quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Autonomia Individual e Auto-Determinação

Autonomia Individual e Auto-Determinação


Resposta a Wayne Price. “Kevin Carson’s Revival of Individualist Anarchist Economic Theory”, Anarkismo.net, 30 nov. 2014.


O resumo geral de Wayne Price da minha abordagem em Estudos em Economia Política Mutualista (também disponível online) é bastante imparcial e justa (ao contrário de alguns outros, por exemplo, a crítica à Markets Not Capitalism, ed. por Charles Johnson and Gary Chartier, feita por Magpie Killjoy do Crimethinc - vide a réplica de William Gillis). Ele começa com uma espécie de elogio sobre minha análise do capitalismo nas duas primeiras seções do livro:


Kevin Carson está tentando ressuscitar a teoria econômica anarquista. Isto é interessante, porque a maior parte da economia política anarquista atual é especulação sobre uma economia pós-capitalista e pós-revolucionário - com o que ela se pareceria e como poderia funcionar. Há pouco ou nada de uma análise sobre como o capitalismo dos dias de hoje funciona. Para isso, a maioria dos anarquistas ou se apoiam em uma variedade da economia convencional (pró-capitalista) ou olham para aspectos do Marxismo.


E ele aceita - ao invés de estipular a contragosto - a natureza essencialmente não-capitalista do modelo de mercado que eu proponho.


Kevin Carson apresenta o anarquismo individualista como pró-mercado mas anti-capitalista e mesmo "socialista". Ele rejeita o programa "anarco-capitalista" de corporações capitalistas (com trabalhadores contratados por salários) mas sem um estado. Uma (hipotética) economia mutualista poderia incluir pequenas empresas, lojas, oficinas, cooperativas de consumidores e fazendas familiares. Em vez de trabalhadores contratados, as empresas seriam democraticamente administradas por seus membros (cooperativas de produtores). Os bancos seriam uniões de crédito (bancos cooperativos). Essas empresas todas concorreriam livremente no mercado aberto. Não haveria qualquer regulamentação estatal, ou sequer estado. A "justiça", ou pelo menos a paz civil, seria mantida através de arranjos em sua maior parte locais por parte de cidadãos armados.


Isso seria uma economia produtora de mercadorias, mas não capitalismo, mesmo para padrões Marxistas. Não haveria nenhuma classe separada de pessoas que seriam donas do capital, tampouco haveria uma classe especializada de trabalhadores sem propriedade que tivessem que se alugar para os capitalistas a fim de viver.


A bem da honestidade, eu deveria mencionar que a propriedade cooperativa de ativos produtivos em empresas multi-trabalhador não seria realmente obrigatória em meu modelo, tampouco a contratação de trabalho por salários seria proibida (como no sistema de David Ellerman, que automaticamente atribui a reclamação residual aos trabalhadores). Eu o vejo, sim, como uma abolição do "sistema salarial", no sentido de que o trabalho contratado não mais definiria estruturalmente o sistema como o faz no nosso. Com o acesso privilegiado da classe econômica dominante aos meios de produção abolido e removidas as barreiras legais que atualmente mantém a escassez artificial e as despesas dos meios de produção para as pessoas trabalhadoras, eu acredito que haveria muito menos trabalho assalariado, ele seria uma parte marginal do sistema e, onde ele de fato existisse, seria essencialmente não-explorador, na medida em que as deduções de renda, lucro e juros dos salários do trabalho decairiam a quase nada e o poder de barganha aumentado do trabalho daria aos trabalhadores uma voz muito mais forte sobre suas condições de trabalho. Mesmo com patrões e trabalho assalariado nominais, as empresas com empregados assalariados assumiriam, em grande parte, o caráter de facto de cooperativas auto-geridas, com o dono sendo pouco mais do que um co-trabalhador, cujo "lucro" equivale a um "salário de superintendência".


E, ao passo que expressa uma série de reservas menores ou maiores sobre tal modelo de mercado não-capitalista e cooperativista, Price está bastante disposto a tolerá-lo como um arranjo dentro de uma sociedade pós-estado pluralista.


Eu não teria objeções a alguma comuna ou região que experimentasse seu programa orientado ao mercado. Isto está de acordo com o pluralismo experimental de Errico Malatesta… e com o apoio do próprio Carson a uma "panarquia" pluralista.


Não obstante, a tradição do próprio Price se encontra com "o anarquismo socialista revolucionário de luta de classes de Bakunin, Kropotkin, Goldman e Makhno, os anarquistas comunistas e os anarquistas sindicalistas...".


A primeira crítica de Price ao meu modelo de mercado é que, embora seja não-capitalista, "não é uma visão social muito democrática".


Assumindo que funcionasse, os membros da comunidade não fariam decisões gerais sobre como desenvolver sua sociedade; isto seria decidido por empresas concorrentes respondendo ao mercado não controlado. Mesmo empresas democraticamente geridas não controlariam de fato seu próprio destino; isto seria determinado pelos sobes e desces do mercado externo.


Em resposta, eu primeiro notaria que mesmo os anarquistas coletivistas normalmente não celebram a tomada de decisão coletiva ou democrática como um bem por sua própria conta, mesmo quando nenhum acordo é necessário; em tais casos, a autonomia individual e a auto-determinação são um bem por si mesmas.


Na época em que eu escrevi Economia Política Mutualista, eu mal havia começado a investigar coisas como organização em rede, estigmergia e governança p2p. Desde então, estas coisas - que eu considero altamente democráticas - desempenharam um grande papel em definir minha concepção de democracia. Como eu argumentei em A Revolução Industrial Caseira (pt) (um argumento também central ao meu livro em progresso, The Desktop Regulatory State), se pensarmos sobre a democracia como aumento no grau em que nos aproximamos da unanimidade do consentimento, então o tipo de organização estigmérgica característico de grupos de desenvolvimento open source e da Wikipedia são a última palavra em democracia. Cada um dos projetos empreendidos tem o consentimento unânime de todos que participam dele. De fato, alguns Marxistas e comunistas libertários vêem o software open source como o cerne da futura sociedade comunista.


Segundo, se eu bem me lembro, eu pelo menos toquei na propriedade de recursos naturais enquanto propriedade comum em Estudos em Economia Política Mutualista. Se não, o tipo de gerenciamento de recursos de reserva comum sobre o qual Elinor Ostrom escreveu em Managing the Commons era definitivamente algo de que eu era a favor mesmo então. Então a produção e a determinação de preços de uma parcela considerável das matérias-primas consumidas pela comunidade maior estariam sujeitas à governança democrática.


Uma outra crítica, mais fundamental, é que eu ignoro a possibilidade de que os mercados, como tais, só possam existir com um estado.


Ele demonstra que o estado sempre interviu no mercado capitalista. Mas isto não prova que o mercado é possível sem o estado. Se qualquer coisa, pareceria demonstrar que uma economia de mercado exige um estado.


Se o estado criou o mercado, o mercado criou o estado. Um mercado competitivo e de troca de mercadorias coloca cada pessoa em conflito com todas as outras pessoas, cada firma competindo com todas as outras firmas. Ele encoraja o conflito, a miopia e o egoísmo. Ele requer uma instituição geral para manter a sociedade unida, para servir aos interesses gerais dos atores econômicos dominantes. Essa instituição só pode ser um estado.


Eu diria que aqui Price está ilegitimamente confundindo mercados, como tais, com a mediação da maior parte da atividade social através do nexo monetário. Eu admitidamente coloco menos ênfase nos mercados agora como um meio voluntário entre muitos para governar as relações econômicas do que eu o fazia na época em que escrevi Economia Política Mutualista. Estou muito mais próximo agora do que estava então de me ver como um "anarquista sem adjetivos". Eu vejo as trocas de mercado como um de tais meios, ao lado de economias sociais como da dádiva e o comunismo de unidades sociais primárias como projetos domiciliares multi-famílias, ocupas e comunas urbanas, complexos de famílias estendidas e similares. E, por causa da minha pesquisa subsequente em micromanufatura e produção alimentar em pequena escala, eu vejo uma grande parte das necessidades de consumo sendo produzidas eficientemente dentro de tais entidades comunistas, com o preço de mercado governando apenas entradas externas como matérias-primas. Mas mesmo em 2004, eu não usei os termos "livre mercado" ou "anarquista de mercado" no sentido de uma sociedade dominada pelo nexo monetário; antes, eu quis dizer com ele apenas uma sociedade que compreendesse a soma total de todos os meios de interação voluntária, livre associação e ajuda mútua - e da qual a troca de mercado não está excluída por definição.


Price também tem problemas com minha abordagem da mudança gradual sistêmica através da construção de contra-instituições, argumentando que tais instituições seriam marginais e tenderiam a ser cooptadas para uma divisão capitalista do trabalho, a menos que fossem incorporadas a um movimento insurrecionário de massa mais amplo para transformar a sociedade.


Eu tenho bastante mais a dizer sobre esta questão do que tinha em 2004. Da maneira em que o vejo, o modelo de transformação social baseado em movimentos insurrecionários de massa pressupõem a necessidade de atacar e conquistar instituições de alto comando como corporação e estado - uma "guerra de manobra" - para o propósito de ocupá-las e/ou desmantelá-las. Em suma, é um modelo da era industrial em que a massa é necessária por razões objetivas e materiais. Mas, embasado na minha pesquisa ao longo dos últimos 6-10 anos, eu acredito que mudanças na tecnologia de produção e de comunicação tornaram as antigas instituições-dinossauro da era industrial tecnicamente obsoletas e materialmente desnecessárias para o tipo de sociedade que queremos construir. Conforme as ferramentas de produção e a horticultura intensiva em solo se tornam radicalmente mais baratas em menores em escala e hiper-eficientes em seu uso de recursos, a propriedade concentrada da terra e do capital está se tornando cada vez menos um ponto de estrangulamento para a efetivação do controle sistêmico. As antigas forças estruturais como a escassez artificial e os custos de terra e capital estão perdendo seu poder de forçar a economia alternativa para dentro de uma divisão capitalista do trabalho. Em vez disso, a nova economia pós-capitalista está matando o capitalismo corporativo de fome. De fato, as correntes mais interessantes do comunismo libertário, como o modelo autonomista de Hardt e Negri em Commonwealth, sugerem um modelo de "êxodo" de produtores iguais, com base em recursos comuns, secedendo da antiga economia capitalista.


De maneira ainda mais fundamental, Price vê um mercado não-capitalista como inerentemente instável e com probabilidade de decair para o capitalismo.


Mesmo que fosse alcançado, eu duvido que o sistema anarquista individualista funcionaria por muito tempo. Competindo no mercado, seguindo a lei do valor, algumas firmas cooperativas se dariam melhor do que outras. Haveriam vencedores e perdedores. Os vencedores ficariam maiores e mais ricos, os perdedores faliriam. Um conjunto de trabalhadores desempregados se desenvolveria. Haveriam ciclos empresariais de expansões e recessões. A estratificação se desenvolveria dentro e entre as empresas. As cooperativas e famílias fazendeiras mais ficas dominariam as associações de "auto-defesa", que assumiriam o controle do policiamento. Um estado de facto emergiria.


Este argumento de "vencedores e perdedores" não é novo. O próprio Friedrich Engels o usou em Anti-Duhring, argumentando, contra a "teoria da força" de Duhring, que o capitalismo teria emergido espontaneamente a partir de um mercado pacífico mesmo sem a história de apreensão de terras e escravidão - "escrita em letras de sangue e fogo" - que Marx recontara no volume um do Capital. Eu a vi afirmada pela maioria dos anarquistas coletivistas, comunistas e sindicalistas com quem argumentais, incluindo Christian Siefkes (na lista de e-mail da Foundation for P2P Alternatives) e o editor da Anarcho-Syndicalist Review Jeff Stein (em comunicação privada).


Mesmo na época de Engels, eu acho que tais argumentos exageravam grandemente a probabilidade da riqueza se concentrar em algumas poucas mãos sob condições em que nenhuma escassez artificial garantida pelo estado existisse para permitir o crescimento da riqueza sobre riqueza através do juros composto e que o acesso generalizado à terra baldia permitisse que mesmo trabalhadores assalariados se sentassem fora do mercado de trabalho durante períodos prolongados. Mas independente disso, os argumentos pressupõem um modelo de tecnologia de produção intensiva em capital que está obsoleto agora. O barateamento radical e a efemerização da tecnologia estão tornando o próprio conceito de "vencedores" e "perdedores" sem sentido. Como eu argumentei em resposta a Siefkes em Revolução Industrial Caseira,


Uma resposta, no modelo de produção flexível, é que não há razão para se ter quaisquer perdedores permanentes. Primeiro de tudo, os custos fixos são tão baixos que é possível enfrentar um período lento indefinidamente. Segundo, na produção flexível com baixos custos fixos, na qual o maquinário básico para a produção é amplamente acessível e pode ser facilmente realocado para novos produtos, não há realmente nada como um "negócio" para se sair. Quanto menor a capitalização exigida para se entrar no mercado e quanto mais baixos os custos fixos a serem suportados em períodos de negócios lentos, tanto mais o mercado de trabalho assume um caráter em rede e orientado a projetos - como, por exemplo, a peer-production de software. No software livre, e em qualquer outra indústria em que o produtor médio produz é dono de um conjunto completo de ferramentas e a produção se concentra principalmente em projetos auto-geridos, a situação provavelmente é caracterizada não tanto pela entrada e saída de "firmas" discretas quanto por um equilíbrio constantemente alternante de projetos se fundindo e se dividindo, com agentes livres constantemente mudando de um para o outro...


Um outro ponto: em uma sociedade em que a maioria das pessoas é dona dos tetos sobre suas cabeças e conseguem atender à maior parte de suas necessidades de subsistência através da produção caseira, os trabalhadores que são donos das ferramentas de seu ofício podem se dar ao luxo de enfrentar períodos de negócios lentos e serem um tanto exigentes em esperar para serem contratados pelos projetos mais adequados às suas preferência. É bastante provável que, na medida em que alguma forma de emprego assalariado ainda existisse em uma economia livre, ela tomasse uma parte muito menor da economia total, o trabalho assalariado fosse mais difícil de encontrar e o emprego assalariado fosse muito mais marginal. Na medida em que esse emprego assalariado continuasse, ele seria a província de uma classe de trabalhadores itinerantes pegando trabalhos quando precisassem de um pouco de renda suplementar ou para constituir alguma poupança e então se aposentando por longos períodos para uma vida confortável vivendo de seus próprios domicílios. Este padrão - vivendo dos recursos comuns e aceitando o trabalho assalariado apenas quando fosse conveniente - era precisamento o que os Cercamentos tinham a intenção de erradicar.


Pela mesma razão, o medo padrão de "desemprego" na indústria de produção em massa no estilo americano é, na verdade, bastante vinculado ao local e em grande parte irrelevante para a manufatura flexível dos distritos industriais no estilo europeu. Em tais distritos e, em uma medida considerável, na indústria americana de vestuário, o compartilhamento de trabalho com horas reduzidas é escolhido em detrimento a demissões, de modo que os deslocamentos a partir de uma recessão econômica são bem menos severos. Ao contrário da presunção americana de um "local de trabalho" como foco central do movimento trabalhista, o distrito industrial assume a solidária comunidade de ofício como a ligação de longo prazo primária para o trabalhador individual, e o local de trabalho em qualquer dado momento como um estado passageiro de coisas.


E, finalmente, em uma economia relocalizada de produção em pequena escala para mercados locais, em que a maior parte do dinheiro é circulado localmente, tende a haver uma tendência muito menor em relação a ciclos de expansão e recessão ou fluações radicais nos preços das mercadorias. Em vez disso, provavelmente haveria uma adequação razoavelmente estável da oferta à demanda no longo prazo.

Como querela menor, Price diz que eu falhei em notar as previsões de Engels sobre a tendência cada vez maior em direção a uma "estratificação completa do capitalismo" (citando Engels): "O representante oficial da sociedade capitalista - o estado - irá, em última análise, ter que se encarregar da direção da produção". Na verdade, ao discutir a nacionalização de de indústrias de extração centralmente importantes e da infraestrutura de comunicação e transporte sob o "socialismo democrático", eu fiz referência específica às passagens relevantes de Engels em Anti-Duhring.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Proudhon, Liberdade, Satã e The Ladies Repository (ó, minha nossa!)

Proudhon, Liberdade, Satã e The Ladies Repository (ó, minha nossa!)


Muito pouco da obra de 6 volumes de Proudhon, Justiça na Revolução e na Igreja, foi traduzida, mas uma passagem famosa/infame foi tratada em uma série de rendições em inglês. A Seção XLVII, que termina o Capítulo 5, "Função da Liberdade", que é em si o capítulo final do Oitavo Estudo, "Consciência e Liberdade" (que aparece em Justiça, Tomo III nas obras reunidas de Lacroix) contém uma passagem que começa "Vem, Satã, vem...", e que foi naturalmente conveniente para aqueles que queriam demonstrar que cara malvado esse socialista francês Proudhon era.


Há uma tradução realmente bastante adorável de parte da seção no The Ladies' Repository de agosto de 1858.


SATÃ AMIGADO. - Não é sempre que se fala uma palavra boa para o pai do mal. Burns, é verdade, escreveu um "Discurso ao Dião", no qual ele chegou à caridosa conclusão que mesmo o Velho Pedro Botelho poderia corrigir suas maneiras e salvar seu toucinho: "But fare ye weel, auld Nickie-ben, / O wad ye tak a thought an' men'! / Te aiblins might — I dinna ken — / Still hae a stake— / I'm wae to think upo' yon den, / Ev'n for your sake!". Mas ficou para o Monsieur Proudhon, o notável Socialista francês, audaciosamente abraçar a causa de Satã como um amigo! Em sua obra recente, que acabou de ser apreendida na França por processo judial, ele diz: "Vem, Satã, vem, tu o caluniado de padres e de reis! Deixe-me te abraçar, deixe-me apertar-te em meu seio! Há muito que hei te conhecido, e há muito que tu hás me conhecido! Tuas obras, ó abençoado do meu coração!, nem sempre são elas belas e boas; mas apenas elas dão um significado ao universo e o salvam do absurdo. O que seria do homem sem ti? Uma besta. Tu, apenas, animas e fecundas a labuta; tu enobreces a riqueza, tu escusas o poder, tu colocas um selo sobre a virtude! Esperes tu ainda, tu, o proscrito! Eu tenho a servir-te uma única caneta, mas ela vale milhões de bulletins".


De alguma forma, eu não acho que eu poderia lidar com "animas e fecundas" em minha própria tradução, mas tem um certo som nisso. Há algumas outras traduções, de vários períodos, a maioria das quais parece começar com o pé errado, ao traduzir "Viens, Satan, viens..." como apenas "vem, Satã", sem a adorável repetição, que parece crucial para uma passagem que é obviamente o finale do estudo, ou talvez a conclusão dos versos poéticos com os quais Proudhon de fato acabou o estudo.


Qual é o contexto disso tudo? Na verdade, isso se segue diretamente da última seção que eu postei aqui. Há uma tradução aproximada da seção inteira:


Ali está ela, essa liberdade revolucionária, amaldiçoada por tanto tempo porque não era entendida, porque sua chave era buscada em palavras em vez de em coisas; ali está ela, já que uma filosofia inspirada por ela, por si só, deveria, no fim das contas, fornecê-la. Ao se revelar para nós em sua essência, ela nos dá, junto com a razão de nossas instituições religiosas e políticas, o segredo de nosso destino.


Ó! Eu entendo, meu senhor, que você não gosta da liberdade, que você nunca gostou dela. A liberdade, que você não pode negar sem destruir a si mesmo, que você não pode afirmar sem ainda assim destruir a si mesmo, você a teme como a Esfinge temeu Édipo: ela veio, e o enigma da Igreja foi respondido; o cristianismo não é mais nada além de um episódio na mitologia da raça humana. A liberdade, simbolizada pela estória da Tentação, é seu Anticristo; a liberdade, para você, é o Diabo.


Vem, Satã, vem, caluniado por padres e reis! Deixe-me lhe abraçar, deixe-me apertá-lo em meu peito! Eu lhe conheço há muito tempo, e você me conhece também. Sua obras, ó abençoado do meu coração, nem sempre são belas ou boas; mas apenas você dá sentido ao universo e o impede de ser absurdo. O que seria da justiça sem você? Um instinto. Da razão? Uma rotina. Do homem? Uma besta. Apenas você incita o trabalho e o torna fértil; você enobrece a riqueza, serve como uma desculpa para a autoridade, coloca o selo sobre a virtude. Tenha esperança ainda, proscrito! Eu tenho a seu serviço apenas uma caneta, mas ela vale milhões de votos. E eu desejo apenas pedir, quando os dias cantados pelo poeta retornarem:


Você cruzou ruínas góticas; Nossos defensores pressionavam em seus calcanhares; / Flores choveram, e virgens modestas / Misturaram suas canções com o hino de guerra. / Todos se agitaram e se armaram para a defesa; / Todos estavam orgulhosos, sobretudo os pobres. / Ah! Dê-me de volta os dias de minha infância, / Deusa da Liberdade!"

E a quem o hino de fato se destina? Satã? Apenas se você aceita aquela visão, associada com algumas poucas figuras menores como, digamos, Milton e Blake, que personificam o princípio ativo como o diabo. A invocação de Proudhon é para a Liberdade. Mas você ainda tem que entregar isso para os tradutores do item no The Ladies' Repository, penso eu.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Que Mil Culturas Desabrochem

Que Mil Culturas Desabrochem

Mike Tuggle responde novamente ao meu post anterior sobre "Cultura e Anarquia". O Sr. Tuggle escreve:

Hmm. Eu temo que o hermético mundo da academia tenha causado um dano irreparável aqui. Chamando o Dr Occam!

Ai de mim!, a perspicácia do Sr. Tuggle é sutil demais para mim aqui. Talvez ele explique.

Agora, sério. Em resposta ao meu comentário:

Ao contrário do dogma multicultural de nossos dias, os laços culturais não causam conflito étnico. A conquista imperial de um grupo sobre um outro causa conflito.

Você respondeu:

Mas o que deixa um grupo disposto a participar na conquista imperial de um outro, se não laços culturais (do tipo errado)? É mais fácil massacrar e escravizar pessoas sobre quem você está acostumado a pensar consistentemente como "os outros" e nunca como "nosso povo".

Hein? Os tiranos e conquistadores mais egrégios foram os universalistas, para forçar o mundo a aceitar uma maneira "melhor" do que as culturas tradicionais de suas vítimas. Alexandre, Carlos Magno, Napoleão, Hitler, Stálin -- todos eram internacionalistas, para forçosamente reconstruir o mundo em torno de uma fórmula mágica (sim, um anel para todos governar).

Eu havia oferecido diversos exemplos de casos em que o multiculturalismo levou à liberdade e o anti-multiculturalismo levou à tirania. Eu acho que o Sr. Tuggle não gostou dos meus exemplos; em todo caso, ele não oferece qualquer resposta a eles. Em vez disso, ele passa para alguns exemplos diferentes. Mas eu não consigo ver como seus exemplos provam seu ponto. Os ditadores que ele menciona estavam tentando erradicar a diversidade cultural e substitui-la por um conjunto único de valores culturais impostos de maneira imperial. Isto certamente é o oposto de multiculturalismo. De fato, os exemplos do Sr. Tuggle provam meu ponto. Os soldados gregos de Alexandre estavam dispostos a participar em suas campanhas de chacina em massa precisamente porque eles consideravam os persas como "outro" e "inferior". (Na verdade, foi apenas quando Alexandre, ao contrário, começou a adotar costumes persas que suas tropas começaram a perder seu entusiasmo.) Certamente Hitler dependia, para seu apoio, precisamente da tendência a ver não-germânicos e não-arianos como "outro".

E temos um problema real com a definição de multi-culturalismo.

Por certo, vamos esclarecer o termo . Em seu ensaio "What is Multiculturalism?", Bhikhu Parekh dá uma descrição bastante boa do que eu assumo serem as características definidoras do multiculturalismo, da forma em que o termo é geralmente usado. A descrição do Dr. Parekh enfatiza três aspectos:

Primeiro, seres humanos são culturalmente incorporados, no sentido de que eles crescem e vivem dentro de um mundo culturalmente estruturado e organizam suas vidas e relações sociais em termos de um sistema derivado culturalmente de significado e significância.

Isso não significa que eles são determinados por sua cultura, no sentido de serem incapazes de se elevarem acima de suas categorias de pensamento e avaliarem criticamente seus valores e sistema de significado, mas sim que eles são profundamente moldados por ela, podem superar algumas mas não todas as suas influência e necessariamente vêem o mundo de dentro de uma cultura, seja ela a que eles herdaram e acriticamente aceitaram, ou a que revisaram reflexivamente ou, em raros casos, uma que eles adotaram conscientemente.

Segundo, diferentes culturas representam diferentes sistemas de significado e visões da boa vida. Uma vez que cada uma percebe uma gama limitada de capacidades e emoções humanas e compreende apenas uma parte da totalidade da existência humana, ela precisa de outras culturas para ajudá-la a se entender melhor, expandir seu horizonte intelectual e moral, alargar sua imaginação, salvá-la do narcisismo para protegê-la contra a óbvia tentação de se considerar absoluta e assim por diante. Isto não significa que não se pode levar uma boa vida dentro de sua própria cultura, mas sim que, outras coisas sendo iguais, seu modo de vida provavelmente será mais rico se você também gozar de acesso aos outros e que uma vida culturalmente auto-contida é virtualmente impossível para a maioria dos seres humanos no mundo moderno, móvel e interdependente.

Tampouco isso significa que todas as culturas são igualmente ricas e merecem igual respeito, que cada uma delas é boa por seus membros ou que elas não podem ser comparadas ou criticamente avaliadas. Tudo que isso significa é que nenhuma cultura é completamente sem valor, que ela merece pelo menos algum respeito por causa do que ela significa para seus membros e da energia criativa que ela demonstra, que nenhuma cultura é perfeita e tem um direito de se impor sobre as outras e que culturas são melhor alteradas a partir de dentro.

Terceiro, toda cultura é internamente plural e reflete um conversação contínua entre suas diferentes tradições e linhas de pensamento. Isto não significa que ela é destituída de coerência e identidade, mas que sua identidade é plural, fluída e aberta. As culturas crescem a partir de interações conscientes e inconscientes de umas com as outras, definem sua identidade em termos do que elas tomam como sendo seu outro significativo e são pelo menos parcialmente multiculturais em suas origens e constituição. Cada uma carrega pedaços da outra dentro de si e nunca é completamente sui generis. Isto não significa que ela não tenha quaisquer poderes de auto-determinação e impulsos internos, mas sim que ela é porosa e está sujeita a influências externas que ela assimila de suas maneiras agora autônomas.

A relação de uma cultura consigo mesmo molda e, por sua vez, é moldada por sua relação com as outras, e suas pluralidades internas e externas pressupõem e reforçam uma à outra. Uma cultura não pode apreciar o valor das outras a menos que aprecia a pluralidade dentro de si; o contrário é igualmente verdadeiro. Culturas fechadas não podem e não desejam ou precisam falar umas com as outras. Uma vez que cada uma define sua identidade em termos de suas diferenças das outras, ou o que ela não é, ela se sente ameaçada por elas e busca proteger sua integridade resistindo às suas influências e mesmo evitando todos os contatos com elas. Uma cultura não pode estar à vontade com diferenças fora de si a menos que esteja à vontade com suas próprias diferenças internas. Um diálogo entre culturas exige que cada um esteja disposta a se abrir para a influência das outras e a aprender com elas, e isto pressupõem que ela é auto-crítica e está disposta e é capaz de se envolver em um diálogo consigo mesma.

O que eu poderia chamar de uma perspectiva multiculturalista é composta da interação criativa destes três importantes e complementares entendimentos -- a saber, a incorporação cultural dos seres humanos, a inevitabilidade e desejabilidade da pluralidade cultural e a constituição plural e multicultural de cada cultura. ...

Nós instintivamente suspeitamos de tentativas de homogeneizar uma cultura e de impor uma identidade única sobre ela, pois estamos agudamente cientes de que toda cultura é internamente plural e diferenciada. E permanecemos igualmente céticos de todas as tentativas de apresentá-la como uma cujas origens estão dentro de si, como auto-geradora e sui generis, pois nos sentimos persuadidos de que todas as culturas são nascidas da interação com outras e absorvem as influências delas e são moldadas por foças econômicas, políticas, etc. mais amplas.

Isto é, aproximadamente, o que eu quero dizer, e o que eu assumo que a maioria das pessoas quer dizer, com o termo "multiculturalismo". Assim entendido, o multiculturalismo me parece ser uma coisa boa. (De forma alguma eu concordo com tudo que o Dr. Parekh diz em seu ensaio -- ele não é um fã do libertarianismo ou dos direitos naturais, e ele nada mais perto dos cardumes do relativismo do que deveria -- mas o que ele diz nas passagens que eu citei parece bem irrepreensível.) Você acha que o multiculturalismo, da forma em que o Dr. Parekh o descreve, é uma coisa ruim? Ou você quer dizer algo diferente com "multiculturalismo"? Se sim, o que?

O Sr. Tuggle continua:

Quando uma pessoa ou uma sociedade está segura em suas amarras culturas, ela é capaz de assimilar novas ideias e de incorporá-las em sua visão de mundo já existente. Esse é o sinal último de um sentido saudável de identidade, sem o qual não teríamos nenhum meio de lidar com o mundo. A identidade vem de um sentido de relacionamento com o passado e com outros com quem você compartilha valores e, sim, história em comum.

Eu não tenho nenhuma discordância com nada disso (contanto que estejamos falando sobre culturas abertas e não fechadas). Mas eu não acho que isso é, de forma alguma, inconsistente com o multiculturalismo ou com o cosmopolitismo.

Compare isso com a malevolência do que Washington, DC está fazendo conosco. Sem uma cultura compartilhada para nos unir, O Grande Governo terá que impor a ordem. Sim, é antinatural impor a grupos díspares que convivam. Quando a Lei de Imigração de 1965 foi aprovada, Ted Kennedy assegurou ao povo americano que a composição étnica do país não seria alterada.

A política de imigração é uma questão difícil. Em uma pólis libertária ideal, cada dono de propriedade estabeleceria sua própria política de imigração: se você quiser convidar imigrantes para sua propriedade, eu não posso lhe impedir; se você não quer lhes deixar entrar, eu não posso te fazer. Dentro de um contexto estatista, em contraste, qualquer política de imigração vai entrar em conflito com os princípios libertários. Com fronteiras abertas, você está dando aos recém-chegados acesso a fundos tributários dos atuais residentes e, possivelmente, poder político sobre eles. Com fronteiras fechadas ou semi-fechadas, você está impedindo que imigrantes e recém-chegados de entrar em relacionamentos contratuais legítimos (convidado/anfitrião, empregado/empregador, inquilino/senhorio, comprador/vendedor de imóveis residenciais) uns com os outros. Consequentemente, fronteiras tanto abertas quanto fechadas violam os direitos libertários.

Se cada uma das opções é repreensível sob luzes libertárias, a questão é: qual é menos ruim? Esta é uma questão sobre a qual os libertários podem razoavelmente discordar. Para um argumento libertário contra as fronteiras abertas, vide uma série de artigos no website de Hans-Herman Hoppe. De minha parte, eu acho que uma política de fronteiras abertas é menos ruim. Eis aqui algumas das razões:

a) As violações de direitos envolvidas nas fronteiras abertas são simplesmente uma expansão das violações de direitos envolvidas de toda forma na existência do estado; o grau é piorado, mas não o tipo. Mas as violações de direitos envolvidas em fronteiras fechadas arruínam as vidas das pessoas. Até que possamos alcançar uma sociedade verdadeiramente livre, deveríamos pelo menos preferir aqueles tipos de violações de direitos que causam menos dano.

b) Impor uma política de fronteiras fechadas exige, efetivamente, um estado policial. Se apenas pessoas aprovadas tem permissão de viver, trabalhar ou viajar em um país, então todas as pessoas dentro deste país devem carregar papéis que provem que são aprovadas, exigindo inspeções constantes, passaportes internos, etc. Uma Guerra à Imigração -- como suas primas, a Guerra à Pobreza, a Guerra às Drogas e a Guerra ao Terror -- é uma elegante desculpa para um aumento no poder estatal.

Hoje, 80% dos eleitores são a favor de uma redução ou eliminação da imigração do Terceiro Mundo.

80% dos eleitores são a favor de todo tipo de coisas que eu tenho certeza que o Sr. Tuggle e eu ambos rejeitaríamos vigorosamente. O apelo aos números não resolve nada.

Podemos ter uma sociedade livre e racional quando tivermos destruído as expectativas estáveis quanto ao comportamento das outras pessoas sob condições especificadas? Esse é um grande componente do que a cultura é. Isto é destruído quando as culturas do Terceiro Mundo suplantam a nossa própria -- cortesia de um governo federal imoral buscando eleger um eleitorado novo e mais flexível.

As ideias culturais que estão destruindo a sociedade americana não têm sua origem no Terceiro Mundo, mas inequivocamente no Primeiro. E é difícil imaginar um eleitorado mais flexível e ovino do que os americanos brancos cristãos de classe média, da forma em que são atualmente. Eu não vejo como importar imigrantes poderia adicionar esse tanto ao dano que a população nativa da América já infligiu sobre si mesma. Se termos um "governo federal imoral" -- e temos -- de onde ele veio? Quem concordou com sua criação e expansão?

Quanto às "expectativas estáveis", a principal força que as mina é o poder do governo de reescrever as regras a todo minuto. A imigração do Terceiro Mundo é um nada em comparação.

E, finalmente, longe de uma "auto-estima automática e imerecida" ou de "fomentar preconceitos culturais", a herança étnica e cultural é um desafio sobre o qual se cresce. É uma tarefa de auto-descoberta e extensão. Como Goethe disse, "O que você tem como herança;/Tome agora como tarefa;/Pois assim você a tornará sua".

Eu concordo. Lembre-se, eu não deitei estes pecados à acusação de "herança étnica e cultura" por si só. O que eu descrevi como perigoso foi "uma identificação única e abrangente, cujos limites não mudam em diferentes contextos, particularmente quando essa identificação é baseada primariamente em características concretas e não escolhidas". Em outras palavras, minha preocupação é com culturas que são fechadas (no sentido de Parekh) e anti-conceituais (no sentido de Rand). Culturas que não são nenhuma das duas têm minha bênção. Que elas desabrochem.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Proudhon sobre liberdade e livre arbítrio

Proudhon sobre liberdade e livre arbítrio

Estou trabalhando na tradução do capítulo de Proudhon (em Justiça na Revolução e na Igreja) sobre "A Natureza e Função da Liberdade". É uma peça chave em sua obra em geral e inclui uma explicação da natureza e função do "livre arbítrio", junto com algumas sugestões sobre como essa explicação se ampliaria para a esfera da liberdade social ou política. Lembre-se que Proudhon estava, desde as primeiras obras, preocupado com a "força coletiva" que surge da produção associada e excede o poder produtivo dos indivíduos envolvidos fora da associação. Seus primeiros ataques à propriedade repousavam em grande parte no fato de que muito dos "frutos do trabalho", acima e além da subsistência, eram, na verdade, o produto desta força coletiva de um ser coletivo, em vez do produto de indivíduos, de modo que a propriedade privada deveria ser entendida como um domínio privado sobre produções essencialmente "públicas". Como era frequentemente o caso, a intuição inicial de Proudhon permaneceu parte de seu sistema maduro, mas ele veio a entender suas consequência de maneira diferente. Começando com uma versão substancialmente readaptada da monadologia de Leibniz, Proudhon veio a pensar todos os seres (definidos de maneira bem ampla) como sendo individuais apenas em virtude de serem, primeiro, um grupo, organizado ou associado de acordo com uma lei do ser (ou talvez do devir). Dentro do grupo, cada elemento tenderia a agir de acordo com uma necessidade particular, mas estas necessidades não necessariamente agiriam em conjunto. Na verdade, o contrário parecia a Proudhon ser algo como uma lei da natureza: suas antinomias eram a manifestação constante de contra-princípios e contra-necessidades, manifestações mesmo de uma espécia daquela "justiça imanente" que se tornou um dos princípios orientadores de Proudhon (junto com a soberania individual e o federalismo). O conflito de forças e necessidades era a fonte da força coletiva do grupo-enquanto-indivíduo, e a quantidade desta força se traduzia em uma quantidade de liberdade. Liberdade e necessidade coexistem e se alimentam uma à outra de várias maneiras. O jogo das necessidades, quando forte e complexo, abre espaços de liberdade em um nível, que se manifestam como grandes forças, guiadas por uma necessidade ou absolutismo de uma ordem mais alta, que podem, por sua vez, contribuir para uma liberdade de ordem mais alta, e assim por diante...

A conexão da força coletiva e de seus produtos com a liberdade obviamente muda e mesmo aumentam as apostas em relação a questões como a propriedade. Proudhon veio a defender a propriedade para seres humanos - livres absolutos, capazes de auto-reflexão e, assim, de auto-melhoria e progresso, através da aproximação, em direção a uma justiça cada vez maior - porque parecia prover o espaço necessário para que eles exercitassem seus poderes enquanto seres éticos. Há muitas peças neste quebra-cabeça, espalhadas pelos escritos de Proudhon, mas aqui estão alguns parágrafos de resumo que nos ajudam a molhar os pés nesta coisa. Perdão pela imperfeição da tradução, que está decididamente em progresso.

Vamos resumir esta teoria:
1. O princípio da necessidade não é suficiente para explicar o universo: ele implica contradição.

2. O conceito do Absoluto absoluto, que serve como fundamento para a teoria espinozista, é inadmissível: ele chega a conclusões além daquelas que os fenômenos admitem e pode ser considerado tanto o mais como um dado metafísico aguardando a confirmação da experiência, mas que deve ser abandonado por medo de que a experiência seja contrária a ele, o que é precisamente o caso.

3. A concepção panteísta do universo, ou de um melhor mundo possível servindo como expressão (natura naturata) do Absoluto absoluto (natura naturans), é igualmente ilegítima: ela chega a conclusões contrárias às relações observadas, que, como um todo e especialmente em seus detalhes, nos mostra os sistemas de coisas sob um aspecto completamente diferente.

Estas três negações fundamentais clamam por uma princípio complementar e abrem o campo para uma nova teoria, da qual agora é apenas uma questão de descobrir os termos.

4. A liberdade, ou livre arbítrio, é uma concepção da mente, formada em oposição à necessidade, ao Absoluto absoluto, e à noção de uma harmonia pré-estabelecida ou melhor mundo, com o objetivo de fazer sentido de fatos não explicados pelo princípio da necessidade, auxiliado pelos dois outros, e para tornar possível a ciência da natureza e da humanidade.

5. Ora, como todas as concepções da mente, como a própria necessidade, este novo princípio é combatido [frappé: atingido, afligido] pela antinomia, o que significa que, sozinho, ele não é mais suficiente para a explicação do homem e da natureza: é necessário, de acordo com a lei da mente, que é a primeira lei da criação, que este princípio seja equilibrado contra seu oposto, a necessidade, com o qual ele forma a primeira antinomia, a polaridade do universo.

Desta forma, necessidade e liberdade, antiteticamente unidas, são dadas a priori, pela metafísica e pela experiência, como a condição essencial de toda existência, todo movimento, de cada fim, começando com cada corpo de conhecimento e cada moralidade.

6. O que, então, é liberdade ou livre arbítrio? O poder de coletividade do indivíduo. Através dele, o homem, que é de uma só vez matéria, vida e mente, se liberta de toda fatalidade, quer física, emocional ou intelectual, subordina as coisas a si mesmo, se eleva, através do sublime e do belo, para fora dos limites da realidade e do pensamento, faz um instrumento das leis da razão, assim como daquelas da natureza, estabelece como meta de sua atividade a transformação do mundo de acordo com seu ideal e se devota a sua própria glória como um fim.

7. De acordo com essa definição de liberdade, pode-se dizer, raciocinando-se por analogia, que em todo ser organizado ou simplesmente coletivo, a força resultante é a liberdade do ser; de uma maneira tal que quanto mais o ser - cristal, planta ou animal - se aproxima do tipo humano, maior a liberdade nele será, maior o escopo de seu livre arbítrio. Entre os próprios homens, o livre arbítrio se mostra mais energético conforme os elementos que dão origem a ele são, eles mesmos, mais desenvolvidos em poder: filosofia, ciência, indústria, economia, lei. É por isto que a história, redutível a um sistema por seu lado fatal, se mostra progressiva, idealista e superior à teoria do lado do livre arbítrio, a filosofia da arte e da história tendo em comum que a razão das coisas, que serve como seu critério, é, não obstante, impotente para explicar todo seu conteúdo.