esse mandamento é a bandeira do Socialismo. Apenas não como um mandamento, mas como uma lei da natureza. O Socialismo não ordena; ele profetiza. Ele não diz: "Não roubarás!". Ele diz: "Quando todos os homens tiverem Liberdade, tu não roubarás".
            Por quê, então, minha senhora questionadora se encolhe quando ela ouve a palavra Socialismo? Eu lhe direi. Porque um grande número de pessoas, que vê os males da usura e está desejoso de destruí-los, tolamente imaginam que podem fazê-lo através da autoridade e, de acordo, estão tentando abolir o privilégio centralizando toda a produção e a atividade no Estado, para a destruição da concorrência e de suas bênçãos, para a degradação do indivíduo e para a putrefação da Sociedade. Elas são todas pessoas bem-intencionadas, mas equivocadas, e seus esforços estão fadados a se provarem abortivos. Sua influência é perniciosa principalmente nisso: que um grande número de outras pessoas, que ainda não viram os males da usura e não sabem que a Liberdade os destruirá, mas que, não obstante, sinceramente acreditam na Liberdade pela própria Liberdade, são levadas a confundir esse esforço para tornar o Estado o todo e o fim da sociedade com todo o Socialismo e com o único Socialismo e, corretamente horrorizadas por isso, o submetem, como tal, ao devido escárnio da humanidade. Mas as críticas muito razoáveis e justas dos individualistas dessa estirpe ao Socialismo de Estado, quando analisadas, descobre-se que são direcionadas não ao Socialismo, mas ao Estado. Até aí, a Liberdade está com eles. Mas a Liberdade insiste no Socialismo, não obstante - no verdadeiro Socialismo, o Socialismo Anarquista: a predominância sobre a terra da Liberdade, da Igualdade e da Solidariedade. Disso, a minha senhora questionadora nunca se encolherá.