sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A Morte de Leviathan

A Morte de Leviathan
por Uriel Alexis


Lendo o texto do caro amigo Guilera, fico pensando que talvez eu devesse ter enfatizado mais o ponto metafísico sobre a esperança enquanto intimamente associada ao estado de vida. Seu texto “Leviathan Doente” apresenta críticas mordazes a muitos aspectos da sociedade contemporânea e à sua ideologia, muitos dos quais eu plenamente concordo, como ficará claro neste texto. Mas ao terminar a leitura, através de todas as alegorias e analogias deliciosas ali presentes, um sentimento de insatisfação ainda me corroeu: sim, ao longo da história vimos e vivemos terrores horríveis, e mesmo no atual momento - como eu mesmo frisei - muitos horrores afligem o mundo; sim, as esperanças nem sempre se cumpriram e por vezes justificaram terrores ainda maiores; mas, tendo tudo isso, toda essa crítica contundente, em mente, o que fazemos? Estamos vivas e, portanto, precisamos decidir o que fazer. Não fazer nada, ou deixar de fazer algo, também são frutos de uma decisão proposital. Não há escapatória à intencionalidade. Viver é escolher. E isso falta à crítica: uma proposta positiva, um “o que faremos”, por mais ingênuo e mirabolante que pareça. Sem isso, em vista de um panorama pesaroso, só nos restaria o suicídio, que parece que ambos repudiamos.
Guilera começa seu texto citando a majestosa imagem de Benjamin sobre o progresso: a ventania que propele o anjo da história, atônito, a algo que ele desconhece, enquanto observa os terrores dessa viagem. A crítica ao ideal do progresso é subjacente ao texto e parece levar direto a um pessimismo estratégico. Mas o otimismo - latente, como exposto, na própria condição da vida humana - não está necessariamente comprometido com qualquer noção de progresso: de que devemos “avançar” em direção e “algo melhor”, de que coisas inéditas e que essas novas coisas - artefatos tecnológicos - serão nossa redenção de todo o mal do mundo. Não, o otimismo pode muito bem estar (e, na concepção que defendi, de fato está) comprometido com uma revolta do anjo da história, um momento em que ele recolhe suas asas - ou simplesmente as corta fora -, luta contra o vento e de fato acorda os mortos e reconstrói o que foi destruído. O que fica claro nas visões de mutualistas - desde Proudhon, passando pelos anarquistas de Boston, até Carson - é que precisamos buscar maneiras de, andando para frente, retornarmos ao que já existiu, evitarmos a barbárie saindo da história.
No entanto, apesar de todos seus terrores, a história da civilização não foram apenas desgraças. Desenvolvemos, a duras penas, soluções para o que nos trouxe ao problema da civilização e do progresso em primeiro lugar: nossa incapacidade de conviver com a diferença. Renegar os direitos humanos, a perspectiva universalista de dignidade humana, os benefícios do exercício da razão é ignorar como, em meio a tantas desventuras, conseguimos nos adaptar, como permanecemos vivos. É esse processo de adaptação constante que devemos investigar se quisermos de fato responder à pergunta inicial sobre o que fazer.
Dentro dessa perspectiva, as respostas às críticas parecem surgir: Não, as classes exploradas não estão sendo “menos oprimidas”, mas a própria noção de classe está se dissolvendo. Não, o passado não está sendo redimido no presente, em etapas ou imediatamente, mas o presente tem suas próprias imposições sobre a organização social. Não, o capitalismo não se transfigurará em algo idílico, tampouco se autodestruirá, mas novas maneiras de produção e reprodução social estão surgindo em meio e contra o capitalismo. O rumo natural da história, se ela tiver qualquer rumo definido, não é passível de ser conhecido. Só podemos conhecer as condições atuais e decidir, aqui e agora, o que faremos sobre hoje. O futuro é propriedade de divindades.
Guilera também se preocupa com a expansão do fascismo numa sociedade altamente digitalizada. Ele aponta para as tecnologias de controle hoje disponíveis, mas parece se esquecer que nenhum sistema de monitoração fica sem incentivar a produção das respectivas tecnologias de resistência. A existência de uma deep web, de espaços virtuais criptografados, de uma série de ferramentas que eliminam qualquer possibilidade de rastreamento - ao ponto em que temos hoje a possibilidade de uma economia inteiramente virtual e, ainda assim, ou mesmo por causa disso, totalmente ilegível para sistemas centralizados de poder - demonstra novamente o processo de adaptação constante a que estamos submetidos. Se o fascismo se espalha facilmente, ele é resistido facilmente também. Se ele se alimenta de medo, fornece-se segurança. No que o pessimismo estratégico ajudaria nesse sentido? A esperança numa sociedade digitalizada surge justamente da capacidade de criação de espaços tão diversos que a saída de espaços em que ocorrem exclusão e punição é virtualmente garantida: você sempre pode encontrar uma outra comunidade em que esteja melhor adaptado, e isso é tanto mais verdade quanto mais se desenvolvem as tecnologias criptográficas.
Aqui tocamos num ponto fundamental: essas tecnologias (e outras) estão nos levando a uma “hecatombe ambiental”? Uma resposta afirmativa teria que supor que o modo de produção atual teria que ser mantido, em termos de consumo energético e desperdício, para que elas continuassem a funcionar. Não parece ser o caso, tendo em vista que a própria preocupação global em relação à sustentabilidade da humanidade com o paradigma produtivo atual gerou grandes incentivos à busca por uma produção mais adaptada aos processos naturais. Como mencionei no texto anterior, existem “técnicas tais como a permacultura, a bioconstrução, a produção p2p e cripto-transações” que possibilitam esse tipo de produção. De que modo que não se postula aqui que o nosso modo de vida vai se perpetuar indefinidamente, mas que ele vai se adaptar indefinidamente às circunstâncias que se apresentem.
Contudo, é verdade que não é a tecnologia que determina os rumos que a sociedade tomará, mas os valores dessa sociedade. À tecnologia apenas é possível abrir ou fechar caminhos em direção a esses valores. E tais valores são expressões de nossas ações em meio ao ambiente complexo que é a sociedade. A liberdade - um valor, se jamais houve um - pode ser vista, assim, como um atributo do padrão de organização de uma sociedade: quanto mais sua organização é dinâmica e imprevisível, mais livre ela é. A liberdade, portanto, é imanente num padrão de ação, guiado por valores, dentro de um contexto de adaptação possibilitada por fluxos de informação. De maneira mais poética, você é livre quando age livre e influencia, assim, todas as pessoas a agirem livre. De onde se conclui que a liberdade só é liberdade quando é liberdade de todos, expressa em práxis, e não uma justificativa abstrata para um ou outro agir autoritário. Você não pode enganar uma topologia.
Portanto, se nosso valor é a liberdade, agimos de forma livre. Se há voluntarismo, ele é idêntico ao consentimento e, assim, não há uma submissão à lei dos outros, mas de cada um à sua própria lei. Esse é o ponto recorrente dos individualistas, desde Stirner: se há escravidão, nós a produzimos porque a escolhemos, porque agimos dessa forma. Assim, por certo, esse problema, decorrente do desejo, se torna institucional.
Em 1851, em seu livro A Ideia Geral da Revolução no Século XIX, Proudhon escreveu:


Debaixo da máquina governamental, à sombra das instituições políticas, fora da vista de estadistas e padres, a sociedade está produzindo seu próprio organismo, lenta e silenciosamente; e construindo uma nova ordem, a expressão de sua vitalidade e autonomia e a negação da velha política, assim como da velha religião.


O Leviathan, com sua consciência hegemônica em conflito e negação, será forçado a ouvir a voz do corpo de seu hospedeiro, a sociedade, de quem vem se alimentando, quando ela se alterar - se adaptar - ao ponto de eliminá-lo de dentro de si. A voz que declarará seu óbito não será a do Progresso, do vento que uiva vindo do paraíso, mas desse corpo em frenesi, que o monstro sempre julgou compreender e lhe pertencer.

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