O Bolo está Podre: Heterossexismo, Privilégio do Casamento, e o Caso do Casamento Queer1
I. Adão e Estevão / Eva e Lilith deveriam ter permissão para casar?
Suponhamos que temos quatro pessoas jovens solteiras, algumas das quais estão desesperadamente apaixonadas uma pela outra: Adão, Eva, Estevão e Lilith. Como muitas pessoas jovens apaixonadas, elas querem se casar e ter uma família. Elas podem? Em nossa atual sociedade, isto depende muito exatamente de quais delas estamos falando. Por exemplo, Adão, Eva e Estevão não podem tods se casarem entre si; apenas casais têm permissão para casar. Similarmente, Eva não pode se casar com Adão e depois também se casar com Estevão, sem primeiro terminar o casamento com Adão; cada parte do casal casado só tem permissão para ser casada com a outra parte do casal. Uma das características mais controversas do cenário é que Adão não pode se casar com Estevão, e Eva não pode se casar com Lilith: em nossa atual sociedade apenas mulheres têm permissão para se casarem com homens, e vice-versa; apenas casais heterossexuais têm, atualmente, permissão para se casar. Para muits defensors progressistas dos direitos gays, a proibição do casamento homossexual é um dos sinais predominantes da homofobia, do heterossexismo e da discriminação institucionalizada contra pessoas queer de nossa sociedade, e a solução é estender a instituição do casamento para incluir casais do mesmo sexo. Conservadors retorquem que a instituição do casamento é tal que estendê-la causaria danos irreparáveis ao casamento e aos valores que ele expressa ou produz para nossa sociedade. Durante os últimos dez ou vinte anos, discussões acaloradas no mainstream sobre o casamento queer surgiram periodicamente de tempos em tempos, com estes dois entendimentos mais ou menos monopolizando a discussão. Tendo em consideração os argumentos para cada posição, no entanto, ambas as posições estão fundamentadas em argumentos vulgares e um entendimento deficiente do casamento e de sua relação com a sociedade. Uma reconsideração radical do casamente identificará o casamento heterossexual como uma forma ilegítima de privilégio heterossexista, com uma relação preocupante e persistente com a supremacia masculina. Uma vez que é a presença do casamento heterossexual, e não a ausência do casamento homossexual, que é ilegítima, a sociedade deve ser radicalmente reconstruída de tal forma que as funções legítimas do casamento sejam tomadas por instituições outras e legítima, e as funções ilegítimas sejam relegadas ao monte de sucatas da história.
II. Os benefícios do casamento
O casamento é uma instituição que confere benefícios. Isto é razoavelmente incontroverso, e deveria ser bastante facilmente justificado se disputado: se o casamento fosse tão ruim assim, é pouco provável que a maioria das pessoas em nossa sociedade pudessem ser iludidas a realizá-lo.2 Então digamos que Adão e Eva se casassem. O que isso lhes garante? E o que é negado a Adão e Estevão pelo fato de que eles não podem se casar?
O casamento carrega benefícios legais.3 Adão e Eva têm direitos conjuntos à propriedade adquirida durante o casamento, significando que cada uma tem acesso protegido a apoio financeiro e material por parte da outra. Els tem o direito a tomar medidas legais em nome da outra onde a outra não puder fazê-lo por si mesma (como em processos por morte injusta, consentimento para procedimentos médicos quando a parceira está incapacitada, consentimento para exames post-mortem, etc.) As conversas privadas de Adão e Eva tem confidencialidade privilegiada quando uma é convocada como testemunha em um caso judicial. Adão e Eva são reconhecids como uma unidade única com relação à lei de imigração (isto é, a INSNT01 não "rompe famílias"): se Eva é uma cidadã do país, e Adão nasceu no Canadá, é concedido o status de residente nos E.U.A. a Adão, em virtude dele ser casado com Eva. Virtualmente todos os programas governamentais que lidam com benefícios (Seguridade Social, Medicare, benefícios de veteranos, ajuda em caso de desastres naturais, etc.) concedem status especial para o cônjuge da recipiente, que pode lhe dar direito a benefícios adicionais. Cônjuges são designads como membros da família um do outro, concedendo-lhes uma série de direitos com relação a herança, notificação, visita em instituições públicas, licença familiar garantida para cuidado das crianças e assim por diante. Adão e Eva também gozam de status tributário especial, que lhes dá direito a uma série de deduções, créditos e isenções. Finalmente, a existência de um casamento é uma consideração importante em questões de custódia de crianças e direitos de visita; um cônjuge pode mesmo ganhar visitação a uma criança enteada com a qual ele não tem qualquer relação de sangue porque ele já esteve em uma relação marital com um progenitor.
O casamento também confere benefícios sociais. A relação de Eva e Adão é reconhecida e celebrada como legítima; em particular, sua expressão sexual um com o outro é considerada, digamos, relações conjugais, em vez de fornicação e/ou adultério. Quaisquer crianças que els tenham durante o casamento serão consideradas legítimas em vez de ilegítimas ou bastardas. Estes benefícios sociais vão além de questões de palavras legais versus palavras sórdidas ou sorrisos versos escárnio: Eva e Adão conseguem acesso especial aos planos de saúde um do outro, conseguem direitos de visita em instituições privadas, e muitos outros benefícios materiais de empresas privadas, fundações, relações informais, e assim por diante.
Uma vez que o casamento carrega consigo uma série de benefícios, é uma questão crucialmente importante quem pode receber estes benefícios. Aquels em favor do casamento queer argumentam que não há qualquer boa razão pela qual devesse se negar a Adão e Estevão ou a Lilith e Eva estes bens; aquels que se opõem dizem que estender estes benefícios do casamento para seus relacionamentos queer de alguma forma violaria ou perverteria a natureza básica do casamento.
III. O Argumento Libertário
O pontapé inicial no debate frequentemente é um argumento por parte de progressistas que é melhor caracterizado como o Argumento Libertário. Se duas das quatro jovens pessoas querem se casar, é um acordo que elas fazem entre si mesmas. Parece que, se Adão e Estevão querem fazer este arranjo privado, não há qualquer razão particular pela qual o governo deveria fazer qualquer barulho a mais do que quando Adão e Eva decidem fazer o arranjo. Assim como o governo não tem qualquer direito claro de se intrometer em quem eu mantenho como amigs, ou onde eu compro meus hambúrgueres, ele também não tem qualquer direito claro de se intrometer em com quem eu me caso ou não. Em todo caso, como Andrew Coyne (cit. em Johnson [1999]) coloca, "o ônus está com o estado. Se nenhum... interesse social pode ser mostrado, se a sanção é embasada apenas no costume ou na convenção, então não está claro o que a lei tem a ver com isso". Além disso, a progressista defendendo o Argumento Libertário mantém, meramente apontar para os gêneros ds parceirs não é bom o suficiente: fazer uma distinção apenas com essa base equivale a nada mais do que discriminação sexual crua e homofobia. Assim, a progressista coloca o ônus sobre os ombros de seu oponente; como eu escrevi (1999), "a pergunta melhor é por que deveríamos reservar os privilégios do casamento a heterossexuais. E, se não pudermos encontrar uma boa objeção à extensão destes direitos, então talvez a questão deva ser considerada encerrada".
IV. O casamento é uma instituição privada?
Mas a descrição da progressista de casamento como um arranjo puramente privado é inadequada. Na atual situação, o casamento certamente não é meramente um arranjo privado entre as duas pessoas se casando. Em particular, deve-se conseguir a concessão de uma licença de casamento por parte do governo, e deve-se encontrar uma terceira parte com o poder de pronunciar o casal casado (tal como um padre ou um juiz de paz). Além disso, muitos estados têm uma provisão para a "união estável", em que um casamento pode ser declarado por decreto governamental, sem que ambos os recém-declarados cônjuges tenham concordado mutuamente com um arranjo conjugal. Mais ainda, existe uma série de benefícios conferidos no casamento que não podem ser conferidos por qualquer arranjo puramente privado. Por exemplo, não existe tal coisa como um contrato privado para dar uma à outra benefícios tributários (caso contrário todo mundo rapidamente assinaria contratos dando umas às outras uma restituição de 100% do imposto!).
Na atual conjuntura, então, o casamento não pode ser descrito como uma instituição puramente privada. No entanto, a maioria das pessoas reconheceria que não é uma categoria puramente legal tampouco. Se, por exemplo, o governo aprovasse uma lei amanhã dizendo que todos os benefícios legais do casamento seriam conferidos a todo grupo de duas pessoas cujos sobrenomes começassem com a mesma letra, então muito provavelmente não estaríamos inclinads a dizer que estas pessoas estão realmente casadas, muito embora elas tenham todos os direitos legais de casais casados. Pode ser melhor dizer, então, que o casamento ocupa um limite entre os domínios puramente público e o puramente privado: ele é uma instituição semi-pública ou público-privada.
Desta forma, a abordagem laissez-faire pura que a progressista inicialmente promoveu tem que ser repensada. Uma vez que o casamento não é uma instituição puramente privada, não podemos simplesmente depender desta alegação a fim de justificar o casamento queer. Mais terá que ser dito antes do caso ser encerrado.
V. O Argumento Neo-Libertário
Uma possível resposta a esta acusação é manter-se firme no princípio libertário e argumentar que, embora o casamento seja público-privado na atual conjuntura, ele deveria ser um arranjo puramente privado. O fato de que o governo por acaso se intromete, por exemplo, no sexo homossexual, não significa que casais homossexuais deveriam ser proibidos de ter relações sexuais; deveria ser uma questão puramente privada contanto que fossem adults consentidors. Desta forma, as características públicas (tais como o status governamental tributário e de benefícios, a imposição do status de união estável a casais que não tenham ambs concordado com ela, a exigência de uma licença especial, e assim por diante) deveriam ser eliminadas. As características privadas (tais como direitos de visita, status de herança, propriedade conjunta, e assim por diante) podem ser designadas sob um contrato privado de casamento, aceito através da cerimônia de casamento.
No entanto, a posição neo-libertária sofre de uma confusão fatal entre instituições que são acidentalmente público-privadas, e instituições que são essencialmente público-privadas. Por exemplo: muitos estados exigem uma licença de pesca antes que você possa legalmente sair e pescar em águas públicas. No entanto, o envolvimento do Estado na pesca não é essencial para o ato da pesca em si mesmo: se você saísse e pescasse sem uma licença, você estaria pescando ilegalmente, mas você ainda estaria pescando. Mas isto não pode ocorrer com o casamento: se Lilith e Eva concordam em se casar uma com a outra, mas o Estado se recusa a conceder-lhes o status conjugal, então não diríamos que elas "se casaram ilegalmente", mas sim que elas sequer tiveram permissão para se casar. Se o casamento pudesse ser uma instituição puramente privada, então onde quer que houvesse acordo mútuo de se casar deveria haver um casamento. Assim não haveria qualquer discussão que fosse sobre o casamento queer, mas antes uma discussão sobre se o governo deveria conceder ou não benefícios àqueles casais queer casados.
Remover o aspecto público de um relacionamento conjugal público-privado seria remover o casamento do relacionamento. Qualquer argumento a favor do casamento queer deve atingir sua meta sem tornar o casamento um contrato privado entre duas partes.
VI. O Argumento Progressista-Reformista
A progressista pode responder com uma visão modificada que concede o status público-privado do casamento, mas argumenta que as atuais restrições ao acesso aos benefícios do casamento são ilegítimas e que a instituição deveria ser reformada estendendo-se ela a casais queer. De fato, muits progressistas frequentemente apresentam esta visão mais ou menos ao mesmo tempo em que promovem um argumento civil libertário, sem reconhecer que são dois argumentos diferentes e precisam ser separados um do outro.
Ao contrário do Argumento Neo-Libertário, o Argumento Progressista-Reformista aceita o casamento como uma instituição público-privada, mas argumenta que existem razões perfeitamente boas para preservar e estender os benefícios do casamento a casais queer.
Muits progressistas-reformistas promovem o argumento de que "Para gays que podem ter sido viciosamente rejeitads pela famílias e amigs por causa de sua orientação sexual, ter um parentesco legal e socialmente legítimo teria benefícios psicológicos que não podem ser ignorados" (Johnson [1999])4. Mas isto não é tanto um argumento em favor do casamento queer quanto é um argumento contra a homofobia cruel. Pessoas queer deveriam ser capazes de esperar que suas familías e amigs não as "rejeitassem viciosamente" em primeiro lugar, e deveriam ter as mesmas redes de apoio disponíveis para elas caso fossem rejeitadas que as pessoas hétero solteiras têm, sem ter que acabar se casando a fim de lidar com o trauma.
De forma semelhante, progressistas-reformistas promovem a alegação de que apenas legalizando-se o casamento queer nossa sociedade pode reconhecer os relacionamentos queer como relacionamentos legítimos e saudáveis. Mas, de novo, isto é um argumento contra o heterossexismo, não a favor do casamento queer. Certamente reconhecemos muitos relacionamentos hétero em que não há casamento, e talvez haja mesmo uma intenção consciente de não se casar, como legítimos e saudáveis. O que realmente precisa ser feito, então, é reavaliar nossas atitudes em relação a relacionamentos queer de uma maneira similar.
Finalmente, numa veia de acesso igualitário, pode-se novamente perguntar que papel o governo tem em institucionalizar a homofobia no acesso ao casamento; certamente parece que ele precisa apresentar algumas boas razões pelas quais Eva e Adão podem se casar, mas não Eva e Lilith. Na ausência de algum argumento convincente sobre a diferença entre seus relacionamentos, parece que há uma razão bastante boa para ir em frente e deixar ambos terem acesso ao casamento. Ao passo que esta posição de acesso igualitário tem uma lógica interna convincente, há uma questão importante que ela simplesmente deixa sem resposta: qual é a natureza e o propósito do casamento em primeiro lugar? Por que o governo fornece benefícios para quaisquer casais casados? Se isto for deixado sem resposta, a Reformista-Progressista não tem qualquer resposta real para a questão de por que isto deveria também ser estendido para casais homossexuais.
VII. A Visão Conservadora
A visão conservadora intervem neste ponto, e tenta defender a tese de que os privilégios do casamento são concedidos porque o governo tem um interesse convincente em apoiar algum tipo particular de ordem social, que casais queer não podem cumprir, e, desta forma, ele deveria estender estes benefícios para casais heterossexuais. Assim como o governo reconhece apenas certos tipos de corporações para um status tributário de organização sem fins lucrativos, ele reconhece apenas certos tipos de casais para o casamento porque apenas eles comprem o propósito social do casamento.
A questão, então, é que meta os casais homossexuais falham em atingir. Claramente não pode ser alguns dos tradicionais esteios do casamento tais como amor, sexo, ou a criação de filhes - dispensando as tendenciosas especulações psiquiátricas que alguns conservadors promovem, parece bem claro que Eva e Lilith podem estar loucamente apaixonadas uma pela outra, e ninguém negaria que elas são fisicamente capazes de ter relações sexuais e de fornecer as necessidades das crianças a seus cuidados. Conservadors geralmente defendem diversos entre uma bateria de argumentos quanto a por quê.
Um primeiro argumento comum é algum tipo de variação do argumento religioso. Tradicionalistas linha-dura têm argumentado que o sacramento religioso do casamento é um alicerce da sociedade moral, e que a religião em particular, ou conjunto de religiões, que els têm em mente limita o sacramento um homem e uma mulher. Mas como Elliston (1984) argumenta, "por que todos de uma sociedade deveriam estar limitados pelos ensinamentos especiais de um secto religioso? ...Nenhum secto tem o direito moral de usar a lei para impôr suas crenças sobre outros" (181). Um governo secular simplesmente não tem qualquer papel em tomar uma posição neste tipo de questão.
Outrs conservadors, desejando ficar longe de questões de Igreja-Estado, oferecem um argumento da procriação. Como James Q. Wilson (cit. em Johnson [1999]) coloca, "o que é distintivo sobre o casamento é que ele é uma instituição criada para manter a criação de filhos", e que uma vez que "Nem um casal gay nem um lésbico pode, com seu próprios recursos, produzir uma criança", seria uma perversão do casamento estendê-lo a parceirs do mesmo sexo. Mas isto é claramente um argumento que demonstra ao mesmo tempo muito e muito pouco. Embora Adão e Estevão não possam (com a atual tecnologia) ter uma criança juntos, eles certamente podem participar da criação de filhes: ou Adão, ou Estevão, ou ambos, podem ter filhes através de relacionamentos heterossexuais anteriores, de adoção, do consentimento de uma mãe de aluguel, ou da tecnologia reprodutiva moderna. Por outro lado, se tomarmos o argumento de Wilson por seu valor de face, e seguirmos ele até seu fim lógico, ele também excluiria casamentos entre casais heterossexuais que não têm filhes por escolha, ou que não podem mais ter ou criar filhes devido a idade avançada. De fato, pareceria que a posição de Wilson obrigaria que casais pós-menopausa fossem forçados a ou adotar algumas crianças a mais, ou então se divorciarem, uma vez que, de outra forma, eles não teriam mais filhes.
Finalmente, a conservadora pode recorrer a um argumento da tradição e argumentar que o casamento simplesmente sempre foi definido em termos de casais heterossexuais, e se começarmos a brincar com essa concepção de casamento testada pelo tempo, podem haver consequências horrendas. De fato, els argumentam, a atual "crise do casamento" e as taxas crescentes de divórcio são um resultado direto da aceitação crescente de padrões afrouxados em relação a relacionamentos sexuais além da monogamia heterossexual legalmente ordenada, e que isto tem consequências terríveis, variando desde doenças venéreas e gravidez fora do casamento a taxas maiores de assassinatos e pobreza nos centros urbanos. A consideração completa do argumento da tradição exigirá um entendimento do conceito de casamento, a história do casamento, e o relacionamento entra as duas.
VIII. O conceito de casamento
Todos os argumentos até agora afundaram-se em entendimentos inadequados do conceito que a palavra 'casamento' designa. Exatamente o que é o casamento é raramente enunciado, porque a instituição é comum o suficiente para que nenhuma análise conceitual seja tomada como necessária.
Lyla O’Driscoll (1977) identifica corretamente duas características essenciais do casamento quando ela argumenta que "A diferença entre uma sociedade com casamento e uma sem ele é que, na primeira, as regras constituintes de uma instituição social existente distinguem entre progenitura ilegítima e legítima e caracterizam instâncias reais ou possíveis de congresso sexual enquanto relações conjugais" (132). Por mais importante que possam ser essas características, no entanto, elas não fornecem um entendimento conceitual adequado de casamento, porque são circulares. Distinguir entre progenitura legítima e ilegítima, e relações conjugais em contraste com adultério ou fornicação, é justamente distinguir entre crianças e sexo que ocorrem dentro de um relacionamento conjugal e aqueles que não o fazem. Mas O'Driscoll não forneceu uma explicação para o que constitui entrar nesse relacionamento. É provável que O’Driscoll falhe em fazer isso porque ela mantém que "o que mais quer que seja, o casamento é uma instituição social" (132), focando no aspecto público dele. Verdade, o casamento tem aspectos de uma instituição social pública. E é também verdadeiro que entre seus aspectos sociais mais importantes está que ele distingue entre progenitura legítima e ilegítima, entre sexo conjugal e não conjugal. Mas além do que o casamento regula, devemos também ver como as relações conjugais vêm a existir em primeiro lugar.
Já vimos que o casamento é essencialmente uma instituição limítrofe público-privada. Portanto, tanto o reconhecimento da comunidade quanto a participação individual são elementos essenciais. Um aspecto importante disto é que o reconhecimento da comunidade deve envolver privilegiamento social, econômico e legal por parte da comunidade e de seu órgão governante. Mais ainda, o reconhecimento da comunidade é embasado no status especial do agregado familiar ou da família nuclear. A lei de imigração concede residência a cônjuges porque a unidade de imigração é a família nuclear. Casais casados podem apresentar declarações fiscais conjuntas porque a unidade da avaliação fiscal é a família nuclear. Benefícios de seguro são concedidos a cônjuges porque planos de seguro asseguram famílias e não indivíduos. A herança tem por padrão um cônjuge porque a herança corre através de linhas de família, com o primeiro padrão sendo a família nuclear (cônjuge e filhes). De fato, não estaria muito longe dizer que a unidade fundamental da sociedade civil em sociedades com casamento não é o indivíduo, mesmo. A unidade fundamental da cidadania é o agregado familiar ou a família nuclear. As crianças são, na sociedade, 'cobertas' pelo agregado familiar de seus pais; adults não casads formam seus próprios agregados familiares de uma única pessoa (ou mais, se tiverem filhes).
Podemos então ter uma noção do conceito de casamento adequadamente (embora isto não se pretenda como uma definição final): o casamento é um processo através do qual duas pessoas realocam seu status de cidadania dentro de uma sociedade de agregados familiares5, ao serem reconhecidas como unidas em um único agregado familiar, por um período indefinido de tempo, santificando um relacionamento sexual e a criação de filhos pelo casal, e através da qual esse agregado familiar recebe privilégios legais, societais e/ou econômicos sobre os agregados familiares consistindo de indivíduos solteiros.
Eu intencionalmente menosprezei certas questões aqui. Em particular, não há qualquer palavra sobre se arranjos polígamos (poliginia, poliandria, casamentos grupais) podem contar como casamento (o casamento é especificado como sempre entre casais, mas nada é dito sobre se casa membro do casal deve apenas ser casado ao outro membro e a mais ninguém). O casamento também foi intencionalmente definido de uma forma neutra de gênero. Embora alguns conservadors contestariam que 'casamento' também inerentemente inclui o conceito de uma união especificamente heterossexual, isto meramente define a questão de casamentos do mesmo sexo como inexistente por meio de um sofisma semântico, sem esclarecer quaisquer das questões éticas ou políticas reais: isso tornaria o debate casamento queer em um argumento, não de filosofia, mas de lexicografia. Responder que aquilo sobre o que estamos debatendo deveria ser chamado de 'casamento' ou de algum eufemismo como 'parceria doméstica' ou 'união civil' não nos diz se sobre o que estamos falando é justificado ou não. Como Elliston (1984) argumento, "Para manter a questão onde ela pertence - no território moral - uma definição neutra de monogamia deveria ser empregada que não fuja à questão da legitimidade do casamento homossexual viciando o dado semântico logo de cara" (150).
Se esta elaboração for aceita, então quaisquer que sejam as identidades ds parceirs, o casamento é entendido como um relacionamento de privilégio em vez de um relacionamento privado entre dois indivíduos, e a questão de se casais queer deveriam ter permissão para se casar fica em posição secundária a uma procupação maior. Especificamente, por que o privilégio do casamento sequer existe? Por que as sociedades deveriam sequer operar ao nível de agregados familiares privilegiados e desprivilegiados, em vez de ao nível de indivíduos iguais?
IX. Privilégio do Casamento, Histórico e Contemporâneo
Existem, é claro, razões históricas para a existência do privilégio do casamento. Na história de nossa própria sociedade, estas razões são particularmente feias. Historicamente, a única forma de 'agregado familiar' que tem permissão para se formar através do casamento é uma família nuclear monogâmica heterossexual. Desta forma, o privilégio do casamento é a subsidiamento social da monogamia heterossexual. Verifica-se que o que é heterossexista e homofóbico sobre o casamento não é, antes de mais nada, a proibição do privilégio do casamento gay; mas antes, a existência do privilégio do casamento hetero.
Além disso, uma coisa frequentemente perdida em comentadors moderns é quão radicalmente a instituição do casamento foi reformada nos tempos modernos, com relação à política sexual entre marido e mulher. Apenas um século e meio atrás, o casamento era pouco mais do que um relacionamento de propriedade privada em que o marido recebia o controle sobre a mulher de seu guardião masculino anterior, usualmente seu pai. Como Blackstone (cit. em Anthony [1902]) escreveu,
Através do casamento, o marido e a mulher são uma pessoa na lei; isto é, a existência legal da mulher é fundida naquela do marido. Ele é seu barão ou senhor, obrigado a supri-la com abrigo, comida, vestimenta e remédio, e tem direito a seus ganhos e ao uso e custódia de sua pessoa, que ele pode apreender onde quer que possa encontrar. ...Isto é em respeito aos termos do contrato de casamento e à enfermidade do sexo [feminino]. (7-8)
Sob a instituição do casamento do começo e meio do século XIX, mulheres casadas perdiam acesso ao controle de propriedade privada, a buscar ação através do sistema legal, e mesmo controle sobre seus próprios corpos. Sua identidade enquanto cidadãs era simplesmente anexada ao marido; como a Declaração de Sentimentos emitida pela convenção de Seneca Falls colocou (cit. em Anthony [1902] 2), "Ele a tornou, se casada, aos olhos da lei, civilmente morta". O privilégio do casamento, até não muito tempo atrás, era instituído como uma forma de supremacia masculina manifesta, equivalendo a pouco mais do que uma escravidão das esposas por parte dos maridos.6
Hoje, a situação melhorou radicalmente. Maridos e mulheres gozam de um status e de direitos civis mais ou menos iguais ante à lei, podem manter sua própria independência financeira, e podem mudar todas as cerimônias históricas significativas da supremacia masculina sobre a família (tais como o pai simbolicamente 'dando a mão da noiva' para seu marido, manter seu próprio sobrenome, etc.) Existe, por outro lado, ainda muito que é perturbador nas operações internas das famílias, tal como o poder adulto sobre as crianças, e as práticas culturais que continuam a privilegiar o marido como 'chefe de família' acima da mulher.
X. Adão e Eva deveriam ter permissão para se casar?
No entanto, existem preocupações mais profundas do que com as operações internas de uma família. Em todos os casos, o casamento remarca uma forma específica de privilégio para alguns tipos de agregados familiares sobre outros. Mesmo se todo agregado familiar casado fosse uma democracia participativa perfeita, o privilégios dos agregados casados sobre os não casados (e assim, de pelo menos uma das pessoas no agregado casado sobre a pessoa no agregado não casado) é uma instituição social questionável. Que direito o governo ou a comunidade tem de subsidiar uma forma particular de sexualidade? Atualmente, apenas a monogamia heterossexual é subsidiada, fazendo da instituição um grande ato de privilégio heterossexista; e se fosse estendida para incluir casais queer, ainda privilegiaria pessoas em relacionamentos sexuais de longo prazo sobre aquelas que não estão atualmente nestes relacionamentos.
Como qualquer privilégio societal, deve haver uma boa razão para tal privilégio, ou então ele deveria ser abolido. Dada a natureza supremacista masculina e heterossexista da tradição, o apelo conservador para a tradição não será suficiente se estivermos comprometids com uma sociedade livre de tais preconceitos (algumas das razões defendidas pera se institucionalizar esse preconceito, tais como argumentos de moralidade religiosa e da criação de filhes, já foram consideradas e rejeitadas acima). Similarmente, os argumentos progressistas-reformistas de acesso igualitário não mostrarão que o casamento queer é justificado (se o próprio privilégio do casamento é ilegítimo, então casais homossexuais e heterossexuais ainda deveriam ter acesso igualitário ao casamento: o = o).
Sem melhores justificativas do que foram promovidas, a demanda conservadora por privilégio exclusivo para casais monogâmicos heterossexuais é, de fato, homofóbica e heterossexista, mas o clamor progressista-reformista de "Deixe-nos comer o bolo de casamento!" é, para extrapolar uma metáfora, apenas cortar para os casais homossexuais uma fatia igual de um bolo podre.
Com efeito, a crítica progressista-reformista é ela própria frequentemente sutilmente heterossexista, pelo fato de que os argumentos frequentemente, num grau mais ou menos evidente, sugerem que o ideal mais alto ao qual pessoas queer podem aspirar é o ideal de ter um relacionamento exatamente igual ao mainstream hétero, exceto com uma configuração de gênero diferente no casal.7
XI. A Crítica Radical: Uma Sociedade Sem Casamento
A crítica radical do casamento analisa o privilégio do casamento como um privilégio social injustificado e argumenta que os males sociais em torno do casamento (incluindo o privilégio heterossexista de casais heterossexuais sobre casais homossexuais através do casamento) são melhor resolvidos não "reformando" e remendando o privilégio do casamento, mas indo à raíz do problema e abolindo o casamento, re-orientando a comunidade para um sociedade de indivíduos em vez de agregados familiares. Como um exemplo concreto deste tipo de análise, a crítica feminista radical Betsy Brown (2000) escreve que, em vez de lutar pelo casamento de mesmo sexo, defensors queer e feministas deveriam trabalhar pelos princípios de que:
- Tods deveriam ter um direito garantido a assistência médica. Um seguro de saúde universal tornaria o debate sobre benefícios para parceirs inteiramente desnecessário.
- Leis de imigração deveriam ser abolidas. Parceirs do mesmo sexo de cidadãos dos E.U.A. poderiam, então, entrar no país sem qualquer dificuldade. A perseguição de trabalhadors ilegais também acabaria.
- Leis que limitam o número de pessoas "sem parentesco" que vivem em um lar deveriam também ser abolidas.
- Deveríamos desenvolver o conceito de parente mais próximo designado (DNOK, na sigla em inglêsNT03). Isto seria como a parceria doméstica, mas mais inclusiva. Você poderia nomear qualquer número de pessoas como DNOKs - amigs assim como amantes. Você teria o direito a incluir - ou excluir - quaisquer de seus parentes biológicos. Seus DNOKs teriam direitos automáticos de lhe visitar no hospital, tomar decisões médicas para você caso você esteja incapacitade, assumir a custódia de suas crianças quando você morrer, e herdar de você em parcelas iguais. (Se você for realmente rico, um pouco do seu patrimônio deveria ser apropriado para financiar o item número um.)
- Finalmente, o casamento é melhor entendido como um sacramento religioso8. O governo não tem nada mais a ver com determinar quem casa do que ele tem com decidir quem é um membro em boas condições da igreja Batista. Sob o princípio da separação da igreja do estado, o governo não deveria reconhecer o casamento para ninguém de qualquer orientação sexual. Se você deseja o direito de casar, isso deveria ser uma questão entre você, sua noiva, e os representantes devidamente mandatados de qualquer fé que você pratique. Se você não gostar de nenhuma das religiões disponíveis, sinta-se livre para começar sua própria, com ou sem um deus ou deusa. Por exemplo, você poderia começar a Igreja Universal do Matrimônio Queer.
Em cada caso, as funções do casamento que são legítimas (tais como a questão puramente privada de designar um parente mais próximo) poderiam ser tratadas através de meios alternativos. As funções ilegítimas (tais como status especial para impostos ou programas de benefícios) simplesmente serão eliminadas.
As mudanças solicitadas pela crítica radical envolveriam um reorientação verdadeiramente revolucionária da sociedade. Do ponto de vista legal apenas, ela exigirá uma inspeção fundamental do direito tributário, do direito social, da custódia de crianças, da herança e de inúmeras outras categorias.
Do ponto de vista social, por outro lado, muito poderia ficar da mesma forma. Bastante ironicamente, a maior parte do padrão cotidiano do que agora é a vida conjugal poderia permanecer no lugar enquanto o casamento fosse abolido. Ainda seria perfeitamente concebível, e mesmo bastante provável, que casais eróticos (incluindo casais heterossexuais monogâmicos) escolhessem viver juntos, compartilhar recursos econômicos, e compartilhar muito de seu tempo juntos. Muitos podem escolher criar filhes. Alguns podem escolher celebrar seus relacionamentos com cerimônias e festas em grandes eventos tais como irem morar juntos, que poderia muito bem ser muito parecido com os casamentos atuais. Tudo positivo e afirmativo da vida em relacionamentos românticos poderia existir bastante bem dentro de uma sociedade sem qualquer categoria especial de 'casamento'.
No entanto, assim como muito ficaria o mesmo, muito também sofreria um exame verdadeiramente radical. Com as categorias especiais de 'marido' e 'esposa' (assim como 'noiva' ou 'divorciada' e assim por diante) ausentes, assim também estaria a restrição sobre a sexualidade para relacionamentos que são casamentos ou "parecidos com casamento' (isto é, namorado/namorada). A sexualidade não mais seria mediada através das categorias público-privadas do namoro e do casamento, mas sim através de relacionamentos privados completamente individualizados, efetivamente uma classe especial de 'amizade erótica'. Haveriam casais heterossexuais monogâmicos ainda, com certeza, mas toda outra forma de sexualidade (assim como de assexualidade) mutualmente consentida e recompensadora seria igualmente legítima e válida, e nenhuma receberia privilégio especial e subsídio sobre as outras.
O trabalho de imaginar tal sociedade a partir de uma sociedade onde o privilégio do casamento é um dos princípios fundamentais da sociedade civil é extraordinariamente difícil. No entanto, se o privilégio do casamento for reconhecido como tal e não puder ser justificado, então é imperativo que comecemos a fazer este trabalho difícil e lento de re-imaginar e reconstruir novas maneiras de trabalhar, brincar, viver e amar juntos.
NOTAS
[1] Para explicar alguns termos centrais: Queer é aproximadamente sinônimo de Lésbica, Gay, Bissexual, Trans, ou Em Questionamento, mas sem qualquer conotação de que uma sexualidade queer é necessariamente um traço fixo de caráter ou algo com que você "nasceu". Homossexualidade e gay são usados por todo o texto para significar qualquer relacionamento romântico-sexual entre duas pessoas do mesmo gênero (seja masculino ou feminino), quer estas pessoas sejam exclusivamente homossexuais, bissexuais, ou qualquer outra variação concebível. Homofobia é uma atitude manifesta de hostilidade em relação a pessoas que têm relacionamentos homossexuais; heterossexismo é uma atitude que não necessariamente envolve hostilidade evidente, mas simplesmente ignora relacionamentos homossexuais e trata relacionamentos românticos de tal forma que apenas relacionamentos heterossexuais são vistos como "reais" ou legítimos.
[2] Isto é reconsiderado a seguir com respeito aos efeitos históricos do casamento sobre as mulheres, mas sua verdade essencial permanecerá incontestada.
[4] Extraído de um antigo artigo que escrevi defendendo a posição Progressista-Reformista em favor do casamento queer. Eu não mantenho mais as visões que defendi nesse artigo e considero os argumento que fiz como não apenas de má qualidade, mas também frequentemente heterossexistas, excessivamente disposto a naturalizar a agressão masculina, e carecendo de imaginação para rotas alternativas para os "benefícios" do casamento.
[5] Isto é oposto a uma sociedade de indivíduos, em que as instituições sociais aplicam benefícios, custos, e regras para indivíduos em vez de para agregados familiares de uma ou mais pessoas.
[6] É importante notar aqui que, muito embora apenas o pater familias recebesse qualquer "privilégio" em particular deste relacionamento, ele ainda satisfaz a elaboração anterior do conceito de 'casamento', uma vez que ela especificava que o agregado familiar recebia privilégio, mas não especificava se todos os membros individuais do agregado recebiam privilégios. O marido era explicitamente definido como 'chefe de família' pela lei e pelo costume, e portanto eram os seus interesses que definiam os interesses da unidade do 'agregado familiar' na sociedade.
[7] A retórica de autores tais como Andrew Sullivan, Jonathan Rauch, e antigamente, eu mesmo, frequentemente promove argumentos de que "permitir que gays se casem ajudaria a encorajar uma vida conjugal estável enquanto desencoraja o estilo de vida marginal extravagante e muitas vezes promíscuo de alguns dos ativistas homossexuais mais vocais" (Johnson [1999]). Esta retórica acaba muitas vezes como pouco mais do que a insistência de que o ideal para queers é simplesmente a assimilação incondicional ao mainstream heterossexual/heterossexista, se mudar para os subúrbios e se tornar Soccer Mom QueensNT02
[8] Em uma sociedade completamente livre de casamento, o aspecto de sacramento religioso do casamento também deixaria de existir, uma vez que isto é também um status de privilégio dentro de uma sub-comunidade. Mas Brown está apresentando direções políticas que, claro, serão implementadas para trazer a sociedade em direção a uma reconstrução radical sem casamento, em vez de uma sociedade em que isto já aconteceu.
[NT01] Agência de Imigração dos Estados Unidos
[NT02] Soccer Mom, de modo geral, refere-se a uma mulher de classe média suburbana norte-americana que passa uma quantidade significativa de seu tempo transportando seus filhos em idade escolar para eventos esportivos juvenis ou outras atividades. Vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Soccer_mom
[NT03] designated next of kin.
Referências
- Anthony, Susan B. (1902). Woman’s Half-Century of Evolution. University of Virginia Library Electronic Text Center (2000). Online.
- Brown, Betsy (2000). A Radical Dyke Experiment for the Next Century: 5 Things to Work For Instead of Same-Sex Marriage. off our backs, Janeiro 2000 V.30; N1. p. 24.
- Johnson, Charles W. (1999). Civil Rights and Family Values: Defending Homosexual (and Heterosexual) Marriage. Online.
- Shepherd, C. Ann (2001). The Legal Benefits of Marriage, in Homosexuality: Common Questions Answered. Online.
- Trevas, Robert, Arthur Zucker, e Donald Borchert (eds.) (1997). Philosophy of Sex and Love: A Reader. Prentice Hall: New York.
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