Equidade e Posse
Gary Chartier (2011)
A justiça na posse não é, per se, uma questão de relações entre
pessoas e coisas. Antes, é uma questão de relações entre pessoas. Como muitas
(talvez não todas) exigências morais, ela tem a ver com como é razoável que
tratemos uns aos outros. A exigência moral básica de equidade significa que
temos boas razões para levar os interesses uns dos outros em consideração
quando tomamos decisões. Em paralelo com um conjunto de truísmos sobre o
comportamento humano e a condição humana, esse princípio implica em respeito
por um conjunto de regras sobre a posse. Há boas razões para que um sistema
legal justo trate essas regras como sem exceção, embora um pouco menos de razão
para que atores morais individuais o façam.
Podemos
falhar em sermos razoável uns em relação aos outros de várias maneiras. Por
exemplo, eu posso optar por atacar algum aspecto do seu bem-estar por despeito,
ou por um desejo de vingança, ou como um meio de realizar alguma meta minha. E
esse tipo de irrazoabilidade é extremamente importante - ela está na raiz de
muita injustiça na guerra, por exemplo. Mas ela não é o tipo de irrazoabilidade
que tipicamente surge quando as pessoas ignoram ou ativamente violam os
interesses de posse legítimos umas das outras. Geralmente, o tipo de ação
irrazoável em questão em tais casos é uma discriminação arbitrária entre
aqueles afetados pelas escolhas do agente. Este tipo de irrazoabilidade viola o
que eu chamarei de Princípio da Equidade.
Há
diferentes maneiras de se expressar este princípio, nenhum deles imune a
críticas. Para os presentes propósitos, eu quero ressaltar um aspecto bastante
simples do princípio, que pode ser formulado assim: evite tratar os outros de
maneiras que você não estaria disposto a ser tratado em circunstâncias
relevantemente similares. Esta formulação está enraizada no que eu assumo ser a
sugestão intuitivamente plausível de que aqueles afetados por nossos atos e
omissões são, geralmente, bastante parecidos conosco e que a simples diferença
numérica é insuficiente para justificar um tratamento fundamentalmente diferente.
Esse
aspecto do Princípio da Equidade pode servir como base para um conjunto de
regras de posse.
Primeiro,
o princípio estabelece uma presunção a favor de permitir que as pessoas
retenham controle das coisas que elas realmente possuem. Muitos de nós não
estamos dispostos, na maior parte do tempo, que outros apanhem nossas coisas de
maneira violenta ou enganosa. Então, geralmente não é razoável que tomamos as
deles.
Claro,
essa presunção básica pode ser derrotada - como a própria noção de um afano
censurável sugere. Ladrões não gostam de ter suas posses tomadas mais do que
aqueles que chegam ao que têm de maneira honesta e pacífica, mas nossas reações
às reivindicações de posse dos ladrões tendem, penso eu de maneira justificada,
a ser um tanto diferentes de nossas respostar às reivindicações daqueles a quem
eles despojaram.
Considerações
adicionais ajudam a esclarecer o alcance e delimitar a gama de regras de posse
justas. Tomadas em conjunto com o Princípio da Equidade, essas considerações
fornecem um apoio considerável para o que eu chamo de regras basais: (i) alguém
estabelece uma reivindicação de posse justa a um objeto físico ou a um trato de
terra não reivindicado, através do estabelecimento da posse efetiva dele; (ii) uma vez que uma pessoa tome posse de
um objeto físico ou de um trato de terra, depende dela agora como ele será
usado e o que será feito com ele (na medida em que, ao fazê-lo, ele não ataque
os corpos ou as posses justamente adquiridas de outras pessoas); (iii) isso significa, em particular, que
alguém com uma reivindicação de posse justa livremente permite que outra pessoa
tome posse de um objeto ou trato de terra que seja dela, em quaisquer termos
mutuamente acordados. Se eu estou certo sobre as regras basais, então, embora
seja verdadeiro, em algum sentido, que as normas de posse são convenções, elas
são convenções fortemente restritas, uma vez que a equidade parece exigir que
normas de posse razoáveis incorporem as regras basais.
Um
olhar sobre algumas considerações relevantes irá ajudar a esclarecer como elas
suportam as regras basais.
*
Acessibilidade. Todas as outras
coisas sendo iguais (presumindo, em particular, que os custos não podem ser
transferidos para os que não os desejam, como acontece tão frequentemente em
relação a abusos que vão da escravidão à poluição), todos se beneficiam
conforme o fornecimento de bens e serviços que as pessoas querem aumenta e seus
custos diminuem. Se os direitos de posse das pessoas são estáveis, de modo que
elas possam barganhar com outras e manter o que lhes é prometido em troca dos
bens e serviços que fornecem, elas tem mais probabilidade de produzir esses
bens e serviços em quantidades desejáveis a preços desejáveis.
*
Autonomia. As pessoas tendem a querer
autonomia: elas querem ser capazes de tomar suas próprias decisões sem, no
mínimo, uma interferência forçosa de outrem. Reivindicações estáveis de posse
permitem que as pessoas preservem sua autonomia. Então será irrazoável que a
maior parte das pessoas não favoreça regras que protegem tais reivindicações.
*
Coordenação. Coordenar o
comportamento de atores econômicos - estabelecer preços e determinar níveis de
produção e padrões de distribuição - só pode ser uma atividade racional se as
pessoas tiverem direitos estáveis de posse.
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Compensação. Direitos estáveis de
posse permitem que as pessoas barganhem de maneira efetiva umas com as outras -
tais direitos criam uma linha de base para a barganha - e fazem as pessoas
serem compensadas por seus esforços passados.
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Generosidade. Você não pode ser
generoso se você não tem direitos estáveis de posse e se aqueles a quem você dá
carecem de tais direitos.
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Incentivos. As pessoas provavelmente
serão produtivas - de maneiras que beneficiam a si mesmas e aos outros
igualmente - quando elas mantêm o que ganham. Isto significa, por sua vez, que
elas e aqueles com quem elas barganham precisam de direitos estáveis de posse.
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Pacificação. Direitos estáveis de
posse, reconhecidos como tal por todos, reduzem o conflito por recursos
escassos.
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Produtividade. Ter direitos estáveis
de posse significa que as pessoas provavelmente colocarão os recursos em seu
uso mais produtivo. (Este ponto precisa de alguma qualificação, claro, uma vez
que diferentes pessoas têm metas diferentes; a meta de uma pessoa para um
pedaço de terra, por exemplo, pode ser precisamente que ele funcione
efetivamente como uma reserva natural.)
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Confiabilidade. A confiabilidade
contribui para a estabilidade e o planejamento efetivo.
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Simplicidade. Regras simples são mais
fáceis de formular, articular, entender e aplicar. A regras basais são mais
simples do que quase todas as alternativas. (Elas talvez sejam menos do que um
conjunto de regras que permita que todo mundo acesse tudo, mas as outras
considerações certamente sugerem que tais regras seriam indesejáveis.)
*
Estabilidade. Algumas regras
provavelmente estarão embasadas em convenções auto-aplicadoras. Tais regras são
mais fáceis de entender e aplicar. E existem boas razões para pensar que as
regras basais são, precisamente, convenções estáveis e auto-aplicadoras.
*
Gestão. A gestão importa: todos se
beneficiam quando se toma bom cuidado das coisas, e toma-se bom cuidado das
coisas quando alguém em particular é responsável por tudo.
Essas
várias considerações contribuem para treliças sobrepostas de justificativa para
as regras basais de posse. Em geral, todas elas (a preocupação com a
produtividade dos ativos individuais sem dúvidas é uma exceção) se inclinam na
mesma direção: tratar os outros de maneira equânime, levar seus interesses em
consideração de maneira apropriada, é agir de uma maneira que leve cada uma das
considerações a sério.
O
Princípio da Equidade exigirá compensação para as violações dos interesses
protegidos pelas regras basais. Afinal, as regras são basicamente
insignificantes se elas podem ser violadas com impunidade. Interesses legítimos
merecem proteção. Aqueles que consideram a possibilidade de causar prejuízo às
posses de outrem estão melhor situados para evitar ou prevenir os danos que
consideram causar; mais ainda, a equidade sugere que eles não deveriam deslocar
os custos de compensar suas vítimas para os outros. E uma exigência de
compensação obviamente servirá para incentivar aqueles que poderiam causar
danos a evitar que o façam.
Regras
sem exceção são mais simples, mais confiáveis e mais estáveis do que aquelas
que permitem exceções. Então faz sentido que um sistema legal justo incorpore
tais regras e que as pessoas as apoiem. Contudo (mantenho eu), isso significa
apenas que as pessoas deveriam apoiar a provisão de compensação para danos
reais que resultem da violação de tais regras, não que elas deveriam favorecer,
por exemplo, princípios legais que permitiriam o uso de uma violência física
ilimitada para proteger os interesses delineados pelas regras. Igualmente,
embora o Princípio da Equidade dê a todos razões significativas para apoiar a manutenção
das regras basais, isso não significa que o próprio Princípio não justificará,
às vezes, a violação dos interesses de posse.
Isso
é porque a equidade é, finalmente, uma característica das escolhas individuais.
Quando você está implementando ou apoiando uma regra que será aplicada a uma
gama de casos, faz sentido pensar na regra como
uma regra geral. Mas quando você está decidindo por si mesmo em um caso
particular - embora você ainda precise pensar no impacto da sua escolha, por
exemplo, na confiança geral de que os interesses de posse justos serão
respeitados - você tem que se perguntar o que é equânime que se faça nesse
caso. Assim, fará sentido que alguém simultaneamente (a) apoie uma regra que
exige a compensação pelos danos causados ao se invadir ou quebrar, sem exceções
e (b) invada um chalé abandonado na montanha para escapar de uma avalanche.
Isso
significa que é consistente com o Princípio da Equidade que as pessoas violem
os interesses de posse justo dos outros com impunidade, contanto que estejam
dispostos a pagar compensação quando causaram um dano real? Não exatamente, uma
vez que haverá, como sugeri, razões para que alguém contemplando uma possível
violação reconheça que a ação na qual ela está decidindo se engajar possa ser
irrazoável porque tenderia a minar a confiança na confiabilidade de
reivindicações justas de posse, algo que todos têm razão em favorecer. Esse não
será sempre o caso, mas certamente o será de vez em quando.
As
pessoas também terão outras razões para evitar interferir com as posses dos
outros a esmo. Por um lado, a compensação por interferir com os bens de alguém
não representa apenas o valor do dano resultante da interferência; ela incluirá
também os custos razoáveis de recuperação - os custos de identificar a pessoa
responsável pela interferência e de garantir a compensação dela. E a
responsabilidade por esses custos certamente servirá como desincentivo. Além
disso, as pessoas que tomem, ou danifiquem, ou invadam injustamente não serão
vistas de maneira muito caridosa pelas outras. Elas provavelmente serão
submetidas a vários tipos de sanções sociais, acima e além da exigência de que
elas compensem suas vítimas.
Junto
com uma gama de generalizações plausíveis sobre o comportamento e as
preferências humanas, o Princípio da Equidade pode fundamentar um conjunto de
regras simples e confiáveis sobre a justiça na posse - as regras basais de
posse. O Princípio não resolve todas as questões sobre posse e é compatível com
múltiplos quadros jurídicos. Mas ele restringe de maneira bastante
significativa o que contará como uma regra legal razoável em relação à posse e
também, ainda que de maneira menos severa, o que contará como uma escolha
razoável de se interferir com as posses justamente adquiridas de outra pessoa.
Entre outras coisas, levar as regras a sério significará evitar a interferência
com as posses dos outros, o que parece ser a característica definidora do
estado predador.
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