sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A antinomia mais ampla - I

A antinomia mais ampla - I


"Quando Jesus Cristo, ao explicar às pessoas os diferentes artigos do Decálogo, lhes ensinou que a poligamia havia sido permitida para os antigos por causa da rudeza de sua inteligência, mas que não houvera sido assim no começo; que um mau desejo é igual a uma fornicação consumada; que insulto e afronta são tão repreensíveis quanto assassinato e golpes; que é um parricida quem diz a seu pobre pai: "Esta manhã eu rezei para Deus por você; isso lhe beneficiará"; ele não diz nada sobre o 8º mandamento, que dizia respeito ao roubo, jugando a dureza de coração de sua audiência ainda grande demais para a verdade que tinha a dizer. Depois de dezoito séculos, somos dignos de ouvi-la?" - P.-J. Proudhon, A Celebração do Domingo.


Enquanto estou apanhando linhas caídas e revisitando argumentos básicos na discussão sobre a propriedade, é importante incorporar os elementos que resultaram do meu trabalho sobre A Celebração do Domingo de Proudhon. Essa obra inicial introduziu uma série de reviravoltas potenciais na estória de Proudhon e a "propriedade". Três se destacam:


  1. Antecipando uma série de outras instâncias em que ele descreveria a "propriedade" como talvez a maior questão que a humanidade já enfrentou, Proudhon descreveu Jesus passando por cima de uma discussão sobre o roubo, a noção que viria a definir a propriedade para Proudhon, por que era, em essência, um tópico cujo tempo ainda não havia chegado. Ao passo que isto não é uma "reviravolta", tanto quanto é evidência de uma ênfase consistente nas dificuldades e na importância da questão, isso é extremamente útil, dadas todas as tentativas de retratar "propriedade é roubo" como o único elemento realmente importante da teoria de propriedade Proudhon. A insistência consistente nas dificuldades envolvidas tem que pesar fortemente contra qualquer tentativa de tomar o bon mot de Proudhon como tudo que realmente importa em sua análise.


(Para aqueles pouco familiarizados com outras afirmações deste tipo, aqui está um outro exemplo:


"O problema da propriedade é, depois daquele do destino humano, o maior que a razão pode propor e o último que ela será capaz de resolver. De fato, o problema teológico, o enigma da religião, já foi explicado; o problema filosófico, que trata do valor e da legitimidade do conhecimento, está resolvido: resta o problema social, que simplesmente reúne estes dois, e a solução do qual, como todos acreditam, vem essencialmente da propriedade." - P.-J. Proudhon, Sistema de Contradições Econômicas.)


  1. Em uma discussão quanto ao valor da solidão e da reflexão impostas pela celebração do Domingo para a sociedade, Proudhon deixou claro que ele acreditava que o desenvolvimento e a saúde da sociedade era dependente da intervenção periódica de um tipo de isolamento antissocial. Moisés impôs um tipo de eremitério semanal sobre os israelitas a fim de torná-los humanos, para lhes permitir crescer, se desenvolver e buscar a verdade.


Se Moisés tivesse tido o poder, ele nunca teria tido o pensamento de transformar seus fazendeiros em efetivos eremitas; ele queria apenas torná-los homens, acostumá-los, através da reflexão, a buscarem o justo e o verdadeiro em tudo. Assim, ele se esforçou para criar em torno deles uma solidão que não destruiria a grande afluência e que preservava todo o prestígio de um verdadeiro isolamento: a solidão do Sabá e das festas.


Uma das objeções a muito da teoria de propriedade de Proudhon vêm de uma resistência à noção de que o caminho para uma sociedade anarquista pudesse passar por uma instituição, como a propriedade simples, que Proudhon caracterizava como não simplesmente insocial, mas em algum sentido despótica, mesmo antropofágica. Mas há uma linha que corre pela obra de Proudhon, desde A Celebração do Domingo até A Teoria da Propriedade, que sugere que uma crença exatamente neste tipo de rota para a liberdade era uma de suas crenças razoavelmente constantes. Os comentários de 1839 são seguidos por estas observações:


"As consequências da transgressão de Adão são herdadas pela raça; a primeira é a ignorância". Verdadeiramente, a raça, como o indivíduo, nasce ignorante; mas, em relação a uma multiplicidade de questões, mesmo nas esferas moral e política, esta ignorância da raça foi dissipada: quem diz que ela não se afastará completamente? A humanidade faz um progresso contínuo em direção à verdade, e a luz sempre triunfa sobre a escuridão. Nossa doença não é, então, absolutamente incurável, e a teoria dos teólogos é pior do que inadequada; ela é ridícula, uma vez que é redutível a esta tautologia: "O homem erra, porque ele erra". Ao passo que a afirmação verdadeira é esta: "O homem erra, porque ele aprende". Ora, se o homem chegar a um conhecimento de tudo que ele precisa saber, é razoável acreditar que, deixando de errar, ele deixará de sofrer.


A noção de que seres humanos poderiam eventualmente deixar de errar se tornou gradualmente menos defensável para Proudhon, conforme ele elaborava sua filosofia do progresso - e não era, sem dúvida, tão consistente assim com um pouco do que ele escreveu em O Que É a Propriedade? em primeiro lugar - então poderíamos estar inclinados a ver como inteiramente consistente com o pensamento maduro de Proudhon que errar é sempre parte do caminho para aprender, e aprender é uma jornada sem fim. E quando - entre propor a "universalização do roubo" em 1842 e sugerir que o resultado imprevisto de um livre mercado poderia ser algo como o comunismo - ele alegou, em Sistema de Contradições Econômicas, que:


"Por abuso, o legislador quis dizer que o proprietário tem o direito de estar errado no uso de seus bens, sem jamais estar sujeito a investigação por este uso mau uso, sem ser responsável perante qualquer pessoa pelo seu erro."


é como se devêssemos ter esperado por isso o tempo todo, e o argumento estivesse feito a favor de um certo tipo de propriedade, por tanto tempo quanto os seres humanos continuem a errar.


  1. A terceira referência à propriedade é a discussão do verdadeiro significado daquela injunção contra o "roubo" no Decálogo:


A igualdade de condições está em conformidade com a razão e é um direito irrefutável. Está no espírito do cristianismo e é a meta da sociedade; a legislação de Moisés demonstra que ela pode ser alcançada. Este dogma sublime, tão assustador em nosso tempo, tem suas raízes nas profundezas mais íntimas da consciência, onde é misturado à própria noção da justiça e do direito. Não roubarás, diz o Decálogo, o que é dizer, com o vigor do termo original, lo thignob, você não desviará nada, você não reservará nada para si mesmo. A expressão é genérica como a ideia em si: proíbe não apenas o roubo cometido com violência ou por ardil, fraude e depredação, mas também todo tipo de ganho adquirido dos outros sem sua completa concordância. Implica, em suma, que toda violação da igualdade de divisão, todo prêmio arbitrariamente exigido e tiranicamente coletado, seja em troca ou a partir do trabalho de outros, é uma violação da justiça comunicativa, é uma apropriação indébita.

Lido de acordo com o que eu venho chamando de interpretação "energética" dos termos, isto ameaça não apenas uma reviravolta, mas uma derrubada de muito do que pensávamos que sabíamos sobre Proudhon e propriedade. Se o roubo é realmente anterior à propriedade, há uma variedade de consequências. Certas objeções simplistas à frase "propriedade é roubo" perdem um bom tanto de sua força, e talvez vejamos uma outra instância do tipo de lógica que eu discuti no #2 acima. Mas a possibilidade que tem sido a mais excitante para mim é que, ao destrinchar as específicas "variedades de roubo e propriedade", podemos começar a vislumbrar um elemento da teoria de Proudhon que foi anteriormente difícil de isolar: uma contradição geral ou antinomia que informa todo o projeto de Proudhon.

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