segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Leve-me ao rio...

Leve-me ao rio...


Digamos que reunimos os suspeitos usuais, na beira do rio, no Estado de Natureza, ou lá por perto, para um pouco de teoria de propriedade e alguns "bons goles". John Locke diz que todo mundo pode se apropriar de um pouco da água do rio, contanto que o que eles tornam sua própria "propriedade" deixe "todo um rio da mesma água". Ora, Locke tem uma reputação de dizer coisas como "meu trabalho" quando talvez ele queira dizer o trabalho de alguma outra pessoa, então há alguma hesitação, mas parece um negócio bastante bom, assumindo que seja possível. Ora, em termos literais, parece impossível: uma quantidade de água, X, menos algum "bom gole" não-zero G, tem pouca probabilidade de ser = X. Mas, lá no Estado de Natureza, falando-se sobre "goles" de escala individual e um sistema-rio naturalmente resiliente, talvez seja pelo menos tão bom quanto possível.


Todo mundo, naturalmente, está preocupado. Há muito em jogo e todo mundo tem uma noção ligeiramente diferente sobre o que uma instituição de livre suprimento de água deveria fornecer ou permitir. Walt Whitman aparece no meio de um debate - atrasado; todo mundo conclui que ele esteve bebendo na maior parte da criação sem se importar em perguntar - e se pergunta do que se trata o alarido. Leodile Bera (também conhecida como Andre Leo) tenta resumir:


"Aqui, ferozes interesses se agitam; ali, uma fé um tanto amarga. É a liberdade que deve prevalecer ou a igualdade? ...Aos olhos dos partidários da liberdade, a igualdade ameaça tirania. Aos olhos dos igualitaristas, a liberdade sem igualdade não é nada além de uma mentira. Os primeiros temem o comunismo e os outros se opõem à exploração."


É tudo um pouco de confusão, ela suspeita.


"O antagonismo aparece entre dois princípios que, como as coisas estão agora, [nos] dividem e criam discórdia em [nossas] assembleias, embora eles componham pelo mesmo título seu mote e embora apenas sua concordância possa dar ao mundo justiça."


"E minha proposta não faria isso, como...?" Um personagem tão sombrio quanto Locke possa ser, ele realmente parece ter um ponto - assumindo que a coisa seja possível.


Então eles pensam sobre isso. Falam sobre isso. Joseph Déjacque está pronto para apontar a natureza circular do sistema-rio, de fato da hidrosfera planetária ou mesmo... É um tópico surpreendentemente popular, pelo menos entre alguns dos antigos socialistas, que se esforçam para sobrepujar uns aos outros em descrever a extensão de longo alcance do "circulus na universalidade". Mas, eventualmente, todo mundo fica com sede, e suas bocas começam a ficar um pouco secas com toda essa conversa de uns com os outros. Eles tentam ir ao que interessa.


Parece haver algum consenso aproximado de que, quando levado por necessidade ou desejo, o indivíduo pode tomar um "bom gole" do tamanho individual apropriado e que, contanto que a apropriação se mantenha individual e o ecossistema do rio retenha sua resiliência natural, as coisas provavelmente estão muito bem - e não apenas para beber. O indivíduo pode se banhar no rio, nadar ou jogar água por recreação, lavar quaisquer implementos que possam possuir - "E provavelmente até mijar nela", diz Georges Bataille - sem fazer com que a água do rio, como tal, se torne um bem rival. E um pouquinho de atenção para questões como saneamento, eliminação de água residual, etc., diminuiria esse perigo em particular consideravelmente. Aumentos na população farão com que o mesmo impacto individual seja relativamente maior, claro, assim como práticas que diminuam a capacidade do rio - ou da hidrosfera planetária em geral - de processar impurezas e essencialmente renovar a si mesmo.


Todo mundo está realmente com sede agora. Eles precisam de um copo d'água. Proudhon relembra a todos que "a humanidade procede através de aproximações" e eles provavelmente foram longe o suficiente para dar às coisas um pouco de experimentação. Todo mundo vai atrás de um "bom gole", mantendo um olho no que Bataille está fazendo, claro. Whitman joga um pouco de água, se banha e se admira,  - há muito dele, - ama cegamente praticamente todo o resto e, significativamente, não parece nem um pouco preocupado com Bataille. Tudo corre bastante suavemente. Locke está completamente tomado pelos resultados. "Veja. Tudo misturado". Ele tinha ouvido que algumas pessoas acham que ele simplesmente ficaria misturado com o lá-fora, mas ele parece está todo lá, mais um preenchimento de água. Ele aposta que poderia fazer isso com comida também. Para além disso, ele pode ter que proceder um pouco por analogia, mas... Os Fourieristas gostam de analogias, embora não estejam certos se gostarão da de Locke. Stephen Pearl Andrews está prestes a entrar com um pequeno sermão sobre a questão quando Max Stirner sorri para Locke e diz, "É tudo comida". Ele olha em volta. "Vocês são todos comida. Minha comida". Embora não, ele adiciona, em qualquer sentido legal. Ele ainda está sorrindo. Não é um sorriso legal. Pierre Leroux não parece notar. "Isso é justamente o que eu estava pensando. Bem, não exatamente, ou, quero dizer, literalmente. Você não... quero dizer:


E se a humanidade não entrasse no que se chama de três reinos da natureza!


Se a humanidade formasse um quarto reino, em que essa necessidade de sufocar e devorar um ao outro não existisse!


Se o modo de nutrição do homem pelo homem fosse puramente espiritual!


Se o homem pudesse nutrir a si mesmo espiritualmente de seus companheiros com igual proveito para todos!


Se o homem e seus companheiros fossem, na base, o mesmo homem. Se todos os homens formassem apenas um único homem, uma única humanidade!


Se o homem, assim consciente de sua natureza, restaurado à sua natureza, praticando sua natureza, devesse se tornar superior ao que se chama de natureza!


Se ele devesse pisotear essa serpente da destruição, essa píton, esse satã, em cujo nome os Malthusianos asfixiam o recém-nascido da espécie humana!


Se os cientistas, que falam em proporções e números e que opõem a progressão geométrica da população à progressão aritmética de sua subsistência, tivessem esquecido de considerar a progressão geométrica do capital, que se coloca como uma parede de bronze entre a necessidade da humanidade de se desenvolver e a faculdade que tem de fazê-lo!"


Ninguém sabe bem o que dizer para isso.


"Não é propriedade", diz Proudhon. "O qu...?" pergunta o Coro. "Propriedade", diz Proudhon, "é o direito de gozar mesmo na extensão do abuso, jus utendi et abutendi; isto é, o direito de emprestar com juros, - de alugar, adquirir e então alugar e emprestar novamente". Dentro de limites socialmente definidos, ele adiciona. Mesmo a "propriedade devoradora e antropofágica" é uma instituição essencialmente social.


Naturalmente, isso atiça todo mundo. Todo mundo conclui que Proudhon se diverte com isso - não que quaquer um neste grupo, exceto talvez Proudhon e Lewis Masquerier, esteja muito preocupado sobre com o que qualquer outra pessoa se diverte. De qualquer forma, ele tem um ponto. Por suas definições, este tipo de apropriação ingestiva e incorporadora é simplesmente uso. Quando tenta ser propriedade e faz uma reivindicação por mistura, só pode fazê-lo, bem, misturando as coisas que seriam propriedade e proprietário, de modo que ainda se parece com uso. Claro, pelas definições de Stirner, isso é propriedade e as instituições sociais produzem algo como "propriedade privada" e "Hey, você pode mijar nisso, Bataille...". Joseph Déjacque, um bom egoísta que não tem muita uso para instituições sociais além da instituição da liberdade, ainda não está certo de que a natureza não nos mistura muito mais do que a misturamos.


"...a morte não tem um lugar em todos os instantes das vidas dos seres? Pode o corpo de um homem preservar por um único momento as mesmas moléculas? Cada contato não o modifica constantemente? Pode ele não respirar, beber, comer, digerir, pensar, sentir? Toda modificação é, de uma só vez, uma nova morte e uma nova vida..."


Batailles gosta do som disso. "O que você chama de 'circulus na universalidade' é simplesmente a economia geral; e todas as entidades das quais você quer se distinguir - sua 'propriedade' acima de tudo - são economias limitadas que só podem reclamar uma existência separada ao custo de uma parte amaldiçoada, um je ne sais quoi abjeto que tem que ser suprimido ou ignorado. A propriedade é possível - ou tão possível quanto qualquer coisa - mas a um custo."


Se você esteve lendo este blog por qualquer extensão de tempo, você consegue preencher muito do diálogo a partir daqui. Há algo extremamente elegante sobre a teoria de apropriação na ressalva de Locke. Mas a "propriedade" a que ela leva parece ser a "propriedade" de Stirner, que realmente está apenas de passagem, em vez da "propriedade privada" ou da "verdadeira ficção legal" de Proudhon de jus utendi et abutendi. Há uma teoria de algo como "direitos naturais" pertencente às "propriedades" em Proudhon, uma prima de primeiro grau da teoria das paixões de Fourier. Mas esses "direitos" realmente pertencem a forças, a faculdades, a "individualidades", "humanidades" e "esferas" em todas as escalas do ser. Essas são um monte de economias limitadas, entre as quais a economia da individualidade humana é uma que estamos fadados a privilegiar. Se você apurasse os votos do pessoal à beira do rio, é pouco provável, na verdade, que você encontrasse muita resistência a esse tipo de privilégio. Mas não seria surpreendente se, entre este mesmo pessoal, não houvesse um profundo interesse em "carregar seus próprios custos"? A posição a que Proudhon chegou inicialmente era de que a "posse" batia a "propriedade" porque ela não envolvia quaisquer ficções, não impunha quaisquer custos ocultos. A posição a que ele chegou bastante rapidamente depois disso era que a liberdade humana parecia exigir algo mais complicado e potencialmente "custoso".


Há um ponto de vista, alcançável a partir de uma série de abordagens socialistas tradicionais à propriedade e explicito no mutualismo de Proudhon, que poderia abraçar algum tipo de "propriedade privada", contanto que seus custos possam ser equalizados, eliminando a possibilidade dela funcionar como um privilégio reservado para alguns poucos. Proudhon via a liberdade como inseparável, de algumas maneiras básicas, de "tomar liberdades", reclamando uma separação precisamente absoluta a que seria necessário se opor se ela não fosse necessária ao progresso, se não fosse o caso de que "é o choque de ideias que ilumina". Mas mesmo Proudhon queria mais do que isso - e ele dificilmente era a única figura exigente em nosso grupo imaginário de teóricos da propriedade.


Em última análise, queremos ver em que medida podemos fazer esses personagens difíceis e exigentes conversarem uns com os outros e conosco, e quão longe podemos chegar com o modelo de propriedade que depende da equação X-G=X.

[continua...]

Nenhum comentário:

Postar um comentário