Andrea Dworkin não acredita que todo sexo heterossexual é estupro
Este "Mythistory Monday" meio que cruza a linha entre histórico e atual: o mito em questão são os incessantemente repetidos clichês de que Andrea Dworkin alega que todo sexo heterossexual é estupro. Não, ela não alega; ela nunca disse isso e repudiou isso quando lhe perguntaram diretamente. O mito é histórico, em um sentido, uma vez que lida com o desfecho de escritos chave da Segunda Onda do feminismo nos anos 1970 e 1980. O mito é atual, em um sentido, uma vez que Andrea Dworkin ainda está vivaNT01 e ainda está escrevendo, e uma vez que parece que a noção idiota parece continuar aparecendo não importa quantas vezes ela seja abordada (vide, para o exemplo mais recente, os comentários lamentáveis de Mark Fulwiler - pelos quais ele mais tarde se retratou - na controvérsia na Liberty and Power que Roderick e eu conseguimos causar). Mas seja histórico ou atual, é tudo besteira.
Os caluniadores de Dworkin, quando se incomodam em citar qualquer coisa que seja de sua obra (o que eles usualmente não fazem), normalmente extraem uma citação ou outra fora de contexto do Intercourse; frequentemente, por exemplo, algo como isto:
Um ser humano tem um corpo que é inviolado; e quanto ele é violado, é abusado. Uma mulher tem um corpo que é penetrado no coito: permeável, sua solidez corpórea uma mentira. O discurso da verdade masculina - literatura, ciência, filosofia, pornografia - chama essa penetração de violação. Isto ele faz com alguma consistência e alguma confiança. Violação é um sinônimo de coito. Ao mesmo tempo, a penetração é tomada como sendo um uso, não um abuso; um uso normal; é apropriado entrar nela, empurrar para dentro ("violar") dos limites do seu corpo. Ela é humana, claro, mas por um padrão que não inclui a privacidade física. Ela é, de fato, humana por um padrão que exclui a privacidade física, uma vez que manter um homem fora completamente e por uma vida inteira é desviante ao extremo, uma psicopatologia, um repúdio à maneira em que se espera que ela manifeste sua humanidade.
Ou isto:
A hierarquia de gênero de dominância masculina, contudo, parece imune a reforma através de argumentos fundamentados ou visionários, ou através de mudanças em estilos sexuais, sejam pessoais ou sociais. Isto pode ser porque o coito em si é imune a reforma. Nele, a fêmea é inferior, estigmatizada. O coito continua a ser um meio ou o meio de fazer fisiologicamente uma mulher inferior: comunicando-lhe célula por célula seu próprio status inferior, imprimindo-o nela, marcando-o a fogo nela, colocando-o dentro dela, de novo e de novo, empurrando e estocando até que ela desista e se entregue - o que é chamado de rendição no léxico masculino. Na experiência do coito, ela perde a capacidade de integridade porque seu corpo - a base da privacidade e da liberdade no mundo material para todos os seres humanos - é invadido e ocupado; os limites de seu corpo físico são - falando de forma neutra - violados. O que é tomado dela nesse ato não é recuperável, e ela passa sua vida - querendo, afinal, ter algo - fingindo que o prazer está em ser reduzida através do coito à insignificância.
Mas assumir a interpretação, a partir destas passagens, de que Dworkin acha que todo sexo heterossexual (ou todo coito de pênis na vagina) é estupro meramente equivale a um mal-entendido - seja porque a leitora só encontrou passagens como estas, fora de contexto, em um catálogo de "história de terror", ou porque ela não está estendendo o mesmo esforço de caridade interpretativa em relação a Dworkin que ela o faria para qualquer outra pessoa. Ambas parecem ser condições infelizmente comuns; como resultado, declarações que Dworkin faz sobre o significado do coito são rotineiramente mal interpretadas como declarações feitas em voz própria, quando na verdade são declarações do significado atribuído ao coito pela cultura de supremacia masculina e imposto pelas condições materiais (vulnerabilidade econômica, violência) que as mulheres enfrentam sob o patriarcado. Estes são significados que Dworkin, entra outras coisas, tem a intenção de criticar (qualquer uma que teve que escrever uma longa exposição de uma visão sistemática com a qual discorda poderia provavelmente ser mal interpretada da mesma maneira).
O argumento de Dworkin em Intercourse não é que as características anatômicas do coito heterossexual o tornam equivalente à coerção. Dworkin não tem qualquer paciência que seja com essencialismo anatômico - algo que você deveria saber se você leu ensaios tais como Biological Superiority: The World’s Most Dangerous and Deadly Idea ("Superioridade Biológica: A Ideia Mais Perigosa e Mortal do Mundo"). Intercourse não é um livro-texto de anatomia; é um exame do coito, enquanto uma prática social e uma experiência vivida para as mulheres, sob as condições culturais e materiais de uma sociedade supremacista masculina. Quando ela descreve o coito como, por exemplo, "ocupação", ela não quer dizer que o ato biológico em si envolve ocupação; ela está falando sobre o coito da forma como ele é consistentemente descrito na cultura supremacista masculina e como ele é encenado em uma sociedade em que o estupro e a sexualidade centrada no masculino são extremamente defendidos e culturalmente desculpados ou mesmo valorizados. Isso não significa que a igualdade requer o fim nem do prazer sexual nem, especificamente, do coito heterossexual; isso significa sim que requer uma mudança radical na maneira como ele é pensado e abordado (ela argumenta que isto envolverá, entre outras coisas, uma sexualidade que não seja monomaniacamente focada no coito; mas esta é uma alegação diferente).
Em passagens como a segunda, Dworkin também está especificamente respondendo a liberais sexuais e a algumas feministas (neste caso, Victoria Woodhull), que tomam a legitimidade da sexualidade centrada no coito e do coito como é atualmente praticado mais ou menos como certa - e tentam traçar todas as linhas éticas sobre a questão estritamente em termos de consentimento formal ou (no caso de Woodhull) em termos de algum sentido mais robusto de autonomia sexual das mulheres, sem contestar a centralidade cultural do coito ou a maneira em que o coito é sistematicamente moldado e ordenado pelas condições culturais e materiais que os homens impõem sobre as mulheres em uma sociedade patriarcal. É uma questão de contexto; e, ao falar sobre coito tanto quanto ao ler o livro, o contexto não deveria ser abandonado no esforço de fazer algum tipo de ponto.
Se eu tivesse que resumir o que Dworkin está dizendo enquanto fico em um pé só, eu tentaria este resumo lamentavelmente abreviado de suas principais teses: (1) que a cultura patriarcal torna o coito heterossexual a atividade paradigmática de toda a sexualidade; outras formas de sexualidade são tipicamente tratadas como "não sexo de verdade" ou como meras precursoras do coito e sempre discutidas em termos que fazem analogia delas com ele; (2) que o coito heterossexual é tipicamente descrito em maneiras que são sistematicamente centradas no masculino e que retratam a atividade como iniciada por e para o homem (como "penetração" da mulher pelo homem, em vez de "englobamento" do homem pela mulher ou como o homem e a mulher "se unindo" - o último é representado no termo "copulação", mas isso é raramente usado no discurso comum sobre homens e mulheres humanas); (3) que as atitudes culturais são reflexivas de, e reforçam, realidades materiais tais como a predominância da violência contra as mulheres e a vulnerabilidade de muitas mulheres a extrema pobreza, que restringem substancialmente as escolhas das mulheres com relação à sexualidade e com relação ao coito heterossexual em particular; (4) que (1)-(3) constituem um sério obstáculo ao controle das mulheres sobre suas próprias vidas e identidades que é tanto muito íntimo quanto muito difícil de se escapar; (5) que o coito como é realmente praticado ocorre no contexto social de (1)-(3) e, assim, o coito como uma instituição social real e uma experiência real nas vidas de mulheres individuais é moldado e restringido por forças político-culturais e não meramente por escolhas individuais; (6) que, portanto, traçar as linhas éticas em relação a sexualidade unicamente com base no consentimento formal individual, em vez de considerar as condições culturais e materiais sob as quais a sexualidade e o consentimento formal ocorrem torna difícil para liberais e para algumas feministas que escrevem sobre sexualidade verem a verdade de (4); que (7) elas, portanto, acabam colaborando, seja por negligenciamento ou por endosso, com a sustentação de (1)-(3), em detrimento da liberação das mulheres; e (8) a política feminista requer contestar tanto esses escritos quanto (1)-(3), isto é, contestar o coito como é habitualmente praticado em nossa sociedade. Mas, embora eu espere que isto ajude a esclarecer um pouco, você realmente deveria ler todo o livro por si mesma para entender o que está acontecendo.
O mito é um contra o qual Andrea batalhou durante muitos anos. Eis o que ela tinha a dizer sobre a questão em sua entrevista com Michael Moorcock em 1995.
Michael Moorcock: Depois de Right-Wing Women e Ice and Fire, você escreveu Intercourse. Outro livro que me ajudou a esclarecer confusões sobre meus próprios relacionamentos sexuais. Você argumenta que atitudes quanto às relações sexuais convencionais consagram e perpetuam a desigualdade sexual. Diversos críticos lhe acusaram de dizer que todo coito era estupro. Eu não encontrei qualquer sinal disso em lugar algum do livro. É isso que você está dizendo?
Andrea Dworkin: Não, eu não estava dizendo isso e eu não disse isso, ali ou em qualquer momento. Há uma longa seção em Right-Wing Women sobre coito no casamento. Meu ponto era que, contanto que a lei permita uma isenção estatutária de um marido de acusações de estupro, nenhuma mulher casada tem proteção legal contra o estupro. Eu também argumentei, baseada numa leitura de nossas leis, que o casamento obrigava ao coito - era compulsório, parte do contrato de casamento. Sob as circunstâncias, eu disse, era impossível ver as relações sexuais no casamento como o livre agir de uma mulher livre. Eu disse que quando olhamos para a liberação sexual e para a lei, precisamos olhar não apenas para quais atos sexuais são proibidos, mas quais são obrigados.
Toda a questão do coito como a penúltima expressão de dominância masculina desta cultura se tornou cada vez mais interessante para mim. No Intercourse eu decidi abordar a questão como uma prática social, realidade material. Esta pode ser minha história, mas eu acho que a explicação social da calúnia do "todo sexo é estupro" é diferente e provavelmente simples. A maioria dos homens e um bom número de mulheres experimentam prazer sexual na desigualdade. Uma vez que o paradigma do sexo tem sido um de conquista, posse e violação, eu acho que muitos homens acreditam que eles precisam de uma vantagem injusta, que em seu extremo seria chamado de estupro. Eu não acho que eles precisem disso. Eu acho que tanto o coito quanto o prazer sexual podem e vão sobreviver à igualdade.
É importante dizer, também, que os produtores de pornografia, especialmente a Playboy, publicaram a calúnia do "todo sexo é estupro" repetidamente ao longo dos anos e ela foi tomada por outros como a Time que, quando contestados, não conseguem citar uma fonte em minha obra.
E. em um novo prefácio à edição de décimo aniversário do Intercourse (1997), Andrea explica por que ela acredita que este livro continua a ser mal interpretado:
[S]e a experiência sexual de alguém sempre e sem exceção foi embasada em dominância - não apenas atos evidentes, mas também suposições metafísicas e ontológicas - como ele pode ler este livro? O fim da dominância masculina significaria - no entendimento de tal homem - o fim do sexo. Se você erotizou um diferencial em poder que inclui a força como uma parte natural e inevitável do coito, como você poderia entender que este livro não diz que todos os homens são estupradores ou que todo coito é estupro? A igualdade no âmbito do sexo é uma ideia antissexual se o sexo requer dominação a fim de se registrado como uma sensação. Por mais triste que eu esteja em dizê-lo, os limites do velho Adão - e o poder material que ele ainda tem, especialmente na editoração e na mídia - estabeleceram limites sobre o discurso público (tanto por parte de homens quanto de mulheres) sobre este livro [páginas ix-x].
Eu espero que isto tenha ajudado a esclarecer a questão um pouco. Isto pode ser um pouco fraco para um "Myth-Busting Monday" - já foi tratado pelo feministe, sem mencionar pela própria Andrea Dworkin (através das estilizações web de Nikki Craft). Não obstante, continua aparecendo, então eu acho que vale a pena continuar a martelar o ponto, e - se nada mais - escrever algo para o Google sobre a questão e aumentar um pouco o Google juice de outros artigos que tocam no mesmo ponto. Se eu conseguir detonar o mito na cabeça de uma pessoa, então eu ficarei bastante contente; se eu conseguir fazer uma pessoa ou outra realmente ler o Intercourse antes que ela comece a guinchar para que ele seja queimado, então eu ficarei francamente exultante.
Notas do Tradutor
[NT01] O texto original é de Janeiro de 2005, Andrea Dworkin faleceu em Abril desse mesmo ano, aos 58 anos. Vide: https://en.wikipedia.org/wiki/Andrea_Dworkin#Illness_and_death
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