domingo, 29 de março de 2015

Contra o Feminismo Carcerário

Contra o Feminismo Carcerário


Depender da violência estatal para refrear a violência doméstica acaba apenas prejudicando as mulheres mais marginalizadas


Cherie Williams, uma mulher Afro-Americana de trinta e cinco anos de idade do Bronx, queria apenas se proteger de seu namorado abusivo. Então ela chamou a polícia. Mas, embora Nova Iorque exija que a polícia faça uma prisão ao responder a chamados de violência doméstica, os policiais não saíram de seu carro. Quando Williams exigiu os números de seus distintivos, a polícia a algemou, levou-a até um estacionamento deserto, e a espancou, quebrando seu nariz e sua mandíbula, e rompendo seu baço. Então a deixaram no chão.


"Eles me disseram que se me vissem na rua, eles me matariam", testemunhou Williams mais tarde.


O ano era 1999. Foi meia década após a aprovação do Violence Against Women Act (VAWA)NT01, que mobilizou mais policiais e introduziu um sentenciamento mais punitivo numa tentantiva de reduzir a violência doméstica. Muitas das feministas que fizeram lobby pela aprovação do VAWA permaneceram em silêncio sobre Williams e inúmeras outras mulheres cujas chamadas para o 190 resultaram em mais violência. Feministas frequentemente brancas e endinheiradas, seu feito legislativo fez pouco para conter a violência contra as mulheres menos abastadas e mais marginalizadas como Williams.


Esta variante carcerária do feminismo continua a ser a forma predominante. Ao passo que suas aderentes provavelmente rejeitariam o descritivo, feminismo carcerário descreve uma abordagem que vê o aumento do policiamento, da prossecução e do aprisionamento como a solução primária para a violência contra a mulher.


Esta postura não reconhece que a polícia frequentemente é fornecedora de violência e que as prisões são sempre lugares de violência. O feminismo carcerário ignora as maneiras em que a raça, a classe, a identidade de gênero, e o status de imigração deixam certas mulheres mais vulneráveis à violência e que uma maior criminalização frequentemente coloca estas mesmas mulheres em risco de violência estatal.


Elencar policiamento e prisões como a solução para a violência doméstica tanto justifica aumentos nos orçamentos da polícia e de prisões quanto desvia atenção dos cortes para programas que permitem que sobreviventes escapem, tais como abrigos, habitação social, e bem-estar. E, finalmente, posicionar a polícia e prisões como o principal antídoto desencoraja buscar outras respostas, incluindo intervenções comunitárias e organização de longo prazo.


Como chegamos a este ponto? Em décadas anteriores, a polícia frequentemente respondia a chamados de violência doméstica dizendo para o abusador esfriar a cabeça, e então partia. Nos anos 1970 e 1980, ativistas feministas entravam com processos contra os departamentos de polícia por sua falta de resposta. Em Nova Iorque, Oakland, e Connecticut, os processos resultaram em mudanças substanciais em como a polícia lidava com chamados de violência domésticas, incluindo reduzir sua capacidade de não prender.


Incluído no Violent Crime Control and Law Enforcement ActNT02, o maior projeto de lei criminal da história dos EUA, o VAWA foi uma extensão destes esforços anteriores. A legislação de US$30 bilhões forneceu financiamento para cem mil novos agentes policiais e US$9.7 bilhões para prisões. Quando feministas de segunda onda proclamaram "o pessoal é o político", elas redefiniram as esferas privadas como o domicílio como objetos legítimos de debate político. Mas o VAWA sinalizou que esta proposição potencialmente radical havia tomado um tom carcerário.


Ao mesmo tempo, políticos e muitos outros que pressionaram pelo VAWA ignoraram as limitações econômicas que impediam dezenas de mulheres de deixarem relacionamentos violentos. Dois anos mais tarde, Clinton assinou a legislação de "reforma do bem-estar". O Personal Responsability and Work Opprtunity and Reconciliation ActNT03 estabeleceu um limite de cincos anos para o bem-estar social, exigiu que beneficiáries trabalhassem após dois anos, independente de outras circunstâncias, e instaurou uma proibição vitalícia de bem-estar social para aquels condenads por crimes relacionados a drogas ou que tivessem violado a liberdade condicional.


No final dos anos 1990, o número de pessoas recebendo bem-estar social (a maioria das quais eram mulheres) tinha caído 53 por cento, ou 6.5 milhões. Condensar o bem-estar social retirou uma rede de segurança econômica que permitia que sobreviventes fugissem de relacionamentos abusivos.


Feministas mainstream também pressionaram com sucesso por leis que exigem que a polícia prenda alguém após receberem um chamado de violência doméstica. Até 2008, quase metade de todos os estados tinha uma lei de prisão obrigatória. Os estatutos também levaram a prisões duplas, em que a polícia algema ambas as partes porque percebem ambas como agressoras, ou não conseguem identificar o "agressor primário".


Mulheres marginalizadas por suas identidades, tais como queers, imigrantes, mulheres de cor, mulheres trans, ou mesmo mulheres que são percebidas como barulhentas ou agressivas, frequentemente não se enquadram em noções pré-concebidas de vítimas de abuso e são, assim, presas.


E a ameaça de violência estatal não está limitada à agressão física. Em 2012, Marissa Alexander, uma mãe negra da Flórida, foi presa após ter disparado um tiro de advertência para impedir seu marido de continuar a atacá-la. Seu marido deixou a casa e chamou a polícia. Ela foi presa e, embora ele não tenha sido ferido, processada por agressão qualificada.


Alexander argumentou que suas ações foram justificadas sob a lei "Defenda Seu Terreno" da Flórida. Ao contrário de George Zimmerman, o homem que alvejou e matou Trayvon Martin, de dezessete anos de idade, três meses antes, Alexander não teve sucesso em usar essa defesa. Apesar do depoimento de seis páginas de seu marido, em que ele admitiu abusar de Alexander assim como de outras mulheres com quem ele teve filhos, um júri ainda a considerou culpada.


O promotor então adicionou o aumento de sentença 10-20-VIDA do estado, que obriga uma sentença de vinte anos quando uma arma de fogo é disparada. Em 2013, uma corte de apelação derrubou a condenação dela. Em resposta, o promotor prometeu buscar uma sentença de sessenta anos durante seu julgamento em Dezembro.NT04


Alexander não é a única sobrevivente de violência doméstica que tem sido forçada a suportar uma agressão adicional por parte do sistema legal. No estado de Nova Iorque, 67 por cento das mulheres enviadas para a prisão por matado alguém próximo a elas tinham sido abusadas por essa pessoa. Do outro lado do país, na Califórnia, um estudo prisional descobriu que 93 por cento das mulheres que tinham matado seus companheiros tinham sido abusadas por eles. Sessenta e sete por cento destas mulheres reportaram que estavam tentando proteger a si mesmas ou a suas crianças.


Nenhuma agência tem a tarefa de coletar dados sobre o números de sobreviventes aprisionadas por se defenderem; desta forma, não há estatísticas nacionais sobre a frequência desta interseção violência doméstica-criminalização. O que as cifras nacionais mostram de fato é que o número de mulheres na prisão aumentou exponencialmente ao longo das últimas décadas.


Em 1970, 5.600 mulheres estavam encarceradas em toda a nação. Em 2013, 111.300 mulheres estavam em prisões estaduais ou federais e outras 102.400 em cadeias locais. (Estas números não incluem mulheres trans encarceradas em cadeias e prisões masculinas.) A maioria experimentou abuso físico ou sexual antes da prisão, frequentemente nas mãos de seus entes queridos.


Feministas carcerárias disseram pouco sobre a violência do sistema legal e sobre o esmagador número de sobreviventes atrás das grades. Similarmente, muitos grupos se organizando contra o encarceramento em massa frequentemente falham em chamar a atenção para a violência contra as mulheres, frequentemente focando exclusivamente nos homens na prisão. Mas outrs, especialmente mulheres de cor ativistas, acadêmicas e organizadoras, têm se manifestado.


Em 2001, a Critical Resistance, uma organização pela abolição da prisão, e a INCITE! Women of Color against ViolenceNT05, uma rede anti-violência, emitiram uma declaração avaliando os efeitos do aumento da criminalização e do silêncio acerca do nexo de gênero e da violência policial. Notando que depender do policiamento e das prisões desencorajava a organização de respostas e intervenções comunitárias, a declaração desafiou comunidades a fazerem conexões, criarem estratégias para combater ambas as formas de violências, e documentarem seus esforços como exemplos para outras buscando alternativas.


Indivíduos e grupos de base aceitaram esse desafio. Em 2004, a defensora anti-violência Mimi Kim fundou a Creative Interventions. Reconhecendo que abordagens alternativas para a violência precisam ser demonstradas, o grupo desenvolveu um site para coletar e oferecer publicamente ferramentas e recursos sobre o enfrentamento da violência na vida cotidiana. Ele também desenvolveu o StoryTelling and Organizing Project, em que as pessoas podem compartilhar suas experiências de intervir na violência doméstica, na violência familiar e no abuso sexual.


Em 2008, as organizadoras de justiça social e sobreviventes de abuso Ching-In Chen, Jai Dulani e Leah Lakshmi Peipnza-Samarasinha compilaram o "The Revolution Starts at Home"NT06, uma zine de 111 páginas documentando vários esforços em círculos ativistas para responsabilizar abusadores. Piepnza-Samarasinha descreveu como amigs confiáveis ajudaram a imaginar estratégias para mantê-la segura de um ex violento e abusivo que compartilhava muitos dos mesmos círculos políticos e sociais:


Quando ele apareceu na exibição do filme sobre justiça prisional que eu estava assistindo, realizada em uma pequena sala de aula em que teríamos sentado muito próximos um do outro, amigs lhe disseram que ele não era bem-vindo e pediram que ele partisse. Quando ele ligou para um programa de rádio Sul-Asiático local que estava fazendo um programa especial sobre violência contra mulheres, uma das DJs disse a ele que ela sabia que ele tinha sido abusivo e que ela não ia deixá-lo ir ao ar se não estivesse disposto a reconhecer sua própria violência.


Meu plano de segurança incluía nunca ir a um clube sem um grupo das minhas garotas para me garantir. Elas entravam primeiro e sondavam a casa em busca dele, e ficavam perto de mim. Se ele aparecesse, a gente se reunia para decidir o que fazer.


Em seu artigo "Domestic Violence: Examining the Intersections of Race, Class, and Gender"NT07, as acadêmicas feministas Natalie Sokoloff e Ida Dupont mencionam outra abordagem tomada por mulheres imigrantes e refugiadas em Halifax, Nova Escócia, uma que combatia as subjacências econômicas que impedem muitas de escapar de relacionamentos abusivos.


As mulheres, muitas das quais tinha sobrevivido não apenas ao abuso, mas à turtura, à perseguição política e à pobreza, criaram um grupo de suporte informal em um centro de atendimento. Dali, elas formaram uma empresa cooperativa de alimentação, que lhes permitiu oferecer assistência habitacional para aquelas que precisavam. Além disso, as mulheres compartilhavam o cuidado das crianças e suporte emocional.


Como estes exemplos demonstram, estratégias para deter a violência doméstica frequentemente exigem mais do que uma única ação. Ela frequentemente exigem um comprometimento de longo prazo de amigs e comunidade para manter uma pessoa segura, como no caso de Piepnza-Samarasinha. Para aquels envolvids em imaginar alternativas, como as mulheres de Halifax, pode exigir não apenas criar táticas de segurança imediatas, mas organização de longo prazo que atentem às desigualdades subjacentes que exacerbam a violência doméstica.


Ao depender unicamente de uma resposta criminalizada, o feminismo carcerário falha em atentar para estas iniquidades sociais e econômicas, quanto mais defender políticas que garantam que as mulheres não sejam economicamente dependentes de parceiros abusivos. O feminismo carcerário falha em atentar para a miríade de formas de violência enfrentadas pelas mulheres, incluindo a violência policial e o encarceramento em massa. Ele falha em atentar para fatores que exacerbam o abuso, tais como o "direito" masculino, a desigualdade econômica, a falta de moradia segura e acessível, e a ausência de outros recursos.


O feminismo carcerário instiga o crescimento das piores funções do estado, enquanto obscurece a diminuição das melhores. Ao mesmo tempo, ignora convenientemente os esforços e a organização anti-violência por parte daquels que sempre souberam que respostas criminalizadas apresentam ameaças adicionais em vez de promessas de segurança.


O trabalho da INCITE!, da Creative Interventions, do StoryTelling and Organizing Project, e o “The Revolution Starts at Home” (que provocou tanto interesse que foi expandido para um livro são parte de uma história maior de mulheres de cor resistindo tanto à violência doméstica quanto a violência estatal. Seus esforços mostram que há uma alternativa às soluções carcerárias, que não temos que mobilizar a violência estatal em uma tentativa desastrosa de refrear a violência doméstica


Notas

[NT01] "Ato da Violência contra a Mulher", em tradução livre. É uma lei federal dos Estados Unidos, que fornece 1.6 bilhões de dólares para a investigação e o processo de crimes violentos contra mulheres, impõe restituição automática e obrigatória para as pessoas condenadas, e permite a reparação civil nos casos promotores optaram por não processar. Vide: http://en.wikipedia.org/wiki/Violence_Against_Women_Act
[NT02] "Lei contra Crimes Violentos e Controle e Aplicação da Lei", em tradução livre. Aprovada em 1994, é um ato do Congresso dos EUA que lida com o crime e aplicação da lei. Vide:
[NT03] "Lei da Responsabilidade Pessoal, da Oportunidade de Trabalho e da Reconciliação", em tradução livre.
[NT04] Esse artigo foi publicado em Outubro de 2014, na revista Jacobin. Após isso, Marissa aceitou um acordo com a promotoria que prevê 2 anos de prisão domiciliar, tendo sido liberada da prisão no dia 27 de Janeiro deste ano. Vide: http://www.freemarissanow.org/timeline.html
[NT05] "Mulheres de Cor contra a Violência", em tradução livre.
[NT06] "A Revolução Começa em Casa", em tradução livre.
[NT07] "Violência Doméstica: Examinando as Interseções de Raça, Classe e Gênero", em tradução livre.

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