A Economia da Dádiva de Propriedade
Shawn Wilbur (2008)
Eu acho que a maioria de anarquistas e libertáries compartilham uma fé de que é possível que as necessidades sejam satisfeitas, que bens sejam distribuídos e algum nível de prosperidade geral atingido, de uma forma que seja voluntária e pelo menos aproximadamente justa. Mas não poderíamos diferir mais, ao que parece, do que quando começamos a perguntar como fazer o trabalho. Provavelmente a maioria de nós visa, no longo prazo, uma sociedade em que houvesse prosperidade o suficiente para que pudéssemos ficar muito menos preocupados com tais coisas, em que a generosidade fosse uma resposta lógica à abundância. Mas vivemos em meio a uma sociedade e a um sistema econômico que estão muito longe desse ideal, e sonhamos nossos sonhos do futuro e da liberdade enquanto lidamos com um presente muito sem liberdade. Em um dia em que testemunhamos a maior falência bancária dos Estados Unidos na história, no contexto de uma movimentação de mercado, intermediada pelo governo, de JPMorgan, que também se beneficiou da manobra de Bear Stearns, falar sobre "mercados genuinamente livres" parece um pouco de quimérico. Mas se vai ser uma longa batalha até qualquer liberdade que consigamos arrancar dos desgraçados corruptos que estão atualmente se intrometendo em nossas vidas, provavelmente podemos tirar o tempo para chegar a algo como um acordo.
Recentemente, eu tenho estado apresentando algumas das ideias de Proudhon sobre individualidade e livre arbítrio1, assim como revisando seu trabalho sobre propriedade. Eu comecei a sugerir algumas das maneiras em que a crítica inicial da propriedade como um princípio despótico e absolutista se tornou a base para o posterior proprietarismo relutante de Proudhon, em que ele embasava sua análise do ego humano, o moi, que ele achava ser ele próprio naturalmente absolutista, e despótico quando dado a chance.
Como Fourrier, Proudhon não poderia aceitar qualquer coisa com qualquer noção de pecado original, em parte porque, como Fourrier, ele associava os erros do presente a um processo progressivo que, em última análise, levava a aproximações cada vez mais próximas da justiça (o "pacto de liberdade"), através do equilíbrio de forças, faculdades, projetos, partidos, federações, etc. Estando terminado com o Absoluto divino, ele poderia apenas depender dos próprios atores humanos éticos para concluir a marcha em direção à justiça, à justificação de suas instituições, à perfeição de seus conceitos, etc. Mas era óbvio para ele que eles nunca o conseguiriam sozinhos. O absolutismo e o despotismo, se permitidos um jogo completamente livre, têm pouca probabilidade de levar a qualquer pacto, que dirá de um justo. Não sendo nenhum atomista social, no entanto, e sendo um pensador inclinado a esperar que toda força evoque uma força contrária, ele não estava contente em transformar esse caráter absolutista em uma versão secular da depravação inata. O que ele realmente fez é um pouco peculiar, envolvendo um sequestro de Leibniz em direções que antecipam gente como Gilles Deleuze. A física psicológica e social que está no centro de seu trabalho maduro sobre liberdade e justiça se parece com o pós-estruturalismo em certos lugares, e eu terei que recorrem um pouco ao vocabulário da filosofia continental mais contemporânea conforme eu falar dele.
Se o ego não é inatamente depravado, tampouco é simples, centrado, limpo e "próprio". Qualquer corpo ou ser, diz Proudhon, possui uma quantidade de força coletiva, derivada da organização de suas partes componentes. Embora estas partes componentes possam estar sujeitas à determinação rígida, a força resultante excede o poder das partes e, na medida em que a força coletiva seja grande e a organização da qual surge seja complexa, ela escapa a qualquer destino constituinte em particular. A força coletiva é a "quantidade de liberdade" possuída pelo ser. A liberdade é, assim, um produto da necessidade, e expressa a si mesma, no próximo nível, como um novo tipo de necessidade. E talvez na maioria dos níveis da análise de Proudhon (e podemos subir e descer a escala de "seres" desde os mais simples níveis de organização até agrupamentos societais complexos e talvez até a organização em escalas ainda maiores) a quantidade de liberdade introduzida não se pareceria muito com a "liberdade individual" que valorizamos. Mas o "livre absoluto" humano, distinto por sua capacidade de dizer "moi" e de refletir sobre sua posição neste esquema, tem seu absolutismo temperado por seus encontros com companheirs, também "livres absolutos", também buscando uma linha desenhada pelo jogo da liberdade e da necessidade. De seus encontros, do reconhecimento mútuo, o "pacto da liberdade" surge (ou falha em surgir, onde a falta de reconhecimento ou o reconhecimento errôneo ocorre), e uma "razão coletiva", possuída (em órgãos sociais e instituições, no "bom senso", etc.) por um ser de ordem superior, que é o mesmo que dizer um absoluto (mas latente, em vez de livre, porque carece da habilidade de dizer "moi") de ordem superior.
No sistema que emerge em volta dessas noções, seres humanos individuais mantém um lugar muito especial, enquanto principais arquitets e artesãs da justiça. Novamente, como Fourier, Proudhon faz questão de não estigmatizar os impulsos individuais, e, muito mais do que Fourier, ele realmente faz virtudes do egoísmo e do absolutismo individuais, contanto que não estejamos tão auto-absorts que não consigamos reconhecer nosses companheirs egoístas e absolutistas como tal. Mesmo a "sabedoria superior" que é possuída pelos seres coletivos de ordens superiores, como a "sociedade" e "o estado" (que, em seus trabalhos posteriores, toma um significado muito diferente do que anarquistas geralmente dão), está realmente em grande parte nas mãos de indivíduos humanos.
A necessidade dá origem à liberdade, que tende a um tipo de necessidade. O "individualismo", mesmo a "completa insolidariedade", tende (como vimos em outros lugares na obra de Proudhon) à centralização, ao perigoso "socialismo" contra o qual Leroux advertira em 1834, mas também, se o equilíbrio puder ser mantido, a um espaço expandido de liberdade social ("a liberdade do ser social") para o indivíduo. É tudo um pouco atordoante; e no meio disso, estrela do show, senta-se o ego individual, o moi, que, embora fora do gancho quanto ao pecado original, ainda tem que lidar com algo que podemos pensar como uma "impropriedade original".
O que pode dizer o homem que nunca recuou sobre a propriedade ser roubo sobre este ego que é, o que quer mais que seja, um tipo de subproduto das forças da necessidade, que tende, de acordo com ele, ver a si mesme enquanto um absoluto? O que esse ego pode dizer sobre sua própria posição? Proudhon sugere que temos protelado um pouco de exame de consciência ao projetar nosso próprio absolutismo para fora, em deuses e em governos, mas que isto tem nos impedido de lidar com coisas importantes - e não estamos mais nos enganando muito. Se o progresso, como Proudhon acreditava, é "a justificativa da humanidade por si mesma", um dos estímulos para esse progresso tem que ser, para nós "livre absolutos", uma tensão interna, talvez mesmo uma suspeita de que o absolutismo do indivíduo não é tão diferente daquele do proprietário, e por muitas das mesmas razões. A propriedade poderia ser tão "impossível" no âmbito psicológico quanto Proudhon acreditava que ela era no econômico.
Estamos falando aqui sobre um sujeito "descentralizado" que reclama mais "identidade" do que poderia ser precisamente justificado. (Eu tenho frequentemente brincado que as alegações de Derrida sobre a identidade poderiam ser reduzidas a "propriedade é roubo".) Mas não estamos falando sobre "falta". Em vez disso, estamos falando sobre o ego enquanto um tipo de excesso, uma força ou pressão. (Seria muito fácil se mover aqui de Proudhon para, digamos, Georges Bataille, e certamente fácil de comparar cada um ou ambos à ética anarquistas de Guyau.) Não estamos nos comprometendo a alguma teoria de organismo social; Proudhon é explícito sobre isto. (E, novamente, poderíamos alcançar sem muito esforço para achar pontos de contato com os pensamentos de Deleuze sobre organização, etc.)
Se mudarmos para a linguagem do libertarianismo, provavelmente acharíamos que a visão de Proudhon de seres sobrepostos, e de "livre absolutos" humanos como o vapor no topo da chaleira fervente da necessidade, pelo menos complica a questão da "auto-propriedade". Alguns de mis amigs naturalmente contestarão esta alegação, e eu sou simpático às suposições básicas associadas com um direito presumido de auto-propriedade - na verdade, como Proudhon disse, "Meu princípio, que parecerá espantoso para vocês, cidadãos, meu princípio é o seu; ele é a própria propriedade" - mas realmente parece-me que se o ego é caracterizado por uma antinomia radical e irresolúvel, então a "propriedade" não pode, por si mesma, expressar o "direito natural" implicado pela natureza do indivíduo.
Assim como Proudhon, eu suspeito que a "propriedade é roubo" e, seguindo sua linha, eu suspeito que a "auto-propriedade" é uma expressão do nosso absolutismo. Ainda assim, como Proudhon, no final, eu sou a favor da propriedade, ou pelo menos ao direito a ela. O que deixa as questões Como? e Por quê? Não existem alternativas?
Parece-me que a busca por alternativas à propriedade, o direito de controlar os frutos do seu trabalho, é, assim como a resistência geral à noção de mercados no anarquismo, embasada em nossa frustração e nosso desgosto bastantes naturais com tanto do que se passa por comércio sob as atuais condições. Estamos no meio de um exemplo bom demais de quão despótica a propriedade pode ser, quando casada com o poder governamental e protegida de qualquer força contrária, em ter muitas ilusões sobre os riscos envolvidos em adotá-la. Mutualistas, em particular, nunca saem completamente desse gancho; nosso "maior hit", o O Que É a Propriedade? (ou seu mais famoso slogan) é um lembrete constante. É um lugar comum nos círculos anarquistas sociais, e mutualistas não estão imunes, a querer nos distanciar dos detalhes de "conseguir e gastar" tanto quanto possível, e temos construído uma variedade de meios de protelar as discussões difíceis sobre relações de propriedade que eventual e inevitavelmente virão.
Um desses meios, me parece, tem sido a referência à noção de "economias da dádiva". Assim como proponents do "direito de auto-propriedade", defensors das economias da dádiva tem querido dizer uma variedade de coisas pelo termo. Em geral, economias da dádiva são diferenciadas das economias de troca precisamente pela falta de trocas, da expectativa de qualquer remuneração e quid pro quo. Algumas formas institucionalizadas de economia da dádiva, como os "mercados realmente muito livres" proíbem até o escambo. Embora esteja claro o suficiente para mim quais presentes desejos são visados por esta alternativa ao comércio capitalista, parece ser uma daquelas práticas que poderiam sempre operar apenas nas bordas de um outro tipo, mais organizado e eficiente, de economia. Essa economia poderia bem ser mais livre, em alguns sentidos, do que a "economia da dádiva" imposta, e não está totalmente claro para mim que o que está envolvido nessa economia é "doação" de qualquer forma.
Para dar, é necessário ser livre para dar. Precisa-se ser, em algum sentido pelo menos, proprietárie da dádiva, e quem recebe não pode ter uma reivindicação igual de se apropriar do item. A propriedade coletiva não pode ser doada dentro do coletivo, ou pelo menos sem mudar bastante substancialmente o significado de "dar". Descrições filosóficas e antropológicas da dádiva estabelecem todo tipo de outras condições. Quem recebe uma dádiva pode ser obrigade, pelo costume, ou pelo "espírito da dádiva", a dar algo seu. Dádivas são notórias pelos elementos "venenosos" que frequentemente contém. Algumas das "economias da dádiva" que conhecemos a partir da antropologia de fato operavam sem recompensa em bens, mas transformavam o capital material em prestígio ou capital cultural, às vezes de uma maneira extremamente competitiva. As descrições filosóficas da dádiva sugerem que a "dádiva pura" está quase impossivelmente amarrada a exigências conflitantes; se reconhece-se uma dádiva, aceita-se graças em troca de uma dádiva, talvez mesmo se sabe-se que está se doando e se sente alguma compensação, então a dádiva pura é impossível. Dádivas parecem, em todo caso, importar. Algo além da indiferença é exigida de nós, e ganhar "pontos punk" pode não ser isso. Dispor de nossas coisas excedentes pode não atingir a meta.
A economia da dádiva parece pressupor a propriedade individual, por mais que gostasse de subverter seu absolutismo, sua mentalidade cobiçosa, olho por olho. A dádiva está, talvez, relacionada à outra metade de nossa antinomia humana?
E se estiver? E se, muito rapidamente (já que eu fui muito longe), se a dádiva fosse de fato a marca de nossa outra metade. Já que nosso absolutismo está necessariamente expressando-se em nós, a gratuidade poderia bem ser a expressão da liberdade, da independência. Talvez a "propriedade", entendida, como Proudhon a entendia, como uma fortaleza em torno do indivíduo, em face às forças centralizadoras e coletivizadoras (que, para que não nos esqueçamos, têm seu papel a desempenhar na marcha em direção à justiça e à expansão da liberdade), começando com a "auto-propriedade", é o direito implicado pelo nosso predicamento humano básico, nossa natureza em progresso, nossa necessidade de espaço no qual experimentar, errar, avançar.
Tal propriedade seria compatível com uma economia da dádiva? Ou Proudhon finalmente nos deixa em um lugar no qual nem a propriedade, estritamente falando, nem a dádiva, idem, podem surgir?
Minha intuição, embasada em parte em alguma linguagem de vários locais na obra de Proudhon e em parte nas conexões que tenho feito com outros pensamentos continentais, é que uma "economia da dádiva", no sentido de um sistema em que algo, que pode ser dado legitimamente, é dado, sem quais quer expectativas de retorno, poderiam surgir apenas em circunstâncias razoavelmente limitadas, e talvez possa ter apenas uma aplicação no pensamento de Proudhon - mas essa uma aplicação pode ser algo um tanto marcante. Sabemos que existe, para Proudhon, alguma abertura para a sociedade emergir enquanto um "pacto de liberdade" levando em direção a aproximações da igualdade e finalmente da justiça. Sabemos que a independência surge da interação entre a necessidade e a liberdade, e que a propriedade também tem suas contradições internas. O moi de Proudhon tem muito pouco que ele pode dar legitimamente, se mesmo sua própria "propriedade" é roubo. Mas ele pode, talvez, dar propriedade a outrem, através do reconhecimento, que não rouba nada, não assalta ninguém, e é perfeitamente gratuito, mesmo que, e este é o caráter da economia da dádiva, ele não possa estar certo da retribuição. Na medida, no entanto, que o comércio é embasado no igual reconhecimento, se não necessariamente em qualquer outro tipo de igualdade, então esta particular economia da dádiva poderia ser estranhamente (dado tudo que dissemos, e alguns dos nomes que invocamos) fundamental.
Mis amigs anarquistas sociais podem contestar esse jugo do absolutismo e da gratuidade sobre a propriedade, de todas as coisas. Mis amigs libertáries sem duvida vão estremecer um pouco com a noção de que a auto-propriedade é uma dádiva (em contraposição a um dado). Mas eu acho que já pelo menos sobre o que se pensar aqui.
[1] Vide Shawn Wilbur, “Proudhon on Freedom and Free Will,” Two-Gun Mutualism & the Golden Rule (n.p., Sep. 12, 2008) <libertarian-labyrinth.blogspot.com/2008/09/proudhon-on-freedom-and-free-will.html> (March 13, 2011).
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