sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A antinomia mais ampla - II

A antinomia mais ampla - II

Eu acho que podemos postular com segurança duas categorias muito gerais de respostas a Proudhon: aquelas que assumem que seu trabalho, e particularmente seu trabalho sobre propriedade, foi mais completo do que consistente, e aquelas que insistem que ele foi mais consistente do que completo. De acordo com a primeira abordagem, a frase "propriedade é roubo", certas propostas na Teoria Geral da Revolução e a trajetória geral da Capacidade Política das Classes Trabalhadoras (ou alguma coleção aproximadamente similar) constituem o trabalho principal de Proudhon - estabelecendo a fundação do anarquismo social - e a tarefa crítica é superar todos os desvios e contradições que distraem e poderiam levar a outras estradas. A segunda abordagem foca no papel central das "contradições" no trabalho de Proudhon e tende prestar muitar atenção à recorrência de certos elementos desafiadores de seu pensamento ao longo de toda sua carreira, acumulando pontas soltas e repetições sugestivas, enquanto constantemente vasculha as obras por mais dados. Ambas as abordagens tem seus riscos associados, mas eu não acho que ninguém tem quaisquer ilusões sobre qual eu considero mais útil, em particular neste estágio de nossa redescoberta de Proudhon.

De algumas maneiras, claro, eu acho que a primeira abordagem está em uma séria desvantagem. Há simplesmente indicações demais na obra de Proudhon de que ele se considerava engajado em um constante trabalho-em-andamento, e, pelo menos no mundo de língua inglesa, a maioria de nós ainda está explorando, tentando determinar a medida de seus projetos - e é um negócio perigoso começar a aparar galhos quando você não sabe realmente bem para que tipo de árvore você está olhando.

Se você não está simplesmente começando com a suposição de que as coisas importantes no trabalho de Proudhon foram aquelas úteis para Bakunin e Kropotkin, algumas características gerais desse trabalho se tornam óbvias bem rapidamente - em grande parte porque elas apresentam problemas tão constantes e difíceis para o leitor. Proudhon estava envolvido em uma gama de tipos de análises, com basicamente todos eles sendo dependentes de algum tipo de jogo dialético entre elementos antagonísticos, contraditórios ou antinômicos. Nas discussões sobre a propriedade, encontramos algumas versões diferentes da narrativa semi-histórica/desenvolvimentista, na qual Proudhon postula "comunidade" e "propriedade" (1840) - ou "propriedade" e "comunismo" (1846), ou "feudo" e "alódio" (1861/5) - como "estágios" no desenvolvimento das normas de gestão de recursos. Encontramo-lo contrapondo "posse" e "propriedade" enquanto princípios, respectivamente, de "fato" e de "direito", ao passo que, em meio à mesma obra, também as descrevendo como, respectivamente, consistente com e contra o "direito". Encontramo-lo contrapondo formas individuais e coletivas de propriedade (em termos gerais), enquanto tratava qualquer forma de coletividade organizada digna do nome como também um indivíduo, descrevendo indivíduos como sempre já "grupos" ou "séries" e, em última análise, deixando claro que a propriedade que é "roubo" para o indivíduo humano também seria roubo para a mais inclusiva coletividade. A propriedade toma seu lugar em meio ao jogo de instituições centralizadoras e descentralizadoras. Ela é "roubo", "impossível" e "liberdade". E, claro, é um dos elementos daquela "síntese de comunidade e propriedade" que Proudhon acreditava que produziria a liberdade. Há, em sua maior parte, uma consistência complexa e que gradualmente se desenvolve em tudo isso, mas não há nada de fácil sobre seguir todas as linhas, particularmente já que elas tendem a levar em várias direções a partir de qualquer dado ponto no estudo de Proudhon.

As dificuldades de se mapear o projeto geral de Proudhon exigiram muitas repetições reais ou aparentes em meus próprios escritos sobre o assunto e muitas articulações isoladas de elementos selecionados, com, espero eu, algum progresso geral em mostrar como as várias partes da análise se encaixam. Mas muito do avanço que eu fiz foi alcançado ao colocar a obra de Proudhon em diálogo com os trabalhos de uma variedade de outras figuras - Max Stirner, John Locke, Pierre Leroux e todas as outras figuras que eu convoquei à margem do rio no experimento mental em forma dramática simulada que eu espero que seja útil como ponto de partida para reunir as várias análises parciais. O resultado foi, sem dúvida, um aumento útil em clareza localizada, no que dizia respeito a aspectos particulares das várias análises, mas provavelmente também um aumento razoavelmente intimidador na complexidade do projeto como um todo. Eu certamente não estive imune a uma certa sensação de afogamento, conforme a busca por clareza multiplicou perguntas tão rápido quanto respostas.

A luz no fim do longo túnel, para mim, foi uma forte senso de que, por trás das intimidadores e fascinantes complexidades das várias análises de Proudhon, existiam alguns princípios básicos ou, pelo menos, uma dinâmica básica que, uma vez identificada, poderia simplificar substancialmente o resto do trabalho, permitindo-nos conectar mais facilmente os vários tipos de análise nos escritos de Proudhon uns com os outros e com o trabalho desses outros teóricos que haviam entrado no jogo. (Ou no proverbial trem que se aproxima?)

Por algum tempo, eu estive focado naquela fórmula para a liberdade, "a síntese de comunidade e propriedade", e no relato de desenvolvimento - na seção sobre a "terceira forma de sociedade" de O Que É a Propriedade? - em que Proudhon a introduziu. Seguindo Proudhon, eu fui capaz de dizer muito sobre a "propriedade" e comparativamente pouco sobre a "comunidade" e estive tentando esclarecer os vários tipos de "propriedade" o suficiente para determinar exatamente o que este outro polo esquivo da dialética da liberdade realmente é. Há influências em Proudhon que tornam fácil acreditar que, no sentido mais abstrato, a antinomia mais geral à espreita por trás de contraposições como centralizador/descentralizador, propriedade/comunidade, lei/fato, etc. poderia estar relacionada ao "circulus" de Pierre Leroux ou o foco no livre fluxo das paixões em Charles Fourier. Mas a questão da influência é complicada na obra de Proudhon. Nas memórias sobre a propriedade, junto com seus ataques partidários a Leroux e aos seguidores de Fourier, encontramos esses dois endossos um tanto surpreendentes.

Os discípulos de Fourier há muito me pareceram os mais avançados de todos os socialistas modernos e quase os únicos dignos do nome. Se eles houvessem entendido a natureza de sua tarefa, falado ao povo, despertado suas simpatias e mantido o silêncio quando não entendiam; se eles houvessem criado pretensões menos extravagantes e tivessem demonstrado mais respeito para inteligência pública, - talvez a reforma agora estivesse, graças a eles, em andamento. - O Que É a Propriedade?

Eu devo aqui declarar livremente - a fim de que eu não possa ser suspeito de conivência secreta, o que é alheio à minha natureza - que M. Leroux tem minha completa simpatia. Não que eu seja um crente de sua filosofia semi-pitagórica (sobre este assunto eu teria mais do que uma observação a lhe enviar, contanto que um veterano coberto de listras não desprezasse as observações de um recruta); não que eu me sinta vinculado a este autor por qualquer consideração especial por sua oposição à propriedade. Em minha opinião, M. Leroux poderia, e mesmo deveria, declarar sua posição de maneira mais explícita e lógica. Mas eu gosto, eu admiro, no M. Leroux, o antagonista de nossos semideuses filosóficos, o demolidor de reputações usurpadas, o crítico impiedoso de tudo que é respeitado por causa de sua antiguidade. Esta é a razão para minha alta estima do M. Leroux; este seria o princípio da única associação literária que, neste século de círculos sociais, eu me importaria em formar. Precisamos de homens que, como o M. Leroux, coloquem em questão os princípios sociais, - não para difundir dúvida em relação a eles, mas para torná-los duplamente certos; homens que excitam a mente através de negações audazes e fazem a consciência tremer através de doutrinas de aniquilação. - Carta ao M. Blanqui sobre a Propriedade

E Proudhon sem dúvida, apesar de algumas negações, incorporou sim um bom tanto do pensamento básico de Fourier e Leroux em sua própria obra. A Criação da Ordem na Humanidade é uma fascinante reformulação do material da Teoria dos Quatro Movimentos, mas não há dúvida de onde os elementos retrabalhados se originaram, assim como não há muita dúvida de onde a ênfase na análise serial, a oposição ao simplismo, etc vêm. Os empréstimos de Pierre Leroux mais provavelmente escapam a muitos leitores, mas principalmente porque a obra de Leroux agora é quase desconhecida. Sabemos que Proudhon sinceramente rejeitava os elementos mais "utópicos" de ambos os pensadores, mas a questão é se ele absorveu qualquer parte de sua fascinação compartilhada com a circulação natural e fluxos passionais.

A dificuldade é que, na maioria de seus escritos sobre a propriedade, Proudhon criticava leis e especulava sobre o desenvolvimento histórico. Quando ele estava falando sobre propriedade - e sobre seu polo oposto - ele evitava o tipo de discussão abstrata e geral que nos ajudaria a conectar ao tipo de teoria que encontramos em Fourier e Leroux. Mas se olharmos para seus escritos sobre liberdade, sobre progresso e sobre a Revolução, começamos a ver alguns padrões razoavelmente persistentes, nos quais o transitório e o estável são contrapostos. E aí nos deparamos com a discussão sobre propriedade e roubo em A Celebração do Domingo e talvez tenhamos nossa conexão ao exame da propriedade.

O que eu pretendo fazer é fazer muito desta definição de roubo que Proudhon propôs na Celebração: "desviar, reservar ou perverter". E talvez eu faça um pouco demais disso, de uma perspectiva estritamente proudhonológica. De uma maneira ou de outra, eu não consigo realmente fazer a defesa aqui. Estou recorrendo a muito material que está indisponível para a maioria dos meus leitores e, em alguma medida, simplesmente recorrendo às minhas intuições em desenvolvimento sobre o "quadro maior" no pensamento de Proudhon. O que eu posso fazer, contudo, é lembrar os céticos de que, para Proudhon, "o problema da propriedade [era], depois daquele do destino humano, o maior que a razão pode propor e o último que ela será capaz de resolver". Então, se acharmos, como parece que achamos, que era precisamente na esfera da propriedade que as ideias de Proudhon parecem ter demorado mais para se reunirem, se era nesta investigação que ele deixou linhas suspensas durante toda a extensão de sua carreira, talvez não devêssemos ficar surpresos - ponto no qual eu não acho que podemos ser criticados por aplicar os produtos razoavelmente consistentes de suas outras investigações a essa questão espinhosa.

Então...

E se a antinomia mais ampla na obra de Proudhon, a dinâmica que ligava suas várias análises mais focadas, fosse essencialmente um jogo dialético entre "perverter ou reservar" e "não perverter e reservar", com o primeiro sendo identificado com a "propriedade" e o outro com uma alternativa, ou série de alternativas, que permanece elusiva, mas que, como "comunidade", Proudhon logo no início associou com o "movimento espontâneo" da "sociabilidade"? E se arrastarmos essa antinomia para cima do tipo mais amplo de palco, tratando seus termos opostos como tendência abstratas a, por um lado, circulação e disseminação e, por outro, concentração e persistência? Esta oposição do fluído e do firme imediatamente traz à lembrança qualquer número de binários culturais familiares, muitos eles bem claramente com gêneros - e estaríamos nos enganando se pensássemos que vamos evitar algum trabalho exigente sobre a questão de gênero e propriedade antes de estarmos acabados com Proudhon. Ela poderia também trazer à lembrança as duas "dádivas" sobre as quais eu propus uma base para uma noção mutualista de auto-propriedade, no contexto da "economia da dádiva de propriedade". Para aqueles que se emaranharam com o tratamento de Proudhon sobre individualidades e coletividades como duas faces da organização serial, outros sinos podem soar. A noção da Revolução como tanto conservadora quanto progressista responde talvez a muito da mesma dinâmica guia? E a ideia de que o mutualismo é necessariamente um "anarquismo de aproximações"?

Esta é, em última análise, a intuição sobre a base da qual eu desenvolvi a análise neo-Proudhonia da propriedade que eu tenho proposto, no curso da qual eu tendi a mobilizar a interpretação mais intransigentemente associal do egoísmo de Stirner - entendido como uma filosofia para o único como "a única pessoa" - em conjunto e contra o sentido de um Pierre Leroux ou Joseph Dejacque de que estamos todos nisto juntos, inseparavelmente conectados em uma circulus universal. Estive contente em recorrer a esse qualificador, neo-, enquanto eu explorava o pensamento de Proudhon mais completamente, mas talvez eu tenha sido, na verdade, bastante ortodoxo em minhas próprias invenções.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A antinomia mais ampla - I

A antinomia mais ampla - I


"Quando Jesus Cristo, ao explicar às pessoas os diferentes artigos do Decálogo, lhes ensinou que a poligamia havia sido permitida para os antigos por causa da rudeza de sua inteligência, mas que não houvera sido assim no começo; que um mau desejo é igual a uma fornicação consumada; que insulto e afronta são tão repreensíveis quanto assassinato e golpes; que é um parricida quem diz a seu pobre pai: "Esta manhã eu rezei para Deus por você; isso lhe beneficiará"; ele não diz nada sobre o 8º mandamento, que dizia respeito ao roubo, jugando a dureza de coração de sua audiência ainda grande demais para a verdade que tinha a dizer. Depois de dezoito séculos, somos dignos de ouvi-la?" - P.-J. Proudhon, A Celebração do Domingo.


Enquanto estou apanhando linhas caídas e revisitando argumentos básicos na discussão sobre a propriedade, é importante incorporar os elementos que resultaram do meu trabalho sobre A Celebração do Domingo de Proudhon. Essa obra inicial introduziu uma série de reviravoltas potenciais na estória de Proudhon e a "propriedade". Três se destacam:


  1. Antecipando uma série de outras instâncias em que ele descreveria a "propriedade" como talvez a maior questão que a humanidade já enfrentou, Proudhon descreveu Jesus passando por cima de uma discussão sobre o roubo, a noção que viria a definir a propriedade para Proudhon, por que era, em essência, um tópico cujo tempo ainda não havia chegado. Ao passo que isto não é uma "reviravolta", tanto quanto é evidência de uma ênfase consistente nas dificuldades e na importância da questão, isso é extremamente útil, dadas todas as tentativas de retratar "propriedade é roubo" como o único elemento realmente importante da teoria de propriedade Proudhon. A insistência consistente nas dificuldades envolvidas tem que pesar fortemente contra qualquer tentativa de tomar o bon mot de Proudhon como tudo que realmente importa em sua análise.


(Para aqueles pouco familiarizados com outras afirmações deste tipo, aqui está um outro exemplo:


"O problema da propriedade é, depois daquele do destino humano, o maior que a razão pode propor e o último que ela será capaz de resolver. De fato, o problema teológico, o enigma da religião, já foi explicado; o problema filosófico, que trata do valor e da legitimidade do conhecimento, está resolvido: resta o problema social, que simplesmente reúne estes dois, e a solução do qual, como todos acreditam, vem essencialmente da propriedade." - P.-J. Proudhon, Sistema de Contradições Econômicas.)


  1. Em uma discussão quanto ao valor da solidão e da reflexão impostas pela celebração do Domingo para a sociedade, Proudhon deixou claro que ele acreditava que o desenvolvimento e a saúde da sociedade era dependente da intervenção periódica de um tipo de isolamento antissocial. Moisés impôs um tipo de eremitério semanal sobre os israelitas a fim de torná-los humanos, para lhes permitir crescer, se desenvolver e buscar a verdade.


Se Moisés tivesse tido o poder, ele nunca teria tido o pensamento de transformar seus fazendeiros em efetivos eremitas; ele queria apenas torná-los homens, acostumá-los, através da reflexão, a buscarem o justo e o verdadeiro em tudo. Assim, ele se esforçou para criar em torno deles uma solidão que não destruiria a grande afluência e que preservava todo o prestígio de um verdadeiro isolamento: a solidão do Sabá e das festas.


Uma das objeções a muito da teoria de propriedade de Proudhon vêm de uma resistência à noção de que o caminho para uma sociedade anarquista pudesse passar por uma instituição, como a propriedade simples, que Proudhon caracterizava como não simplesmente insocial, mas em algum sentido despótica, mesmo antropofágica. Mas há uma linha que corre pela obra de Proudhon, desde A Celebração do Domingo até A Teoria da Propriedade, que sugere que uma crença exatamente neste tipo de rota para a liberdade era uma de suas crenças razoavelmente constantes. Os comentários de 1839 são seguidos por estas observações:


"As consequências da transgressão de Adão são herdadas pela raça; a primeira é a ignorância". Verdadeiramente, a raça, como o indivíduo, nasce ignorante; mas, em relação a uma multiplicidade de questões, mesmo nas esferas moral e política, esta ignorância da raça foi dissipada: quem diz que ela não se afastará completamente? A humanidade faz um progresso contínuo em direção à verdade, e a luz sempre triunfa sobre a escuridão. Nossa doença não é, então, absolutamente incurável, e a teoria dos teólogos é pior do que inadequada; ela é ridícula, uma vez que é redutível a esta tautologia: "O homem erra, porque ele erra". Ao passo que a afirmação verdadeira é esta: "O homem erra, porque ele aprende". Ora, se o homem chegar a um conhecimento de tudo que ele precisa saber, é razoável acreditar que, deixando de errar, ele deixará de sofrer.


A noção de que seres humanos poderiam eventualmente deixar de errar se tornou gradualmente menos defensável para Proudhon, conforme ele elaborava sua filosofia do progresso - e não era, sem dúvida, tão consistente assim com um pouco do que ele escreveu em O Que É a Propriedade? em primeiro lugar - então poderíamos estar inclinados a ver como inteiramente consistente com o pensamento maduro de Proudhon que errar é sempre parte do caminho para aprender, e aprender é uma jornada sem fim. E quando - entre propor a "universalização do roubo" em 1842 e sugerir que o resultado imprevisto de um livre mercado poderia ser algo como o comunismo - ele alegou, em Sistema de Contradições Econômicas, que:


"Por abuso, o legislador quis dizer que o proprietário tem o direito de estar errado no uso de seus bens, sem jamais estar sujeito a investigação por este uso mau uso, sem ser responsável perante qualquer pessoa pelo seu erro."


é como se devêssemos ter esperado por isso o tempo todo, e o argumento estivesse feito a favor de um certo tipo de propriedade, por tanto tempo quanto os seres humanos continuem a errar.


  1. A terceira referência à propriedade é a discussão do verdadeiro significado daquela injunção contra o "roubo" no Decálogo:


A igualdade de condições está em conformidade com a razão e é um direito irrefutável. Está no espírito do cristianismo e é a meta da sociedade; a legislação de Moisés demonstra que ela pode ser alcançada. Este dogma sublime, tão assustador em nosso tempo, tem suas raízes nas profundezas mais íntimas da consciência, onde é misturado à própria noção da justiça e do direito. Não roubarás, diz o Decálogo, o que é dizer, com o vigor do termo original, lo thignob, você não desviará nada, você não reservará nada para si mesmo. A expressão é genérica como a ideia em si: proíbe não apenas o roubo cometido com violência ou por ardil, fraude e depredação, mas também todo tipo de ganho adquirido dos outros sem sua completa concordância. Implica, em suma, que toda violação da igualdade de divisão, todo prêmio arbitrariamente exigido e tiranicamente coletado, seja em troca ou a partir do trabalho de outros, é uma violação da justiça comunicativa, é uma apropriação indébita.

Lido de acordo com o que eu venho chamando de interpretação "energética" dos termos, isto ameaça não apenas uma reviravolta, mas uma derrubada de muito do que pensávamos que sabíamos sobre Proudhon e propriedade. Se o roubo é realmente anterior à propriedade, há uma variedade de consequências. Certas objeções simplistas à frase "propriedade é roubo" perdem um bom tanto de sua força, e talvez vejamos uma outra instância do tipo de lógica que eu discuti no #2 acima. Mas a possibilidade que tem sido a mais excitante para mim é que, ao destrinchar as específicas "variedades de roubo e propriedade", podemos começar a vislumbrar um elemento da teoria de Proudhon que foi anteriormente difícil de isolar: uma contradição geral ou antinomia que informa todo o projeto de Proudhon.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Variedades de "roubo" e "propriedade"

Variedades de "roubo" e "propriedade"

Geralmente é legal evitar pegar problemas complexos e deixá-los ainda mais complexos - mas nem sempre. Podem haver alguns avanços reais, em termos de clareza, a serem ganhos da incorporação de nossas questões sobre "roubo" no enigma mais amplo em relação a Proudhon e a "propriedade". Mas vamos ter que proceder cautelosamente. Vamos começar com um tipo de catálogo dos conceitos que podem ou não estar em jogo, conforme tentamos desembrulhar a infame frase de Proudhon, "propriedade é roubo", nos conteúdos de suas observações sobre o mandamento, "não roubarás".

ROUBO: Temos duas prováveis definições do termo "roubo". Ele poder ser tomado, em um sentido razoavelmente convencional, para significar apropriação indébita de uma "propriedade" já existente.

Alternativamente, ele pode significar alguma categoria mais ampla de má utilização censurável de recursos, envolvendo "manter, transformar ou reservar". Talvez não devêssemos sequer chamar isto de "roubo", já que presumivelmente é "o conceito mal traduzido como 'roubo' (no primeiro sentido)", exceto que nossa preocupação mais imediata é se o "roubo" em "propriedade é roubo" deveria ser entendido de acordo com uma definição estrita ou não, pressupondo alguma forma de "propriedade" legítima, ou, de maneira mais ampla, em um sentido que pode ser antagônico a todas as formas de "reservação". Pensaremos em ambos como possíveis definições de "roubo" neste contexto em particular, e eu não acho que teremos errado demais.

RELAÇÕES DE RECURSOS QUE NÃO SÃO ROUBO: Com o primeiro sentido, mais estrito, de "roubo", sabemos que o outro conceito chave pressuposto pela definição é, na verdade, "propriedade". Podemos não saber os detalhes sobre em que a "propriedade" implica, mas sabemos que não podemos muito bem chegar ao "roubo" (de "propriedade") sem esse outro termo. (Quanto mais vaga nossa noção de "propriedade", tanto mais vago, naturalmente, será nosso conceito de "roubo" - e sabemos que há uma noção extremamente vaga de "propriedade" à espreita no pano de fundo da obra de Proudhon. Sabemos também, contudo, que ele parece ter endereçado a frase "propriedade é roubo" a uma variedade muito mais claramente definida.)

Mas se "reservar" é censurável não porque há uma forma previamente existente de propriedade legítima que está sendo abusada de alguma forma, mas porque algum outro tipo de impropriedade (e, sim, os dois podem ser difíceis de separar), nos resta descobrir o que "não reservar" é em sua forma positiva, e o que é positivo sobre isso. Se, por exemplo, "propriedade é roubo" porque a pré-condição para qualquer tipo de propriedade seria uma acumulação ou "reservação" que violaria a interpretação mais ampla da injunção contra o "roubo", nos restaria determinar apenas que relacionamento ou ordem está sendo rompido pelo desvio de recursos. A candidata mais óbvia para um equivalente de "não reservar" provavelmente é a "comunidade" (communauté) que Proudhon propõem como a primeira forma de sociabilidade e a tese para a antítese da "propriedade", em 1840. Esse termo infelizmente foi traduzido por Tucker como "comunismo", levando a mal-entendidos e "esclarecimentos" questionáveis sobre ao que Proudhon estava objetando em suas críticas da "comunidade". Eu acho que este é um caso em que fomos frequentemente rápidos demais para saltar para defesa de rótulos, quando uma atenção um pouco maior aos textos relevantes teria deixado claro que Proudhon estava jogando um jogo um tanto diferente. Este não é o lugar para um tratamento completo do que Proudhon disse sobre a "comunidade" em 1840, mas provavelmente vale a pena notar que a caracterizou, em uma passagem chave, como o "movimento espontâneo" da "sociabilidade". Se a antítese de um indivíduo "manter, transformar ou reservar" é um movimento espontâneo e sociável, talvez tenhamos pelo menos os primórdios de um relacionamento tese/antítese um pouco mais convincente, uma base mais interessante para aquela "síntese de comunidade e propriedade" que Proudhon associava com a "liberdade" do que a maioria das que propusemos até agora.

PROPRIEDADE: Isso nos deixa com o mais escorregadio dos termos-chave de Proudhon: a "propriedade". Ao passo que ele foi razoavelmente explícito sobre suas definições em cada estágio, não está claro que ele sempre foi inteiramente fiél a suas definições declaradas e, mesmo que ele tenha sido, ele ele criou um certo emaranhado com elas. Como já notei, Proudhon reconhecia uma categoria ampla e vaga de "propriedade", dentro da qual os termos chave de sua análise em 1840, "propriedade simples" e "posse simples", podem ser contados como possíveis variedades. Este é o ponto no qual ele provavelmente era menos consistente, contudo, uma vez que, às vezes, ele não queria chamar a "posse" pelo nome de "propriedade", ao passo que, em outras, ele o fazia - mas durante o período em que ele não queria fazê-lo, ele ainda reconhecia (na introdução da segunda edição de O Que É a Propriedade?) que, por "propriedade", ele queria dizer "o abuso da propriedade". Ele nunca parece ter negado a possibilidade de uma "propriedade" que não fosse "roubo" por muito tempo em um trecho.

A "propriedade simples", ou "domínio", era consistentemente definida como uma "questão de direito" e, especificamente, do "direito de uso e abuso", e foi sobre esta "propriedade" que Proudhon disse que "propriedade é roubo" em 1840. E foi em torno de uma forma particularmente forte de "propriedade simples ou alodial" que Proudhon construiu sua "nova teoria" de propriedade em A Teoria da Propriedade. Nesta obra final, era precisamente a natureza absoluta da "propriedade simples", seu caráter enquanto "roubo", que lhe dava seu caráter desejável, uma vez que essa teoria dependia do uso da propriedade para criar um espaço dentro do qual o indivíduo estaria abrigado das demandas absolutas de outros proprietários e de qualquer "estado" ou instituições similares ao estado que pudessem existir em uma sociedade livre.

A "posse simples", que Proudhon constantemente amontoa com "feudo", é, ao contrário, uma "questão de fato". Proudhon admitiu, em A Teoria da Propriedade, que ele ainda não havia realmente definido "posse" em suas primeiras obras e fez as seguintes observações sobre o assunto:

A posse, indivisível, intransferível, inalienável, pertence ao soberano, príncipe, governo ou coletividade, do qual o inquilino é mais ou menos dependente, feudataire ou vassalo. Os alemães, antes da invasão, os bárbaros da Idade Média, conheciam apenas ela; ela é o princípio de toda a raça eslava, aplicado neste momento pelo Imperador Alexandre a sessenta milhões de camponeses. Essa posse implica nela os vários direitos de uso, habitação, cultivo, pasto, caça e pesca - todos os direitos naturais que Brissot chamava de PROPRIEDADE de acordo com a natureza; é a uma posse desse tipo, mas que eu não havia definido, que eu me referi em minha primeira Memória e em minhas Contradições. Essa forma de posse é um grande passo na civilização; é melhor, na prática, do que o domínio absoluto dos romanos, reproduzido em nossa propriedade anárquica, que está matando a si mesma com crises fiscais e seus próprios excessos. É certo que o economista não possa exigir nada mais: ali o trabalhador é recompensado, seus frutos garantidos; tudo que pertence legitimamente a ele está protegido. A teoria da posse, princípio da civilização das sociedades eslavas, é o mais honrável desta raça: ele compensa o atraso de seu desenvolvimento e torna inexpiável o crime da nobreza polonesa.

Mas esta é a última palavra da civilização, e do direito também? Eu acho que não; pode-se conceber algo mais; a soberania do homem não está inteiramente satisfeita; a liberdade e a mobilidade não são grandes o suficiente.

(Infelizmente, Proudhon também observou, em O Que É a Propriedade?, que: "Posse é um direito; propriedade é contra o direito". Isto não é necessariamente uma contradição das outras caracterizações, mas certamente complicará as questões mais do que um pouco, quando chegar a hora de falar sobre "direito" e "direitos".)

A Teoria da Propriedade contém um capítulo sobre "Os Vários Significados da Palavra 'Propriedade'", que esclarece alguns pontos das primeiras obras. Mas a maior parte das dificuldades nas obras de Proudhon sobre a propriedade não são realmente terminológicas. Daquelas que o são, a maioria das mais espinhosas giram em torno da mal-definida ou não-definida "posse".

Se forcarmos, por ora, em desembrulhar os possíveis significados da frase "propriedade é roubo", parecemos ter a maior parte do que precisamos. Há uma gama de potenciais interpretações, a menos interessante delas sendo a sugerida pela redefinição de "propriedade" como "abuso de propriedade", o que significa que a frase pode ser reproduzida como: O abuso da propriedade é roubo. E isto, por sua vez, se decompõe, dependendo de como definimos "roubo", em ou "o abuso da propriedade é o abuso da propriedade", ou, talvez, "o abuso da propriedade - que é embasado em "reservar", o que o torna roubo - é roubo". Mas se aceitarmos a definição mais ampla de "roubo", então já essencialmente definimos "propriedade simples" como "roubo". Honestamente, nenhuma formulação parece comprimir bem o ímpeto da frase com todo seu aparente escândalo e paradoxo intactos. Mas provavelmente ficamos um pouco apegados demais ao escândalo e ao paradoxo, de qualquer forma.

O que ganhamos com toda esta complicação e explicação exploratória? Eu acho que pelo menos esclarecemos os tipos de questões que precisamos responder para ir além da famosa/infame frase e, talvez, perseguir mais bem-sucedidamente o projeto daquela "síntese de comunidade e propriedade" e confrontar o problemas espinhoso da "posse".

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Feminismo Dialético: O Ideal Desconhecido

Feminismo Dialético: O Ideal Desconhecido

Robert Campbell nos convida a considerar que as feministas caiam em dois grupos. (Não está claro se a divisão deveria ser exaustiva.) Um grupo, as "feministas individualistas" ou "feministas libertárias", mantém que "a igualdade de direitos está ficando próxima de ser consistentemente reconhecida em países como os Estados Unidos" e que "maiores esforços feministas, nesta parte do mundo, deveriam visar estritamente aquelas áreas restantes onde os sistemas legal e político privilegiem os homens sobre as mulheres". O outro grupo, que ele chama de "feministas coletivistas" (seu alvo é aproximadamente equivalente ao "feminismo radical", compreendido de maneira ampla), mantém que "os homens são a classe opressora; as mulheres são a classe vítima; e as mulheres consequentemente tem o direito de assumir o papel opressor, pelo menos durante os próximos mil anos". (Esta última parte é uma caricatura sarcástica de sua parte, mas, presumivelmente, ela poderia se reescrita, de maneira menos tendenciosa, como algo semelhante a: "os homens são em grande parte uma classe opressora; as mulheres são em grande parte uma classe de vítimas; e as mulheres consequentemente têm o direito de empregar o poder do estado para promulgar legislações que especificamente favoreça os interesses das mulheres".)

O que me incomoda sobre esta maneira de fatiar o terreno político não é que ela seja imprecisa; pelo contrário, eu acho que é depressivamente precisa em sua caracterização tanto das feministas libertárias quanto das feministas radicais. Antes, o que me preocupa é a sugestão implícita de que considerar algo como um objeto legítimo de preocupação feminista é, ipso facto, considerá-lo como um objeto apropriado de legislação. Nesta visão, as feministas radicais vêem que muitas questões merecem atenção feminista, então naturalmente elas são a favor de muita legislação; as feministas libertárias preferem uma legislação mínima e, assim, elas devem pensar que relativamente poucas questões merecem atenção feminista. Agora, isto é descritivamente verdadeiro até demais; a maioria das feministas radicais de fato passam uma boa parte do tempo trabalhando para aumentar o poder do estado, e a maioria das feministas libertárias de fato passam uma boa parte do tempo dizendo às feministas radicais para "superar isso". Mas, da maneira em que vejo, ambos os lados estão cometendo o mesmo erro: ambos eles pensam que as preocupações feministas e a atividade legislativa caminham juntas.

Uma razão pela qual eu continuo apontando para as anarquistas individualistas do século XIX (doravante abreviado para "as anarquistas") como o modelo apropriado para o feminismo é que elas não cometiam este erro. Elas eram igualmente feministas libertárias e feministas radicais.

O que é feminismo radical? Pegarei, mais ou menos aleatoriamente, duas caracterizações da web. Eis aqui uma da Wikipedia:

O feminismo radical vê a opressão das mulheres como um elemento fundamental na sociedade humana e busca desafiar esse padrão rejeitando de maneira ampla os papéis padrão de gênero.

Muitas feministas radicais acreditam que a sociedade força um patriarcado opressor sobre as mulheres (alguns masculinistas alegam que o patriarcado oprime homens também) e buscam abolir esta influência patriarcal. Por isso, alguns observadores acreditam que o feminismo radical [deveria] focar na opressão de gênero do patriarcado como a primeira e mais fundamental opressão que as mulheres enfrentam. Contudo, críticas da visão acima resultaram em uma perspectiva diferente do feminismo radical, mantida por algumas pessoas, que reconhece a simultaneidade ou interseccionalidade de diferentes tipos de opressão que podem incluir, mas não estão limitadas, às seguintes: gênero, raça, classe, sexualista, habilidade, ao passo em que ainda afirma o reconhecimento do patriarcado.

E esta do [agora defunto] "Students dot Washington dot Education":

Princípios Fundamentais do Feminismo Radical

1. As mulheres são oprimidas pelo patriarcado.

2. O patriarcado é um sistema hierárquico de dominação e subordinação das mulheres pelos homens. Ele consiste de e é mantido por um ou mais dos seguintes:

  • Maternidade compulsória e restrições sobre a liberdade reprodutiva
  • Heterossexualidade compulsória
  • A construção social da feminilidade e da sexualidade feminina como aquela que é "dominada"
  • Violência contra as mulheres
  • Instituições que encorajam a dominação das mulheres pelos homens, tais como a igreja, e modelos tradicionais da família.

3. Para acabar com a opressão das mulheres, devemos abolir o patriarcado. Isto potencialmente envolverá:

  • Desafiar e rejeitar os papéis tradicionais de gênero e as maneiras em que as mulheres são representadas/construídas na linguagem, na mídia, assim como nas vidas pessoais das mulheres.
  • Lutar contra as construções patriarcais da sexualidade das mulheres banindo a pornografia e rejeitando relacionamentos heterossexuais tradicionais.
  • Alcançar a liberdade reprodutiva
  • Separação da sociedade patriarcal?

Dois fatos relacionados devem nos impressionar nestas caracterizações:

Primeiro: fora a tolice sobre banir a pornografia (que, em todo caso, foi descrita meramente como algo que a abolição do patriarcado poderia potencialmente envolver), nada sobre o programa feminista radical como estabelecido aqui é inconsistente com o libertarianismo; vários problemas são identificados como males a serem combatidos, mas nada é dito sobre os meios, estatistas ou outros. Plausivelmente, é a preocupação com a meta de eliminar o patriarcado, não a adoção de quaisquer meios em particular para esta meta, que faz com que alguém conte como uma feminista radical.

Segundo: o programa feminista radical aqui delineado não é terrivelmente diferente daquele das anarquistas; embora as anarquistas se opusessem à discriminação governamental contra as mulheres, elas certamente não pensavam que os obstáculos enfrentado pelas mulheres estivessem limitados a isto. Pelo contrário, elas viam a opressão das mulheres como um problema social vasto e generalizado, do qual a ação estatal era apenas um componente. (Para documentação, vide a excelente antologia de Wendy McElroy Individualist Feminism of the Nineteenth Century, assim como - se você conseguir encontrar uma cópia - a elusiva primeira edição de sua antologia anterior Freedom, Feminism, and the State. E como Chris Sciabarra nos lembra, há uma longa e ilustre tradição libertária de se considerar forças políticas e culturais como aspectos inter-relacionados mas distintos de sistemas sociais opressivos.)

Claro que a feministas radicais atuais de fato, em sua maior parte, buscam empregar a coerção estatal como um meio para seus fins; e, nisto, elas diferem das anarquistas, que ensinaram que, embora os males coercitivos pudessem legitimamente ser recebidos com resistência violenta, os males não-coercitivos devem ser combatidos com meios não-violentos, tais como boicotes, persuasão moral, etc. Mas eu não consigo ver que a coerção estatal seja essencial para o programa feminista radical; em sua maioria, as feministas radicais buscam meios estatistas para seus fins porque, como quase todo o resto das pessoas em nossa sociedade, elas sofreram lavagem cerebral para pensarem nas soluções estatistas como os únicos meios efetivos de mudança social.

Quanto aos fins do feminismo radical, não apenas eles não são intrinsecamente anti-libertários, mas eles também me parecem em grande parte legítimos. Eu vejo os problemas dos quais as feministas radicais reclamam como genuínos. Isto não é negar que a feministas radicais frequentemente descrevem estes problemas em termos exagerados e histéricos (por exemplo, a alegação de todo coito heterossexual é estupro). Mas isso dificilmente é uma falha exclusiva delas. Muitos Objetivistas, particularmente aqueles da estirpe Peikoffiana, frequentemente não identificam problemas genuínos, ao passo em que igualmente os descrevem em termos exagerados e histéricos? Atacar as preocupações feministas radicais meramente porque elas são frequentemente promovidas de uma maneira extremista é ignorar (e, incidentalmente, alienar) todas aquelas feministas radicais que promovem as mesmas preocupações de uma maneira mais razoável.

Eu também não acho que suas preocupações sejam inerentemente "coletivistas", embora eu certamente concorde que elas sejam frequentemente defendidas em termos coletivistas. Frequentemente, não sempre. Este é um grupo notavelmente diverso do qual estamos falando e não deveria ser identificado de maneira simplista com suas representantes mais barulhentas e politicamente conectadas.

Em sua disposição de usar o poder estatal, as feministas radicais atuais, a maioria delas, admitidamente ficam aquém de suas predecessoras anarquistas. Mas as feministas libertárias atuais tendem igualmente, em casos demais, a ficar aquém de suas predecessoras anarquistas, na medida em que elas tratam apenas a ação estatal como um alvo legítimo de crítica feminista. Muito da literatura feminista libertária (tal como What To Do When You Don’t Want To Call the Cops de Joan Kennedy Taylor) me parece aconselhar as mulheres a se adaptarem docilmente às estruturas de poder patriarcal existentes, contanto que estas estruturas sejam não-coercitivas. Este tipo de conselho apenas reforça a ideia que leva as feministas radicais em direção ao estatismo - a saber, a suposição de que a violência estatal é o único meio efetivo para se combater o patriarcado. Em meu julgamento, é perfeitamente apropriado que feministas libertárias reconheçam a existência de obstáculos não-governamentais generalizados ao bem-estar das mulheres e busquem soluções não-governamentais para estes problemas; não há qualquer fundamento para que as preocupações das feministas libertárias "visem estritamente aquelas áreas restantes em que os sistemas legal e políticos privilegiem os homens sobre as mulheres"

Analogia: Ayn Rand clamava por um movimento para promover a arte Romântica. As preocupações deste movimento deveriam "visar estritamente aquelas áreas restantes que os sistemas legal e político privilegiam" a arte não-Romântica sobre a Romântica? Claro que não; Rand estava preocupada em combater forças culturais e sociais, não apenas as legais e políticas. Então, o que é anti-libertário sobre as feministas fazerem o mesmo?

Como eu escrevi em outro lugar:

Pode ser contestado que os pós-modernistas reclamam não apenas de barreiras legais e governamentais a tal participação, mas de barreiras privadas e econômico-culturais também. Isto é verdade; de acordo com o pós-modernismo, relações de poder prejudiciais permeiam não apenas a esfera governamental, mas a esfera privada também. Mas isto não é verdade? Objetivistas também não consideram forças culturais como obstáculos formidáveis para a realização pessoais, mesmo quando não estão codificadas em lei? A maioria das batalhas de Howard Roark, em The Fountainhead, não foram travadas contra o poder privado? Muitas das estórias de Rand - Ideal, Think Twice, The Little Street - não dramatizam os efeitos destruidores da alma de forças culturais não-governamentais? The Objectivist não deu a Feminine Mystique de Betty Friedan uma avaliação positiva?

Claro que os pós-modernistas consideram o livre mercado como a causa de tais problemas e o aumento do controle governamental como a cura. Neste ponto, os Objetivistas devem se separar deles. Mas exatamente como os Objetivistas podem concordar com conservadores religiosos ao condenar o relativismo, sem considerar programas governamentais para inculcar moralidade como a resposta apropriada ao problemas, assim também os Objetivistas podem concordar com os esquerdistas acadêmicos na condenação de várias formas de opressão não-governamental, sem assinar a agenda política da Esquerda.

Robert Campbell está correto em notar um tendência das feministas radicais a acreditarem a) que há forças não-governamentais generalizadas oprimindo as mulheres e b) que estas forças devem ser combatidas através de violência estatal. Ele também está correto em notar uma tendência das feministas libertárias a acreditarem c) que não há nenhuma, ou apenas poucas, de tais forças e d) que as mulheres não deveriam recorrer à violência estatal para promover seus interesses. Meu ponto, contudo, é que embora (a) seja essencial para o feminismo radical, (b) não é e, igualmente que embora (d) seja essencial para o feminismo libertário, (c) não é. (Oposição ao poder estatal é definidor do libertarianismo, ao passo que recursos ao poder estatal, como vimos, é acidental em vez de definidor do feminismo radical.) Consequentemente, a forma de feminismo que eu favoreço, como aquela favorecida pelas anarquistas individualistas do século XIX, é tanto libertária quanto radical, adotando (a) e (d) enquanto rejeita (b) e (c).

A "sensibilidade em relação a preocupações feministas" que venho recomendando é, desta forma, uma sensibilidade em relação a (a). Eu favoreço tal sensibilidade, primeiro, porque eu penso que existem sérios obstáculos sociais e culturais ao bem-estar das mulheres na sociedade contemporânea, obstáculos que são reforçados pelo sistema político, mas de forma nenhuma redutíveis a ele ou unicamente dependentes dele; e, segundo, porque enquanto questão estratégica, é suicidamente imprudente encorajar que não-libertários acreditem que suas metas só podem, de fato, serem alcançadas através da violência estatal.

Eu não respondi de maneira específica aos comentários de Campbell sobre Naomi Wolf porque eu penso que nossas diferentes interpretações de sua estória dependem menos dos nuances precisos da prosa de Wolf e mais dos enquadramentos interpretativos que estamos trazendo ao texto. Meu propósito neste post foi primariamente explicar meu enquadramento interpretativo e, assim, explicar por que, dado este enquadramento, sou obrigado a achar a divisão de Campbell da cena feminista contemporânea em virtuosas individualistas e vis coletivistas pouco prestativa. Com o risco de soar como Chris Sciabarra ainda mais uma vez: eu vejo o conflito, ao invés, como um falso dualismo que precisa ser dialeticamente transcendido.