sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Andrea Dworkin não acredita que todo sexo heterossexual é estupro

Andrea Dworkin não acredita que todo sexo heterossexual é estupro


Este "Mythistory Monday" meio que cruza a linha entre histórico e atual: o mito em questão são os incessantemente repetidos clichês de que Andrea Dworkin alega que todo sexo heterossexual é estupro. Não, ela não alega; ela nunca disse isso e repudiou isso quando lhe perguntaram diretamente. O mito é histórico, em um sentido, uma vez que lida com o desfecho de escritos chave da Segunda Onda do feminismo nos anos 1970 e 1980. O mito é atual, em um sentido, uma vez que Andrea Dworkin ainda está vivaNT01 e ainda está escrevendo, e uma vez que parece que a noção idiota parece continuar aparecendo não importa quantas vezes ela seja abordada (vide, para o exemplo mais recente, os comentários lamentáveis de Mark Fulwiler - pelos quais ele mais tarde se retratou - na controvérsia na Liberty and Power que Roderick e eu conseguimos causar). Mas seja histórico ou atual, é tudo besteira.


Os caluniadores de Dworkin, quando se incomodam em citar qualquer coisa que seja de sua obra (o que eles usualmente não fazem), normalmente extraem uma citação ou outra fora de contexto do Intercourse; frequentemente, por exemplo, algo como isto:


Um ser humano tem um corpo que é inviolado; e quanto ele é violado, é abusado. Uma mulher tem um corpo que é penetrado no coito: permeável, sua solidez corpórea uma mentira. O discurso da verdade masculina - literatura, ciência, filosofia, pornografia - chama essa penetração de violação. Isto ele faz com alguma consistência e alguma confiança. Violação é um sinônimo de coito. Ao mesmo tempo, a penetração é tomada como sendo um uso, não um abuso; um uso normal; é apropriado entrar nela, empurrar para dentro ("violar") dos limites do seu corpo. Ela é humana, claro, mas por um padrão que não inclui a privacidade física. Ela é, de fato, humana por um padrão que exclui a privacidade física, uma vez que manter um homem fora completamente e por uma vida inteira é desviante ao extremo, uma psicopatologia, um repúdio à maneira em que se espera que ela manifeste sua humanidade.
- Andrea Dworkin, Intercourse, capítulo 7


Ou isto:


A hierarquia de gênero de dominância masculina, contudo, parece imune a reforma através de argumentos fundamentados ou visionários, ou através de mudanças em estilos sexuais, sejam pessoais ou sociais. Isto pode ser porque o coito em si é imune a reforma. Nele, a fêmea é inferior, estigmatizada. O coito continua a ser um meio ou o meio de fazer fisiologicamente uma mulher inferior: comunicando-lhe célula por célula seu próprio status inferior, imprimindo-o nela, marcando-o a fogo nela, colocando-o dentro dela, de novo e de novo, empurrando e estocando até que ela desista e se entregue - o que é chamado de rendição no léxico masculino. Na experiência do coito, ela perde a capacidade de integridade porque seu corpo - a base da privacidade e da liberdade no mundo material para todos os seres humanos - é invadido e ocupado; os limites de seu corpo físico são - falando de forma neutra - violados. O que é tomado dela nesse ato não é recuperável, e ela passa sua vida - querendo, afinal, ter algo - fingindo que o prazer está em ser reduzida através do coito à insignificância.
- Andrea Dworkin, Intercourse, capítulo 7


Mas assumir a interpretação, a partir destas passagens, de que Dworkin acha que todo sexo heterossexual (ou todo coito de pênis na vagina) é estupro meramente equivale a um mal-entendido - seja porque a leitora só encontrou passagens como estas, fora de contexto, em um catálogo de "história de terror", ou porque ela não está estendendo o mesmo esforço de caridade interpretativa em relação a Dworkin que ela o faria para qualquer outra pessoa. Ambas parecem ser condições infelizmente comuns; como resultado, declarações que Dworkin faz sobre o significado do coito são rotineiramente mal interpretadas como declarações feitas em voz própria, quando na verdade são declarações do significado atribuído ao coito pela cultura de supremacia masculina e imposto pelas condições materiais (vulnerabilidade econômica, violência) que as mulheres enfrentam sob o patriarcado. Estes são significados que Dworkin, entra outras coisas, tem a intenção de criticar (qualquer uma que teve que escrever uma longa exposição de uma visão sistemática com a qual discorda poderia provavelmente ser mal interpretada da mesma maneira).


O argumento de Dworkin em Intercourse não é que as características anatômicas do coito heterossexual o tornam equivalente à coerção. Dworkin não tem qualquer paciência que seja com essencialismo anatômico - algo que você deveria saber se você leu ensaios tais como Biological Superiority: The World’s Most Dangerous and Deadly Idea ("Superioridade Biológica: A Ideia Mais Perigosa e Mortal do Mundo"). Intercourse não é um livro-texto de anatomia; é um exame do coito, enquanto uma prática social e uma experiência vivida para as mulheres, sob as condições culturais e materiais de uma sociedade supremacista masculina. Quando ela descreve o coito como, por exemplo, "ocupação", ela não quer dizer que o ato biológico em si envolve ocupação; ela está falando sobre o coito da forma como ele é consistentemente descrito na cultura supremacista masculina e como ele é encenado em uma sociedade em que o estupro e a sexualidade centrada no masculino são extremamente defendidos e culturalmente desculpados ou mesmo valorizados. Isso não significa que a igualdade requer o fim nem do prazer sexual nem, especificamente, do coito heterossexual; isso significa sim que requer uma mudança radical na maneira como ele é pensado e abordado (ela argumenta que isto envolverá, entre outras coisas, uma sexualidade que não seja monomaniacamente focada no coito; mas esta é uma alegação diferente).


Em passagens como a segunda, Dworkin também está especificamente respondendo a liberais sexuais e a algumas feministas (neste caso, Victoria Woodhull), que tomam a legitimidade da sexualidade centrada no coito e do coito como é atualmente praticado mais ou menos como certa - e tentam traçar todas as linhas éticas sobre a questão estritamente em termos de consentimento formal ou (no caso de Woodhull) em termos de algum sentido mais robusto de autonomia sexual das mulheres, sem contestar a centralidade cultural do coito ou a maneira em que o coito é sistematicamente moldado e ordenado pelas condições culturais e materiais que os homens impõem sobre as mulheres em uma sociedade patriarcal. É uma questão de contexto; e, ao falar sobre coito tanto quanto ao ler o livro, o contexto não deveria ser abandonado no esforço de fazer algum tipo de ponto.


Se eu tivesse que resumir o que Dworkin está dizendo enquanto fico em um pé só, eu tentaria este resumo lamentavelmente abreviado de suas principais teses: (1) que a cultura patriarcal torna o coito heterossexual a atividade paradigmática de toda a sexualidade; outras formas de sexualidade são tipicamente tratadas como "não sexo de verdade" ou como meras precursoras do coito e sempre discutidas em termos que fazem analogia delas com ele; (2) que o coito heterossexual é tipicamente descrito em maneiras que são sistematicamente centradas no masculino e que retratam a atividade como iniciada por e para o homem (como "penetração" da mulher pelo homem, em vez de "englobamento" do homem pela mulher ou como o homem e a mulher "se unindo" - o último é representado no termo "copulação", mas isso é raramente usado no discurso comum sobre homens e mulheres humanas); (3) que as atitudes culturais são reflexivas de, e reforçam, realidades materiais tais como a predominância da violência contra as mulheres e a vulnerabilidade de muitas mulheres a extrema pobreza, que restringem substancialmente as escolhas das mulheres com relação à sexualidade e com relação ao coito heterossexual em particular; (4) que (1)-(3) constituem um sério obstáculo ao controle das mulheres sobre suas próprias vidas e identidades que é tanto muito íntimo quanto muito difícil de se escapar; (5) que o coito como é realmente praticado ocorre no contexto social de (1)-(3) e, assim, o coito como uma instituição social real e uma experiência real nas vidas de mulheres individuais é moldado e restringido por forças político-culturais e não meramente por escolhas individuais; (6) que, portanto, traçar as linhas éticas em relação a sexualidade unicamente com base no consentimento formal individual, em vez de considerar as condições culturais e materiais sob as quais a sexualidade e o consentimento formal ocorrem torna difícil para liberais e para algumas feministas que escrevem sobre sexualidade verem a verdade de (4); que (7) elas, portanto, acabam colaborando, seja por negligenciamento ou por endosso, com a sustentação de (1)-(3), em detrimento da liberação das mulheres; e (8) a política feminista requer contestar tanto esses escritos quanto (1)-(3), isto é, contestar o coito como é habitualmente praticado em nossa sociedade. Mas, embora eu espere que isto ajude a esclarecer um pouco, você realmente deveria ler todo o livro por si mesma para entender o que está acontecendo.


O mito é um contra o qual Andrea batalhou durante muitos anos. Eis o que ela tinha a dizer sobre a questão em sua entrevista com Michael Moorcock em 1995.


Michael Moorcock: Depois de Right-Wing Women e Ice and Fire, você escreveu Intercourse. Outro livro que me ajudou a esclarecer confusões sobre meus próprios relacionamentos sexuais. Você argumenta que atitudes quanto às relações sexuais convencionais consagram e perpetuam a desigualdade sexual. Diversos críticos lhe acusaram de dizer que todo coito era estupro. Eu não encontrei qualquer sinal disso em lugar algum do livro. É isso que você está dizendo?


Andrea Dworkin: Não, eu não estava dizendo isso e eu não disse isso, ali ou em qualquer momento. Há uma longa seção em Right-Wing Women sobre coito no casamento. Meu ponto era que, contanto que a lei permita uma isenção estatutária de um marido de acusações de estupro, nenhuma mulher casada tem proteção legal contra o estupro. Eu também argumentei, baseada numa leitura de nossas leis, que o casamento obrigava ao coito - era compulsório, parte do contrato de casamento. Sob as circunstâncias, eu disse, era impossível ver as relações sexuais no casamento como o livre agir de uma mulher livre. Eu disse que quando olhamos para a liberação sexual e para a lei, precisamos olhar não apenas para quais atos sexuais são proibidos, mas quais são obrigados.


Toda a questão do coito como a penúltima expressão de dominância masculina desta cultura se tornou cada vez mais interessante para mim. No Intercourse eu decidi abordar a questão como uma prática social, realidade material. Esta pode ser minha história, mas eu acho que a explicação social da calúnia do "todo sexo é estupro" é diferente e provavelmente simples. A maioria dos homens e um bom número de mulheres experimentam prazer sexual na desigualdade. Uma vez que o paradigma do sexo tem sido um de conquista, posse e violação, eu acho que muitos homens acreditam que eles precisam de uma vantagem injusta, que em seu extremo seria chamado de estupro. Eu não acho que eles precisem disso. Eu acho que tanto o coito quanto o prazer sexual podem e vão sobreviver à igualdade.


É importante dizer, também, que os produtores de pornografia, especialmente a Playboy, publicaram a calúnia do "todo sexo é estupro" repetidamente ao longo dos anos e ela foi tomada por outros como a Time que, quando contestados, não conseguem citar uma fonte em minha obra.


E eis o que ela e Nikki Craft adicionam no Andrea Dworkin Lie Detector:


E. em um novo prefácio à edição de décimo aniversário do Intercourse (1997), Andrea explica por que ela acredita que este livro continua a ser mal interpretado:


[S]e a experiência sexual de alguém sempre e sem exceção foi embasada em dominância - não apenas atos evidentes, mas também suposições metafísicas e ontológicas - como ele pode ler este livro? O fim da dominância masculina significaria - no entendimento de tal homem - o fim do sexo. Se você erotizou um diferencial em poder que inclui a força como uma parte natural e inevitável do coito, como você poderia entender que este livro não diz que todos os homens são estupradores ou que todo coito é estupro? A igualdade no âmbito do sexo é uma ideia antissexual se o sexo requer dominação a fim de se registrado como uma sensação. Por mais triste que eu esteja em dizê-lo, os limites do velho Adão - e o poder material que ele ainda tem, especialmente na editoração e na mídia - estabeleceram limites sobre o discurso público (tanto por parte de homens quanto de mulheres) sobre este livro [páginas ix-x].


Eu espero que isto tenha ajudado a esclarecer a questão um pouco. Isto pode ser um pouco fraco para um "Myth-Busting Monday" - já foi tratado pelo feministe, sem mencionar pela própria Andrea Dworkin (através das estilizações web de Nikki Craft). Não obstante, continua aparecendo, então eu acho que vale a pena continuar a martelar o ponto, e - se nada mais - escrever algo para o Google sobre a questão e aumentar um pouco o Google juice de outros artigos que tocam no mesmo ponto. Se eu conseguir detonar o mito na cabeça de uma pessoa, então eu ficarei bastante contente; se eu conseguir fazer uma pessoa ou outra realmente ler o Intercourse antes que ela comece a guinchar para que ele seja queimado, então eu ficarei francamente exultante.


Notas do Tradutor


[NT01] O texto original é de Janeiro de 2005, Andrea Dworkin faleceu em Abril desse mesmo ano, aos 58 anos. Vide: https://en.wikipedia.org/wiki/Andrea_Dworkin#Illness_and_death

A Morte de Leviathan

A Morte de Leviathan
por Uriel Alexis


Lendo o texto do caro amigo Guilera, fico pensando que talvez eu devesse ter enfatizado mais o ponto metafísico sobre a esperança enquanto intimamente associada ao estado de vida. Seu texto “Leviathan Doente” apresenta críticas mordazes a muitos aspectos da sociedade contemporânea e à sua ideologia, muitos dos quais eu plenamente concordo, como ficará claro neste texto. Mas ao terminar a leitura, através de todas as alegorias e analogias deliciosas ali presentes, um sentimento de insatisfação ainda me corroeu: sim, ao longo da história vimos e vivemos terrores horríveis, e mesmo no atual momento - como eu mesmo frisei - muitos horrores afligem o mundo; sim, as esperanças nem sempre se cumpriram e por vezes justificaram terrores ainda maiores; mas, tendo tudo isso, toda essa crítica contundente, em mente, o que fazemos? Estamos vivas e, portanto, precisamos decidir o que fazer. Não fazer nada, ou deixar de fazer algo, também são frutos de uma decisão proposital. Não há escapatória à intencionalidade. Viver é escolher. E isso falta à crítica: uma proposta positiva, um “o que faremos”, por mais ingênuo e mirabolante que pareça. Sem isso, em vista de um panorama pesaroso, só nos restaria o suicídio, que parece que ambos repudiamos.
Guilera começa seu texto citando a majestosa imagem de Benjamin sobre o progresso: a ventania que propele o anjo da história, atônito, a algo que ele desconhece, enquanto observa os terrores dessa viagem. A crítica ao ideal do progresso é subjacente ao texto e parece levar direto a um pessimismo estratégico. Mas o otimismo - latente, como exposto, na própria condição da vida humana - não está necessariamente comprometido com qualquer noção de progresso: de que devemos “avançar” em direção e “algo melhor”, de que coisas inéditas e que essas novas coisas - artefatos tecnológicos - serão nossa redenção de todo o mal do mundo. Não, o otimismo pode muito bem estar (e, na concepção que defendi, de fato está) comprometido com uma revolta do anjo da história, um momento em que ele recolhe suas asas - ou simplesmente as corta fora -, luta contra o vento e de fato acorda os mortos e reconstrói o que foi destruído. O que fica claro nas visões de mutualistas - desde Proudhon, passando pelos anarquistas de Boston, até Carson - é que precisamos buscar maneiras de, andando para frente, retornarmos ao que já existiu, evitarmos a barbárie saindo da história.
No entanto, apesar de todos seus terrores, a história da civilização não foram apenas desgraças. Desenvolvemos, a duras penas, soluções para o que nos trouxe ao problema da civilização e do progresso em primeiro lugar: nossa incapacidade de conviver com a diferença. Renegar os direitos humanos, a perspectiva universalista de dignidade humana, os benefícios do exercício da razão é ignorar como, em meio a tantas desventuras, conseguimos nos adaptar, como permanecemos vivos. É esse processo de adaptação constante que devemos investigar se quisermos de fato responder à pergunta inicial sobre o que fazer.
Dentro dessa perspectiva, as respostas às críticas parecem surgir: Não, as classes exploradas não estão sendo “menos oprimidas”, mas a própria noção de classe está se dissolvendo. Não, o passado não está sendo redimido no presente, em etapas ou imediatamente, mas o presente tem suas próprias imposições sobre a organização social. Não, o capitalismo não se transfigurará em algo idílico, tampouco se autodestruirá, mas novas maneiras de produção e reprodução social estão surgindo em meio e contra o capitalismo. O rumo natural da história, se ela tiver qualquer rumo definido, não é passível de ser conhecido. Só podemos conhecer as condições atuais e decidir, aqui e agora, o que faremos sobre hoje. O futuro é propriedade de divindades.
Guilera também se preocupa com a expansão do fascismo numa sociedade altamente digitalizada. Ele aponta para as tecnologias de controle hoje disponíveis, mas parece se esquecer que nenhum sistema de monitoração fica sem incentivar a produção das respectivas tecnologias de resistência. A existência de uma deep web, de espaços virtuais criptografados, de uma série de ferramentas que eliminam qualquer possibilidade de rastreamento - ao ponto em que temos hoje a possibilidade de uma economia inteiramente virtual e, ainda assim, ou mesmo por causa disso, totalmente ilegível para sistemas centralizados de poder - demonstra novamente o processo de adaptação constante a que estamos submetidos. Se o fascismo se espalha facilmente, ele é resistido facilmente também. Se ele se alimenta de medo, fornece-se segurança. No que o pessimismo estratégico ajudaria nesse sentido? A esperança numa sociedade digitalizada surge justamente da capacidade de criação de espaços tão diversos que a saída de espaços em que ocorrem exclusão e punição é virtualmente garantida: você sempre pode encontrar uma outra comunidade em que esteja melhor adaptado, e isso é tanto mais verdade quanto mais se desenvolvem as tecnologias criptográficas.
Aqui tocamos num ponto fundamental: essas tecnologias (e outras) estão nos levando a uma “hecatombe ambiental”? Uma resposta afirmativa teria que supor que o modo de produção atual teria que ser mantido, em termos de consumo energético e desperdício, para que elas continuassem a funcionar. Não parece ser o caso, tendo em vista que a própria preocupação global em relação à sustentabilidade da humanidade com o paradigma produtivo atual gerou grandes incentivos à busca por uma produção mais adaptada aos processos naturais. Como mencionei no texto anterior, existem “técnicas tais como a permacultura, a bioconstrução, a produção p2p e cripto-transações” que possibilitam esse tipo de produção. De que modo que não se postula aqui que o nosso modo de vida vai se perpetuar indefinidamente, mas que ele vai se adaptar indefinidamente às circunstâncias que se apresentem.
Contudo, é verdade que não é a tecnologia que determina os rumos que a sociedade tomará, mas os valores dessa sociedade. À tecnologia apenas é possível abrir ou fechar caminhos em direção a esses valores. E tais valores são expressões de nossas ações em meio ao ambiente complexo que é a sociedade. A liberdade - um valor, se jamais houve um - pode ser vista, assim, como um atributo do padrão de organização de uma sociedade: quanto mais sua organização é dinâmica e imprevisível, mais livre ela é. A liberdade, portanto, é imanente num padrão de ação, guiado por valores, dentro de um contexto de adaptação possibilitada por fluxos de informação. De maneira mais poética, você é livre quando age livre e influencia, assim, todas as pessoas a agirem livre. De onde se conclui que a liberdade só é liberdade quando é liberdade de todos, expressa em práxis, e não uma justificativa abstrata para um ou outro agir autoritário. Você não pode enganar uma topologia.
Portanto, se nosso valor é a liberdade, agimos de forma livre. Se há voluntarismo, ele é idêntico ao consentimento e, assim, não há uma submissão à lei dos outros, mas de cada um à sua própria lei. Esse é o ponto recorrente dos individualistas, desde Stirner: se há escravidão, nós a produzimos porque a escolhemos, porque agimos dessa forma. Assim, por certo, esse problema, decorrente do desejo, se torna institucional.
Em 1851, em seu livro A Ideia Geral da Revolução no Século XIX, Proudhon escreveu:


Debaixo da máquina governamental, à sombra das instituições políticas, fora da vista de estadistas e padres, a sociedade está produzindo seu próprio organismo, lenta e silenciosamente; e construindo uma nova ordem, a expressão de sua vitalidade e autonomia e a negação da velha política, assim como da velha religião.


O Leviathan, com sua consciência hegemônica em conflito e negação, será forçado a ouvir a voz do corpo de seu hospedeiro, a sociedade, de quem vem se alimentando, quando ela se alterar - se adaptar - ao ponto de eliminá-lo de dentro de si. A voz que declarará seu óbito não será a do Progresso, do vento que uiva vindo do paraíso, mas desse corpo em frenesi, que o monstro sempre julgou compreender e lhe pertencer.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Perigos inesperados do livre mercado?

Perigos inesperados do livre mercado?


Conhecemos a preocupação anti-mercado padrão, de que mesmo as relações verdadeiramente livres que mutualistas e outras anarquistas de mercado propõem (anti-capitalismo de livre mercado, comércio equitativo, etc...) inevitavelmente levarão (através de uma falha fatal na teoria do contrato, ou de uma falha fatal na natureza humana, etc...) ao "capitalismo" (ruim), ao governo de possuidores de capital e ao estado. Respostas ao problema (se forem tais) geralmente envolvem rejeições do "contrato" e/ou "comércio" tout court, junto com, claro, a "propriedade" concebida em qualquer modelo que inclua um domínio exclusivo e individual. Parece haver problemas com estas respostas, quer seja a dependência de uma "economia da dádiva" sobre a noção de propriedade individual (embora talvez também vice-versa), objeções a constructos amplos de "comércio" e "mercados" que parecem ser largamente estéticos em caráter, ou propostas vagas sobre como a distribuição realmente será efetuada (e que tipo de participação será esperada) em uma sociedade sem mercado. E uma das coisas em jogo no debate é a validade da estória através da qual anarquistas coletivistas e comunistas alegam ser não apenas as formas mais populares de anarquismo, mas as verdadeiras portadoras filosóficas padrão da tradição.


Não vamos resolver o debate facilmente e certamente não hoje. Há muito a se esclarecer antes que possamos avançar muito. Se você está lendo isto, você provavelmente tem uma noção bastante boa da importância que eu coloco em trazer figuras como Proudhon, Fourier, Bellegarrigue, Dejacque, Warren, Greene, Ingalls, Kimball, Molinari, Bastiat, Colins, Emerson, Whitman (etc...) plenamente para nossa história compartilhada, de modo que concordemos ou discordemos deles de uma maneira informada e inteligente. Deveria também ser óbvio que eu considero o período revolucionário por volta de 1848 como tendo uma importância particular, mesmo se apenas como terreno fértil do qual colher ideias de um tipo que não mais parecem florescer entre nós. Mas mesmo se você não concorda comigo sobre estes pontos gerais, talvez você possa ver as vantagens de se olhar para ideias familiares em um cenário que as tornam estranhas para nós.


Considere a crítica mutualista do livre mercado: É um daqueles fatos bem conhecidos, mas pouco compreendidos da história anarquista que Proudhon, o cara da "propriedade é um roubo", veio a abraçar a propriedade, em parte porque ela serviria como um contrapeso necessário para "o Estado". No texto "1848 origins of agro-industrial federation", eu apontei para um par de esquisitices no "Programa Revolucionário" de Proudhon: 1) sua adoção da propriedade e do "laissez-faire" e sua proposta de "insolidariedade absoluta" como um princípio de organização; e, 2) sua afirmação de que esta abordagem absolutamente egoísta naturalmente levaria a "uma centralização análoga àquela do Estado, mas em que ninguém obedece, ninguém é dependente e todos são livres e soberanos".


Massa. O livre mercado funciona. Alguém como Bellegarrigue poderia, mais ou menos ao mesmo tempo, descrever "a Revolução" como "pura e simplesmente uma questão de negócios", e descrever (na segunda edição de Anarchy: Journal of Order (tradução em breve)) a cena após a deposição de Louis-Philippe como se alguém tivesse apertado o famoso Botão Libertário que faz o governo sumir num piscar de olhos. Sem o rei, todo mundo teria que seguir em frente e deixar o "fluxo de interesses" fazer seu trabalho. Mas há algumas complicações, pelo menos do ponto de vista mutualista, não menos importante que Proudhon nunca deixou de ser o cara da "propriedade é roubo". Ele nunca deixou de pensar sobre a propriedade exclusiva e individual como sendo embasada num "absolutismo" individual, como despótica em tendência e como envolvendo um "direito de abuso" potencialmente mais auto-refutador com relação à "propriedade" do que qualquer coisa que seus críticos houvessem cutucado em suas alegações. Mas ele também acreditava, consistentemente, que "a comunidade [de bens] é roubo", apenas uma outra forma de absolutismo. E por volta do "Theory of Property", ele tinha algumas coisas difíceis a dizer sobre posse, que é a forma a meio caminho que as anarquistas frequentemente alegaram que era sua escolha: "É um fato da história universal de que a terra não foi mais desigualmente dividida do que em lugares onde apenas o sistema de posse predominou, ou onde o feudo suplantou a propriedade alodial; similarmente, os estados onde a maior liberdade e igualdade são encontradas são aqueles em que a propriedade reina"[p. 142].


Hmmm. As antinomias de Proudhon complicam as coisas consideravelmente, se o que estamos atrás é de um sistema, de propriedade ou de não-propriedade, que simplesmente funciona e reduz ou elimina o conflito. Em muitas das discussões nas quais eu estou estes tempos, conforme o interesse no mutualismo cresce, a preocupação parece ser encontrar quais tipos de arranjos as mutualistas achariam que são justificados. Mas se Proudhon é nosso guia, a justificação é nossa revolução permanente, a "estrela ardente" de William B. Greene, que recua toda vez que fazemos um avanço.


E se tivéssemos um "livre mercado", um "comércio" equitativo no sentido mais amplo e um sistema verdadeiramente justo para lidar com o "meu e seu"? Para o meu conhecimento, Proudhon nunca colocou a questão desta maneira. Para ele, o caráter absolutista de todo elemento ou abordagem unilateral só se tornava cada vez mais proeminente e necessário. Na conclusão de Theory of Property, ele escreve: "O princípio da propriedade é ultra-legal, extralegal, absolutista e egoísta por natureza, ao ponto de iniquidade: ele tem que ser desta maneira. Ele tem como contrapeso a razão do Estado, que é absolutista, ultra-legal, iliberal e governamental, ao ponto da opressão: ela tem que ser desta maneira". Adicione mais uma ruga aqui: Não estamos falando sobre "o Estado" como o conhecemos, o Estado governamentalista. Em vez disso, este é um Estado essencialmente anarquista, um ser coletivo que não governa, que não tem qualquer autoridade acima do indivíduo, mas que, se formos levar a sério as descrições de Proudhon, não obstante marca um perigo real, a perda de toda a individualidade, precisamente porque ele marca a extensão na qual o "fluxo de interesses" resultou, através do comércio egoísta, na unidade de interesses, na eliminação do conflito.


Parece, em uma estranha reviravolta, que o perigo inerente em um livre mercado, construído sobre sistemas que reduzem o conflito, poderiam bem ser o "comunismo" - não o comunismo de bens em comum, não os sistemas de Marx ou Kropotkin (exceto na medida em que eles falhem de maneiras não-econômicas), mas a "comunidade de interesses" contra a qual Proudhon e Josiah Warren ambos alertaram. Dejacque sugeriu o comunismo anarquista como um produto lógico de egoísmos individuais. De fato, a maioria das tentativas de menosprezar o elemento individualista no anarquismo comunista são manchas ignorantes. Então a sugestão não está tão longe das feitas por "comunistas" de um tipo ou de outro. Mas há um nó difícil de ser desvendado aqui, um que embaraça comunismo e mercados livres, opõe o despotismo contra o anarquismo, no interesse, em última análise, do último.


Se Proudhon pudesse responder às críticas de seus sucessores na tradição anarquista, eu suspeito que suas respostas poderiam ter parecido um pouco com os ataques de Nietzsche às anarquistas e socialistas de sua própria época. Em particular, à tradição de Kropotkin (e, em algum grau, muitas de nós, eu mesmo incluso, recebemos nosso anarquismo em grande parte do Ajuda Mútua), eu acho que ele poderia sentir a necessidade hoje de dizer: Ajuda mútua, sim, assim como a luta pela vida. Na própria ética de Kropotkin, ou pelo menos naquela parte extraída de Guyau, há um entendimento de que não é nem o otimismo, nem o pessimismo, que guia o anarquismo em direção a aproximações melhores da justiça, mas elementos em jogo, as pressões da vida.


A questão Proudhoniana a comunistas econômicos parece ser: como, em uma sociedade humana, num "comércio" humano, esse elemento absolutista que parece ser parte de nossa natureza, que pode de fato ser a coisa faminta que (por mais relutantemente que seja às vezes) nos empurra atrás da estrela ardente, como isso é mantido em jogo? Como ele presta ajuda e expressa sua fecundidade ética, se ele não tem nada seu para dar? E como a comunidade-de-propriedade evitar ser a estreita, e depois ainda mais estreita, comunidade de interesses que parece ser a morte, ou o estado de coma, da sociedade, ou pelo menos de sua inteligência coletiva?

Para a anarquista de mercado, talvez a questão ainda seja: O que é propriedade? Qual é sua relação com um livre mercado? A liberdade que estamos buscando é apenas uma falta de impedimentos ao fluxo de interesses ou há talvez algo a mais, suplementar ou mesmo oposto em algum sentido àquela primeira liberdade de mercado que necessitamos para uma sociedade livre? Se fôssemos capazes de completar nossa justificação da propriedade, isso nos levaria aonde, em última análise, queremos? Sabemos como a contra-economia funciona dentro do contexto dado, em parte porque a empreendedora anarquista tem mais do que um cheiro de enxofre sobre si, mas o que acontece se e quando vencermos?

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

De Onde Surgem Os Títulos de Propriedade?

De Onde Surgem Os Títulos de Propriedade?

Muitas teóricas de mercado assumem os títulos de propriedade como axiomáticos e então desenvolvem aparatos coercitivos para aplicá-los - justificando tal coerção apelando para noções como consentimento implícito e/ou a justeza dos contratos que vendem parte da agência de uma pessoa no futuro. Isto irrita pra caralho, e com razão, muitas anarco-comunistas. Teóricas esquerdistas de mercado, por sua vez, tendem a minimizar estas apreensões como uma contenda sobre diferentes sistemas ideais de propriedade - isto é, diferenças sobre o que constitui abandono e a viabilidade geral da propriedade coletiva.

Mas isto, como eu argumentei repetidas vezes, é um entendimento profundamente limitado das críticas sendo arremessadas contra elas.

Primeiro, nem todo sistema de mediação entre os desejos ou usos de objetos de diferentes pessoas é descritível em termos de títulos de propriedade. Títulos de propriedade são reivindicações, por parte de agentes discretos, por um poder de veto absoluto sobre o uso de um objeto; eles são um constructo usado para negociar entre a justeza dos usos por parte de indivíduos com intenções concorrentes para um objeto. Títulos de propriedade resolvem o problema determinando se A ou B, então, vai pessoalmente tomar a decisão entre a direção 1 ou 2 para um dado objeto.

Mas esta claramente não é a única maneira de abordar tais situações.

Quando anarco-comunistas falam de sociedades sem o conceito de propriedade, elas frequentemente querem dizer um sistema social em que as decisões sobre como usar qualquer objeto ou recurso específico nunca são limitadas a um corpo discreto de indivíduos selecionados, mas, antes, são discussões abertas a qualquer uma e a todo mundo com um interesse, desejo ou ideia a contribuir. Ali as entidades econômicas críticas são direções em vez de títulos de veto, conceitos em vez de indivíduos. O processo de mediação possível pode ser incrivelmente complexo e dinâmico. Assim, em um nível protozóico, você poderia ter uma simples discussão ou foco incontestado (eu me especializo no uso de uma única escova de dentes e, consequentemente, dado o contexto histórico dessa escova de dentes, não são muitas pessoas que vão ter uma proposta mais útil para seu uso). Ao passo que sistemas agregados de mecanismos mais avançados são visíveis no desenvolvimento open source. Em suma, onde o recurso mais escasso é o tempo pessoal e o peso da sua voz é a coisa mais próxima de uma moeda. Ao mesmo tempo, há frequentemente escassezes de espaço (funcionamento idêntico ao material) para projetos amplamente variáveis e, em resposta, ecossistemas inteiros de discussão se abrem. Vale a pena notar que sob muitos sistemas de títulos de propriedade, se as especialistas legais não conseguem chegar a um consenso sobre quem é a proprietária legítima de um objeto, nada é feito com o objeto no meio tempo. Aquelas envolvidas em disputar usos diferentes para um objeto em uma sociedade sem propriedade são diretamente capazes de meios bem mais diversos de negociação, mas, para fazê-lo, se elas não conseguem chegar a um consenso, então nada é feito com o objeto. Porque literalmente todo mundo no mundo tem a capacidade de vetar.

Para algumas pessoas isto poderia parecer - embora uma contraproposta filosoficamente coerente à propriedade, e mesmo brevemente viável em um nível pequeno - completamente insano e sem noção. E talvez seja. Mas, na prática, tais abordagens externas à propriedade são frequentemente viáveis o suficiente. O encrenqueiro imaturo intrometido solitário ou qualquer outra concebível vulnerabilidade de consenso simplesmente não ocorrem após algumas iterações sociais. Já que todo mundo é dependente de todas as outras pessoas, não importa quão distante seja a comunidade de onde vêm, e, assim, é de seu interesse manter, desenvolver e transmitir boa-vontade.

Obviamente, no entanto, só porque tais abordagens econômicas diferentes poderiam criar um software melhor por uma fração da energia que Microsoft gasta, não significa que elas possam fazer coisas como movimentar bens entre localidades para satisfazer a demanda eficientemente ou sinalizar todos os custos de um consumo versus outro. Sem a capacidade de atribuir valor a relacionamentos espaciais/físicos (tal como com o âmbito de atores e objetos) não se pode mediar concretamente entre esses relacionamentos. E quaisquer que pudessem ser os dilemas dominantes em culturas primitivas de abundância ou colmeias pós-humanas de nanobots, não deveria ser particularmente controverso afirmar que a atribuição de objetos materiais é o problema calculacional central no mundo atual. Alguma forma de títulos de propriedade parece necessária, não importa o quão pegajosa, não importa se coletiva ou individualmente administrada.

O ponto é que este é um debate sobre aptidão. Embora possa ser indesejável, continua sendo totalmente possível construir uma sociedade inteiramente fora da propriedade.

Seguindo o lema popular "Tudo para Todas", a teórica de mercado teimosa poderia ainda proclamar que uma tal sociedade ainda contaria como um sistema com títulos de propriedade expandidos para todas as pessoas. Embora praticamente insignificante, isto não estaria necessariamente errado. Mas, como um quadro teórico neste caso, títulos de propriedade seriam errar o alvo. Ninguém nessa sociedade pensaria em qualquer coisa que se aproximasse de tais termos.

O que nos leva a uma segunda crítica da propriedade.

Não é difícil chegar à conclusão de que a própria adoção de direitos de propriedade em nossas mentes leva em direção a uma visão de mundo de compartimentalização e taxonomia crescentes. De fato, esta é uma suposição popular. Ao progressivamente repicar o mundo em torno de nós, continua a noção, ficamos inclinadas a ver o mundo unicamente como uma folha de registro de propriedade.

Perdoe a digressão para minha infância dos anos 90 na Nickelodeon, mas, como ilustração, eu me lembro de um episódio de Castores Pirados em que os irmãos de repente descobrem que cada um deles tem uma bolsa almíscar capaz de marcar itens com um fedor pessoal colorido que repele todo mundo menos eles mesmos. Isto rapidamente desencadeia uma guerra de reivindicação pessoais até que todo o mundo está divido entre um fedor e o outro, cada irmão cada vez mais completamente obcecado com o rótulo, até que não conseguem pensar em nada mais.

Esta talvez seja a crítica mais clássico do capitalismo - uma de simples psicologia - e, ainda assim, parece ser a crítica que teóricas de mercado são incapazes de analisar. Para muitas anticapitalistas, o problema com a estrutura capitalista é sua tendência inerente em direção ao materialismo, em última análise, ao ponto de tratar seres humanos como objetos. Mas isto é incompreensível para Libertárias porque elas veem o respeito por títulos de propriedade como inteiramente decorrentes de um respeito pela agência pessoal. Em termos práticos cotidianos, o respeito pela agência de uma outra pessoa frequentemente se resume a um respeito pela inviolabilidade de seu corpo. Não atire nelas, não as estupre, não as torture. Já que humanos são criaturas que usam ferramentas, como caranguejos eremitas, frequentemente não há qualquer linha clara entre nossa biomassa e nossas posses (nós usamos roupas em vez de pelos, retemos massa morta excretada como folículos capilares, etc.) e, portanto, um respeito pela pessoa do outro parece se estender de algumas maneiras para um respeito por coisas que elas usam. Comece a falar de Direitos e estas associações devem ser traçadas de forma mais absoluta. E com certeza já temos uma proscrição de senso comum frequentemente executada em termos absolutistas que corresponde a esta intuição; não roube.

Ainda assim, as anticapitalistas claramente têm algo em mente. Mesmo deixando de lado os vieses cognitivos evolutivos do homo sapiens, nós enquanto indivíduos temos uma capacidade de processamento limitada. Não conseguimos pensar em tudo ao mesmo tempo. Se alguns dos processos de pensamento necessários para ser bem-sucedido e florescer em um dado sistema saem do controle e tomam cada vez mais espaço, outros - como aqueles por trás do motivo pelo qual adotamos esse sistema em primeiro lugar - serão empurrados para a periferia.

Se uma certa métrica for estabelecida como o alfa e o ômega de uma sociedade, quer seja a aquisição de uma moeda universal específica ou simplesmente agregar átomos, seu status enquanto exigência ou chave para qualquer busca ou desejo pode acabar tendo um efeito sobre estas buscas ou desejos.

Anticapitalistas frequentemente borram de maneira dissimulada a distinção entre riqueza e poder coercitivo - riqueza e/ou desequilíbrio de riqueza não têm que inerentemente garantir qualquer capacidade de controle social - mas é certamente verdadeiro que buscas diretas de poder e riqueza compartilham a mesma forma. A obstinação é progressivamente recompensada, até que a inércia desta abordagem expulse da mente a razão pela qual originalmente atribuímos valor à riqueza ou ao poder.

Consequentemente, em vez de focar em acumular títulos de propriedade ou dinheiro como um caminho para a oportunidade, argumentam as anarco-comunistas, deveríamos focar em acumular boa-vontade.

Eu não discordo.

Mas uma vez que você caracterize este foco na boa-vontade em termos de mercado, a la algo similar aos mercados de reputação de Doctorow, o caminho para fora destes emaranhados se torna aparente. Parece claro pra porra que títulos de propriedade são uma ferramenta com uma utilidade incrível no mundo como ele existe hoje e para os desafios técnicos que enfrentamos. Como tal, é lógico que aquelas dentro de uma sociedade anarco-comunista focada em boa-vontade têm uma vantagem competitiva para negociar e adotar um sistema de segunda ordem para desenvolver e reconhecer títulos de propriedade. Independentemente de precisamente quanto seu mercado acabe dinamicamente mediando isto, a boa-vontade permaneceria o bem primário capaz de ser transformado em, entre outras coisas, títulos de veto seletivo de uso a objetos físicos. Assim, podemos remover o obstáculo psicológico: sem um sistema de execução coagido pelo estado subjacente a títulos de propriedade ou bancos e moeda centralizados, os títulos de propriedade não são um investimento tão estável ou universalmente aplicável quanto a boa-vontade. E a boa-vontade, ao contrário dos títulos de propriedade, está direta e metodologicamente ligada a apreciar e respeitar as pessoas enquanto agentes.*

Isto sugere uma maneira de lidar com condições marginais da propriedade. Rothbard prontamente reconhecia, por exemplo, que um mundo em que um homem tivesse título a tudo seria claramente indiscernível de uma tirania. Expanda o número de proprietárias e você ainda teria uma oligarquia. Mesmo conceder uma quantidade simbólica de riqueza ao resto da população não necessariamente faria o mercado decolar, tampouco o permitiria flutuar de volta a uma direção mais dinâmica e igualitária, porque a dita riqueza poderia simplesmente ser insuficiente como capital.

Contudo, se a propriedade for um bem de segunda ordem derivado de instituições de mercado baseadas em reputação/boa-vontade/crédito, então se uma classe sistematicamente fodesse seu crédito com todas de uma outra classe, a subclasse não teria mais qualquer incentivo para respeitar suas reivindicações de títulos porque nenhum indivíduo dentro dela temeria nem mesmo uma sanção marginal ou perda de boa-vontade por ocupar e se apropriar de sua riqueza. De forma simples, se, antes de qualquer outra pessoa conseguir fazer qualquer coisa em uma nova colônia, eu criar robôs para lavrar toda a superfície do planeta, isso não cria inerentemente um incentivo, entre o resto dos colonizadores, para respeitar uma reivindicação de veto de uso de minha parte sobre todo o planeta. Se outras admiram e derivam valor do meu projeto de lavragem em massa (ou dos potenciais produtos dele) aí sim minha voz tem mais probabilidade de ser respeitada em discussões sobre seus usos, mas se eu quiser obter a aceitação de uma reivindicação de veto de uso, ela teria que derivar do desejo de outras pessoas de condições sociais de respeito propícias para empreender seus próprios projetos e ter suas próprias coisas respeitadas. Gravita-se em direção à adoção de títulos de propriedade porque, através de sua troca, pode-se maximizar muito mais a saciação dos desejos (concordando-se em deixar de se meter no diacho das decisões das outras pessoas quando se tratar do uso de certos objetos, em troca delas deixarem de se meter no diacho das suas decisões com outros objetos). Aceitar minha propriedade sobre literalmente tudo tornaria isso impossível.

Não apenas isto lida com tais condições limite, mas também resolve a antiga paranoia marxista sobre a acumulação descontrolada de riqueza através da usura.

Visto à luz de um mercado de reputação, o antigo ponto de Jeremy Weiland é ainda mais adequado: sem o estado, quanto mais riqueza você controla, mais ridiculamente você corre o risco de ter que pagar os olhos da cara para se proteger contra roubo e traição daqueles que você está pagando.

É mais fácil roubar um milhão de dólares do banco, ou de um cofre, do que roubar mil pessoas comuns ou mais. ...Pode ser que em um livre mercado exista um valor de riqueza média pessoal natural, para além do qual os retornos decrescentes se introduzam rapidamente, e abaixo do qual se está extremamente disposto ao lucro e ao enriquecimento.

É uma distinção entre informação e objetos; em última análise, você não consegue roubar bom crédito. A confiança e a boa-vontade das pessoas, bem como todo seu panorama de intenções em relação a você existem internamente dentro delas. São acessíveis por qualquer um em qualquer lugar, mas elas são as únicas capazes de mudá-las. Não existem bancos que possam guardá-las, apenas pontos de retransmissão coletivos ou institucionais através dos quais elas podem ser transmitidas. E a confiança subjaz criticamente todas as transações materiais.

Incidentalmente isto torna todo o debate sobre as propostas de proibições sistemáticas de salários, alugueis e juros discutível. Obviamente todos serão, em alguns contextos, não importando o quão marginais, considerados de forma desejável ou neutra por todas as partes. Mas mesmo se eles brotarem como um grande fenômeno, isto não é razão para entrar em pânico, enlouquecer e organizar merdas como 'posseiros' armados errantes com definições ideologicamente precisas de propriedade legítima. Em vez disso, o mercado já estará pronto para triturar ou impedir quaisquer vastas porções de riqueza acumulada porque será o mercado que negociará a aceitação de tal riqueza. Não necessariamente através crimes maliciosos, mas através de mecanismos de mercado de níveis mais altos que, em última análise, dão origem à medida e à força da reivindicação.

Enquanto um mercado, poderia não se parecer muito com o mito americano idealizado de nosso 'mercado' contemporâneo simplista. Mas aí, sabíamos que não seria.



* Há um ponto a ser feito aqui sobre o problema da manipulação, mas eu acho que é um ponto muito mais amplo que nenhum sistema estrutural pode abordar diretamente, porque em tal nível nós não podemos ditar intenções, podemos apenas reconhecer e contornar vieses. Então, não é um problema mais fundamental do que o é para o anarco-comunismo. Dito isto, eu acho que intenções e questões psicológicas de controle estão corretamente no próprio centro do projeto anarquista. Só fica fora da alçada desta discussão.