A Natureza da Lei
Parte IV: A Base da Lei Natural
por Roderick Long
Há Espaço para a Lei Natural?
Nos fascículos anteriores dessa série (Partes I e II, Parte III), eu me referi à Lei Natural como o padrão transcendente
ao qual as leis feitas pelo homem devem corresponder a fim de serem legítimas.
Mas existe algo como uma Lei Natural? Temos justificativa ao apelar para tal
conceito? Ou ele está irremediavelmente ultrapassado, sendo um remanescente
anticientífico de um modo de pensamento medieval?
Tradicionalmente, a Lei Natural é chamada de "natural" por duas
razões. Primeiro, a Lei Natural se distingue da lei convencional; em outras palavras, a Lei Natural não depende ou
deriva de instituições e costumes humanos. (Se o fizesse, ela não poderia
servir como um padrão pelo qual julgar a lei humana.) Segundo, a Lei Natural se
distingue da lei sobrenatural; em
outras palavras, a Lei Natural está acessível à razão humana, ao invés de
exigir uma revelação divina. (Historicamente, os teóricos da Lei Natural têm
discordado uns dos outros sobre se a Lei Natural deriva sua autoridade dos
comandos de Deus; mas mesmo aqueles que mantiveram — erroneamente, a meu ver —
que a Lei Natural de fato depende dos comandos divinos, ainda assim insistiram
que a Lei Natural representa aquela porção dos comandos de Deus que podemos
descobrir por nós mesmo, sendo racionais e razoáveis, através de nosso próprio
intelecto sem ajuda, sem apelar à escritura ou outras formas de revelação.)1
Mas as próprias características da Lei Natural que a tornam atrativa — sua
independência dos costumes humanos e sua acessibilidade à razão — são também as
características que a tornam controversa.
Como pode haver uma lei que não repousa sobre nenhuma instituição ou
prática legal? Em que ela se fundamenta então? Em outras palavras, qual é a
base metafísica da Lei Natural?
Similarmente, como um padrão moral pode ser averiguado pela razão humana?
Como jamais poderíamos adquirir um conhecimento objetivo do que é certo e do
que é errado? Em outras palavras, qual é a base epistemológica da Lei Natural?
Sem algumas respostas a essas questões — ou, pelo menos, sem alguma
esperança de que elas possam, em
princípio, ser respondidas — qualquer teoria política que apele à Lei Natural
vai estar em terreno instável.
Ao final da Parte III, no Outono de 1994, eu prometi que o próximo número
consideraria "A Base da Lei Natural". Bem, já se foram dois anos, mas
agora eu retorno, enfim, ao tópico prometido. Uma defesa em grande escala da
teoria da Lei Natural, no entanto, é uma tarefa para além do escopo desse
artigo; então eu me limitarei a responder a algumas das objeções mais comuns
que eu tenho encontrado, dentro da comunidade libertária, à noção da Lei
Natural (e ao conceito associado de direitos naturais).
Quem Tem o Ônus da Prova?
Mas primeiro deixe-me fazer uma observação sobre o ônus da prova. A maior
parte dos críticos da Lei Natural assume que o ônus da prova jaz com o
proponente da Lei Natural — presumivelmente porque eles veem a Lei Natural como
algo bizarro e inverossímil, algo que não se poderia sensatamente acreditar a
menos que houvesse um argumento chocante a favor dela. Mas, na verdade,
acreditar na Lei Natural é simplesmente acreditar que há padrões morais que
transcendem as práticas e costumes de qualquer dada comunidade — que existem
fundamentos racionais para condenar o regime nazista como imoral, que é
possível ter justificativa em condená-lo, mesmo se assumirmos que o que os
nazistas fizeram estava perfeitamente de acordo com os valores da cultura
nazista. Quando condenamos o nazismo, nós normalmente não nos assumimos estar
expressando uma preferência puramente pessoal e subjetiva, como a preferência
por chocolate em vez de baunilha; pelo contrário, nossas práticas comuns de
elogiar e condenar parecem assumir implicitamente que há padrões morais
objetivos, isto é., que há uma Lei Natural à qual as leis feitas pelos homens
respondem.
Agora, claro, o fato de que práticas comuns assumem implicitamente algo
não é nenhuma garantia de que o que elas assumem é verdadeiro. Mas tal fato não
parece mudar o ônus da prova.
Considere: o fato de que me parece
que eu estou sentado na frente do meu computador digitando estas palavras não garante que eu realmente o esteja
fazendo; eu posso estar sonhando, ou alucinando ou eu posso estar preso num
programa de realidade virtual incrivelmente realista. Agora, um filósofo como
Descartes diria que eu tenho o ônus de provar que eu não estou sonhando, alucinando, etc. — que eu tenho que ser capaz
de excluir essas alternativas antes que eu possa ter justificativa para pensar
que eu realmente estou aqui, acordado e digitando.
Mas se Descartes estivesse certo — se não pudéssemos ter justificativa
para acreditar em qualquer coisa ao menos que primeiro excluíssemos toda
possibilidade de erro — então nunca poderíamos ter justificativa para acreditar
em nada, uma vez que qualquer
evidência que apontássemos a fim de provar confiáveis nossas crenças iniciais
teriam, por sua vez, que ser justificada por um apelo a evidências adicionais e
assim por diante ad infinitum. E se isso fosse assim, então não poderíamos
ter justificativa para manter a crença que nos pôs a descer essa regressão
infinita em primeiro lugar — ou seja, a crença de que a fim de ter
justificativa para se acreditar em qualquer coisa, nós devemos primeiro excluir
toda possibilidade de erro. Então o ceticismo cartesiano, em última análise,
mina a si mesmo: se tudo deveria ser duvidado, então a alegação de que tudo
deveria ser duvidado é uma das coisas que deveria ser duvidada — e uma vez que
vamos duvidar disso, perdemos nosso
motivo inicial para duvidar tudo o mais.2
O que isso significa é que temos, afinal, justificativa para aceitar a
maneira como as coisas inicialmente nos parecem como uma imagem verdadeira do
mundo, apesar da possibilidade de que
essas crenças estejam erradas. Agora, isso não significa que temos
justificativa para nos agarrar a nossas crenças com fé cega, desafiando toda
evidência do contrário. Mas significa que aqueles que se opõem a essas crenças
comuns são os que têm o ônus da prova; nós temos justificativa para aceitar
nossas crenças iniciais até que
encontremos evidências convincentes do que elas são falsas. Isto deve ser
assim, porque a posição contrária, como vimos, é racionalmente incoerente.
Então se nossa prática comum de julgamento moral nos compromete a acreditar na
Lei Natural, então a Lei Natural é parte de nossa imagem do mundo, e temos
justificativa para aceitá-la até que alguém nos dê uma boa razão para
rejeitá-la. O ônus da prova, dessa maneira, jaz com os oponentes da Lei
Natural.
Isso não é dizer que eu acho que não há um argumento positivo a ser feito
a favor da Lei Natural. Pelo contrário, muito da minha pesquisa filosófica é
devotada a fazer tal argumento, contando com as compreensões da tradição
aristotélica, combinadas com as descobertas filosóficas dos últimos trinta
anos. Meu ponto é simplesmente que a justificabilidade de se aceitar a Lei
Natural como parte da sua imagem do universo não exige que o argumento positivo
em favor da Lei Natural seja estabelecido primeiro.
Agora vamos nos voltar para algumas daquelas objeções comuns à teoria da
Lei Natural.
Objeção Um: a Lei Natural Não Serve a Qualquer Propósito
Útil
A Lei Natural: proteção ineficaz?
Uma objeção com que às vezes se cruza nos círculos libertários é a de que
a Lei Natural e em particular os direitos naturais (os direitos que temos sob a
Lei Natural) são inúteis. Uma Lei
Natural contra o homicídio ou roubo não nos protege de homicidas e ladrões; um
direito natural à vida não vai transformar a lâmina da faca de um assaltante,
nem repelir a bala de um assassino; um direito natural à propriedade não é tão
útil quando muros altos ou fechaduras resistentes.
Uma versão
dessa crítica é apresentada por L. A. Rollins em seu panfleto The Myth of Natural Rights (Port Townsend: Loompanics, 1983). Rollins pergunta:
"Quantas vidas de judeus [sob os nazistas] foram salvas por seu
direito natural à vida? A resposta, claro, é: Zero.... Se todos os judeus da
Europa ocupada pelos nazistas tinham um direito natural à vida e, ainda assim,
o regime nazista foi capaz de matar seis milhões deles, então claramente os
direitos naturais não têm valor algum como dispositivos de proteção. Um colete
à prova de balas pode proteger uma pessoa contra tomar um tiro, mas um direito
natural nunca parou uma única bala."
(Rollins, pp. 40-41.)
"Outro mitologizador dos direitos naturais é Eric Mack, que diz 'Os
direitos lockeanos sozinhos fornecem a barreira filosófica moral contra a
invasão do Estado contra a Sociedade'. Mas uma 'barreira filosófica moral' é
meramente uma barreira metafórica e não irá impedir a invasão do Estado contra
a 'Sociedade', não mais do que um escudo filosófico impedirá uma flecha física
de perfurar seu corpo.
Mas se os direitos naturais são meramente direitos falsos ou metafóricos,
o que então são os direitos reais? Direitos reais são aqueles direitos
realmente conferidos e feitos cumprir pelas leis de um Estado ou pelos costumes
de um grupo social."
(Rollins, p. 2.)
O que devemos fazer com essa crítica? Bem, vamos esboçar algumas
distinções.
A função da Lei Natural: orientação, não proteção
No discurso comum, frequentemente alternamos, sem notar, entre diferentes
sentidos de "direitos". Por exemplo, podemos dizer, num só fôlego,
que os cidadãos da China não têm direito à livre expressão — e então dizer, em
outro fôlego, que o direito dos cidadãos chineses à livre expressão está sendo
violado. Logicamente, isto não parece fazer nenhum sentido; você não pode
violar um direito que suas vítimas sequer têm. (Ninguém diria, por exemplo, que
meu direito de governar a América do Norte está sendo violado, porque ninguém
acha que eu tenha tal direito em primeiro lugar.) Mas nosso discurso comum faz
mais sentido uma vez que percebemos que o termo "direitos" está sendo
usado em mais do que um sentido, de modo que o tipo de direito que está sendo
violado na China é uma espécie diferente do tipo de direito que os chineses não
têm.
Primeiro, podemos distinguir entre "direitos" no sentido normativo e "direitos" no sentido
descritivo. Fatos normativos são
fatos sobre o que as pessoas devem
fazer; fatos descritivos são fatos sobre o que as pessoas realmente fazem.
Por sua vez, podemos distinguir duas subvariedades de direitos
descritivos: direitos legais e
direitos de facto.
Isso nos dá uma distinção tripla:
●
Direitos
normativos: as reivindicações de que devem ser respeitadas e protegidas.
●
Direitos
legais: as reivindicações que uma dada instituição legal oficialmente
anuncia que respeitará e protegerá.
●
Direitos de facto: as reivindicações que
realmente recebem respeito e proteção em uma dada sociedade.
Voltando ao meu exemplo da China, quando alguém alterna entre dizer que os
chineses não têm direito à livre expressão e dizer que seu direito à livre
expressão está sendo violado, ele provavelmente quer dizer uma das seguintes
coisas:
a.
Os chineses têm um direito normativo à livre
expressão, mas nenhum direito legal.
b.
Os chineses têm um direito legal à livre
expressão, mas nenhum direito de facto.
c.
Os chineses têm um direito normativo à livre
expressão, mas nenhum direito de facto.
(Eu não sei o suficiente sobre a lei chinesa para saber se (a) ou (b) está
mais próximo da verdade, embora (c) seja verdade em ambos os casos.)
Agora podemos ver onde a crítica de Rollins deu errado. Rollins está
pensando sobre os direitos naturais como se eles fossem um tipo especial de
direito legal — um direito legislado por Deus ou pela Natureza, em vez do
estado. Dada essa suposição, o que ele diz faz sentido: direitos legais são de
pouco valor ao menos que também sejam direitos de facto. (Quando Rollins se refere a "direitos reais"
como "aqueles direitos realmente conferidos e feitos cumprir pelas leis de
um Estado ou pelos costumes de um grupo social", ele claramente tem em
mente direitos de facto.) Assim como
não me faz bem algum ter um direito legal no papel, sobre o qual o estado fala
muito na teoria, mas ignora sistematicamente na prática, também não me faz bem
algum ter um direito natural inscrito na Lei da Natureza, se ninguém estiver
disposto ou for capaz de fazer valer esse direito.
Mas esta é a maneira errada de se pensar sobre direitos naturais. Um
direito natural não é um direito legal, é um direito normativo. Alegar que os
direitos naturais não protegem nada é fugir à questão; direitos naturais
deveriam receber proteção, não a
fornecer. Igualmente, a função da Lei Natural não é proteger quaisquer
reivindicações, mas sim nos dizer quais reivindicações merecem proteção. Como conceitos normativos, os direitos naturais
fornecem orientação para a conduta das pessoas. Culpar os direitos naturais por
não nos proteger é como culpar um livro de receitas por não fazer o jantar.
Livros de receitas não fazem o jantar para nós; seu propósito é nos ensinar
como fazer o nosso próprio jantar. Igualmente, a Lei Natural não guia nossas
vidas por nós; seu propósito é nos guiar na vivência de nossas próprias vidas.3
A Lei Natural pode às vezes proteger
Então, se os direitos naturais não nos protegem, isso não é nenhuma
acusação contra a teoria da Lei Natural. Na verdade, contudo — apesar de essa
não ser sua função essencial — os direitos naturais podem e, às vezes, de fato
proporcionam às pessoas uma proteção de
facto. Ao discutir o Holocausto, Rollins toma como óbvio que os direitos
naturais dos judeus não salvaram nenhum deles. Mas isso é verdade? Por toda a
Europa ocupada pelos nazistas, milhares de vidas de judeus foram salvas por
pessoas corajosas e comprometidas que foram motivadas por seu reconhecimento
dos direitos dos judeus à vida e à liberdade — direitos cuja autoridade
transcendia os ditos do estado nazista. Ao cumprir sua função normativa
primária de guiar as escolhas dos resgatadores, os direitos naturais dos
judeus, assim, fizeram indiretamente o que Rollins diz que os direitos naturais
não podem fazer — eles salvaram as vidas dos judeus.
Agora, Rollins sem dúvida responderia que esses judeus não foram salvos
por direitos naturais, mas pela crença
dos resgatadores nos direitos naturais. Bem, suponha que eu estou caminhando
distraidamente e estou quase pisando inadvertidamente num poço de escorpiões
mortais, quando Rollins repentinamente grita "cuidado!". Eu ouço seu
grito de aviso e paro bem na hora. Agora, se eu disser que esse grito de aviso
salvou minha vida, Rollins objetaria que isso está errado, que foi apenas a
minha percepção de um grito de aviso
que salvou minha vida? Em tal caso, isso seria um subterfúgio inútil, porque
embora minha salvação tenha sido causada pela minha percepção do grito de
aviso, essa percepção do grito de aviso foi, por sua vez, causada pelo grito de
aviso em si; então qualquer um dos dois pode ser creditado como causalmente
responsável por eu ter escapado dos escorpiões.
Mas Rollins presumivelmente insistiria que o caso dos resgatadores do
Holocausto é diferente, porque embora a salvação dos judeus tenha sido causada
pela crença dos resgatadores nos direitos naturais, a crença dos resgatadores
nos direitos naturais não foi causada pelos próprios direitos naturais. Aqui eu
devo discordar, no entanto; eu não vejo por que a crença dos resgatadores não
poderia ser resultado de eles terem reconhecido e identificado corretamente o
fato dos direitos naturais dos judeus, assim como eu ter evitado o poço de
escorpiões foi o resultado de eu ter reconhecido e identificado corretamente o
fato do grito de aviso de Rollins.
A única resposta que Rollins pode dar é que os resgatadores não podem ter
reconhecido e identificado o fato dos direitos naturais porque tal fato não
existe; mas nesse caso o argumento de Rollins pela inutilidade dos direitos
naturais suscita a questão contra seus adversários ao pressupor que os direitos naturais não existem. (Afinal, é bastante
fácil provar que algo é inútil se você primeiro pressupõe que ele não existe!)
Quais são os direitos que o poder cria?
Uma variação recente do argumento direitos-naturais-não-protegem é o
artigo de Rick Hammer "Might
Makes Right: An
Observation and a Tool” (Formulations, Vol. III, No. 1 (Autumn 1995)). Rick
argumenta que os direitos que temos são os que fomos capazes de assegurar pela
força:
"Conforme nós, humanos, vivemos, constantemente propomos novos
direitos e testamos os antigos direitos. O que determina quais direitos
sobrevivem a essa luta contínua? A força. Esses direitos que sobrevivem são
aqueles suportados pela maior força — pelo que eu quero dizer tanto a
habilidade quanto o desejo de policiar.... No longo prazo, a quantidade de
força que as pessoas podem produzir para defender qualquer direito depende de
quanto esse direito ajuda essas pessoas a sobreviver em seu ambiente. Isso
limita a medida em que os humanos podem inventar direitos para servir seus
caprichos."
("Might Makes Right,"
p. 14.)
Quando eu leio uma passagem como essa, minha primeira questão é se os
direitos sobre os quais se fala são direitos normativos, direitos legais, ou
direitos de facto. Se Rich estiver
falando de direitos de facto apenas,
então eu não acho que eu tenha qualquer discordância com o que Rich diz, pelo
menos se "força" for definida amplamente o suficiente (e.g., a habilidade
de motivar pessoas através de argumentos persuasivos para que respeitem certos
direitos conta como um policiamento efetivo desses direitos?).
A maior parte dos argumentos que Rich passa a dar parece mesmo se destinar
a se aplicar especificamente a direitos de
facto (e também, até certo ponto, a direitos legais). Por exemplo, Rich
oferece o seguinte desafio a seus leitores:
"Aqui eu peço a vocês que refutem essa tese com um contraexemplo. Se
essa tese estiver errada, então vocês podem me mostrar um exemplo de um direito
que sobreviveu apesar de uma reivindicação contrária ser suportada por maiores
vontade e habilidade de se usar força."
("Might Makes Right,"
p. 15.)
Esse pedido por um contraexemplo parece pressupor que são direitos
descritivos que estão em questão. Pois, claro, nenhum libertário jusnaturalista
terá qualquer problema em apresentar exemplos de direitos normativos que ainda mantemos a despeito da habilidade de
suportá-los por força — porque direitos normativos são direitos que mantemos mesmo
quando somos privados de seja lá o que for que os direitos sejam direitos a. Na verdade, essa é a diferença
crucial entre direitos normativos e direitos de facto. Se você rouba minha jaqueta, eu perco meu direito de facto à minha jaqueta, porque minha
reivindicação àquela jaqueta não foi respeitada; mas eu mantenho meu direito
normativo à jaqueta, enquanto continuar sendo verdade que minha reivindicação à
jaqueta deveria ser respeitada.
Então, quando Rich assume que será duro apresentar exemplos de direitos que
podemos manter a despeito de reivindicações contrárias serem suportadas por uma
maior força, parece que ele deve estar pensando sobre direitos de facto, não direitos normativos.
Mas isso não pode ser a história toda. Pois Rich acha que sua posição vai
ser controversa e indesejável:
"Eu temo que a tese, que pode ser parafraseada como 'poder cria o
direito', vai perturbar alguns colegas libertários que acreditam que os
direitos vêm de outras fontes.
Deixe-me esclarecer que eu não estou dizendo que eu quero que o poder crie
o direito. Em muitas instâncias essa tese é contrária aos valores pelos quais
eu vivo. Mas eu observo que a tese faz sentido, gostemos ou não."
("Might Makes Right,"
p. 14.)
Quem são esses libertários que vão ser perturbados pela tese de Rich?
Libertários que acreditam que direitos de
facto vêm de fontes outras que não um poderio superior? Eu não estou certo
que existam quaisquer tais libertários. E eu suspeito fortemente que Rich, ao
invés, tem em mente libertários que acreditam em direitos normativos que eles consideram como derivados de fontes outras que
não um poderio superior — fontes como a Lei Natural, por exemplo. Mas por que
tais libertários seriam perturbados pela tese de Rich, se é uma tese apenas
sobre a fonte de direitos de facto?
Claramente, Rich acha que sua tese tem implicações — implicações desfavoráveis
— para as teorias dos libertários jusnaturalistas. E isso significa que a tese
de Rich é mais do que apenas uma tese sobre direitos de facto; ela tem algo a dizer sobre direitos normativos também.
Mas o que? Parece haver duas possibilidades salientes. Ou a) Rich está
dizendo que um poderio superior é a única fonte, não apenas de direitos de facto, mas também de direitos
normativos; ou então b) Rich está dizendo que não existem quaisquer direitos
normativos, que os direitos de facto
são os únicos direitos que existem.
Eu estou inclinado a duvidar que (a) é o que Rich quer dizer. Se (a) fosse
a tese de Rich, então ele estaria comprometido a endossar e aprovar quaisquer
direitos de facto que acabem sendo
favorecidos pelo poderio superior. Ora, por certo, Rich realmente argumenta que
os resultados do poderio superior vão geralmente tender a serem benéficos, pelo
menos no longo prazo; mas ele também diz que existem casos em que a tese do
poder-cria-o-direito é “contrária aos valores pelos quais eu vivo"; ao
dizer isso, Rich parece estar negando que, em todos os casos, ele considerará
automaticamente como valioso qualquer conjunto de arranjos que prevaleça.4
Essa interpretação é reforçada pela seguinte passagem:
"...esteja atento para a distinção entre direitos que são meramente
reclamados e direitos que são suportados por força.
Através de truques de linguagem, desejos frequentemente avançam em status
para direitos. Mas um ponto de eu escrever esse artigo é nos ajudar a ver a
diferença entre desejos e direitos.... No país em que eu vivo, a maioria dos
membros da população parece acreditar que eles têm um direito de compartilhar
dos frutos do trabalho de outras pessoas, contanto que esse compartilhamento
seja aprovado pela legislatura. E... eles de fato têm esse direito, uma vez que
ele é suportado com vontade e habilidade para prevalecer no uso da força. Claro
que eu favoreço a reivindicação alternativa, manter todos os frutos do meu
próprio trabalho, mas essa reivindicação é diminuída ao status de um desejo;
ela carece de força."
("Might Makes Right,"
p. 14.)
Se o compreendo apropriadamente, Rich parece estar dizendo que qualquer
reivindicação que não seja suportada por força o suficiente — isto é, qualquer
reivindicação que falhe em ser um direito de
facto — não é nada mais do que um desejo, uma preferência subjetiva. E
isso, por sua vez, parece significar que não há fundamentos objetivos para preferir uma reivindicação
sobre a outra, não há nada como reivindicações que devem ser respeitadas e reivindicações que devem ser negadas. Em outras palavras, não há direitos normativos,
e não há Lei Natural.
Agora, claro que esse tipo de ceticismo moral pode ser verdadeiro. Mas eu não consigo ver que o artigo de Rich
nos dá razão para pensar que isso seja
verdadeiro. Eu acho bastante convincentes os argumentos de Rich a favor da
alegação de que direitos de facto são
criados pelo poder; mas esses argumentos não parecem eliminar a possibilidade
de direitos normativos que não dependem do poder para sua validade.
Objeção Dois: Não Poderia Haver Algo Como uma Lei
Natural
Lei Natural: uma ferramenta de manipulação?
Outra objeção com a qual é um pouco mais difícil de lidar é a reclamação
de que há algo assustador e misterioso sobre a Lei Natural e os direitos
naturais. Em seu panfleto Natural Law: or Don't Put a Rubber on Your Willy (Port Townsend: Loompanics,
1987), o escritor libertário de ficção científica Robert Anton Wilson caracteriza
a teoria dos direitos naturais como a visão de que "algum tipo de entidade
metafísica chamada 'direito' reside em um ser humano como um 'fantasma' reside
numa casa mal-assombrada." (p. 4) A implicação é que os direitos naturais
são estranhos demais para serem críveis.
Como Rollins, Wilson parece querer tratar os direitos naturais como se
eles devessem ser fatos descritivos. Mas os direitos naturais são fatos
normativos. Dizer que Wilson tem um direito natural a ser tratado de uma
maneira X não é dizer que há algum tipo de espírito invisível à espreita em
algum lugar dentro do corpo de Wilson. Na verdade, o que quer dizer é isso:
a)
É moralmente obrigatório
que outras pessoas tratem Wilson da maneira X.
b)
É moralmente permissível
que Wilson ou seu agente forcem outras pessoas a tratarem Wilson da maneira X.
Em outras palavras, os direitos naturais consistem de fatos sobre o que as pessoas devem fazer, como as
pessoas devem tratar umas às outras. Agora, as pessoas às vezes falam como se
(a) e (b) fossem verdadeiros porque
Wilson tem um direito a ser tratado da maneira X, como se o direito fosse algo
separado, acima e além dos fatos (a) e (b). Mas isso não me parece mais do que
uma figura de linguagem. Estritamente falando, não há nada mais sobre Wilson ter
um direito a ser tratado de maneira X do que a existência das obrigações e
permissões morais listadas em (a) e (b). Assim, os direitos naturais só podem
ser repudiados como repreensivelmente fantasmagóricos e misteriosos se toda a
noção de uma moralidade objetiva — da existência de fato sobre o que as pessoas
devem ou não fazer — for também repudiada como repreensivelmente assustadora e
misteriosa.
Está é, de fato, a posição que Rollins toma:
"Se você quer que alguém faça algo que ele não tem nenhuma razão
pessoal para fazer, mas você está impossibilitado ou indisposto (talvez com
medo) de usar coerção real para levá-lo a fazer isso, então você pode tentar
levá-lo a fazer isso por meio de uma coerção metafórica ou falsa. Você pode
dizer a ele que é seu dever fazê-lo. Você pode dizer a ele que ele 'deve'
fazê-lo. Por quê? Simplesmente porque ele deve. E se ele for crédulo o
suficiente para acreditar que ele deve fazer o que você diz, simplesmente
porque ele deve, então você controla essa ovelha de duas pernas por meio da
coerção metafórica ou falsa do dever. ...A moralidade ...é um mito inventado
para promover os interesses / desejos / propósitos dos inventores. A moralidade
é um dispositivo para controlar os ingênuos com palavras. 'Você "não
deve" cometer assassinato!' Por que não? 'Porque o assassinato é
"errado"! O assassinato é "imoral"! Disparate! O
assassinato pode ser impraticável, ou excessivamente arriscado, ou simplesmente
não valer a pena. Há todo tipo de razões pelas quais eu posso me abster de
cometer assassinato mesmo quando eu gostaria de fazê-lo. Mas o assassinato não
é 'errado'. O assassinato não é 'imoral'. E o mesmo vale para estupro, roubo,
assalto, agressão, roubo, sodomia, bestialidade, incesto, traição, tortura de
crianças, suicídio, canibalismo, canabismo, etc..... Nada é sagrado. Nada tem
'direito à reverência'. Nada é 'inviolável'."
(Rollins, p. 8-9, 19.)
Rollins está mais disposto do que a maior parte dos críticos da Lei
Natural a enfrentar as consequências lógicas de sua posição. Mas se a moralidade
é meramente uma ferramenta para manipular outras pessoas para que façam o que
se quer, fica a pergunta de por que as pessoas lutam em privado com dilemas
morais, por que elas se encontram compelidas pela consciência a fazer algo que
é importuno não só para elas mesmas mas para aqueles ao seu redor.
Mais importante, no entanto, é a questão de por que deveríamos aceitar a alegação de Rollins de que nada está
certo ou errado e nada tem direito à reverência. Essas são alegações
extraordinárias, alegações que contrariam nossas crenças e práticas comuns e,
portanto, o ônus da prova jaz com a
pessoa que faz tais alegações.
A base metafísica da Lei Natural
Os teóricos da Lei Natural podem não tem o ônus da prova; mas ainda é uma
questão justa perguntar que tipos de fatos os fatos normativos poderiam ser,
que base na realidade eles poderiam ter. Esse é uma questão a qual diferentes
teóricos da Lei Natural fornecem diferentes respostas. No meu trabalho
filosófico, eu estou tentando desenvolver uma resposta própria; minha posição
ainda não está totalmente elaborada, mas o que se segue é um esboço em
miniatura do tipo de abordagem que eu acho mais plausível:
1.
Os céticos sobre a possibilidade de uma
moralidade objetiva frequentemente dizem que nós chamamos as coisas de boas ou
valiosas simplesmente porque as desejamos. Mas isso trata os desejos como se
fossem simplesmente impulsos cegos sem qualquer conteúdo cognitivo. Parece mais
psicologicamente realista dizer que desejar algo envolve considerar essa coisa
como boa, valiosa, digna de escolha. Em outras palavras, o desejo é uma resposta a um valor aparente; a
atividade de desejar implicitamente nos compromete a aceitar a existência de
valores objetivos, i.e., valores independentes de nossos desejos.
2.
"Bom" e "valor" são
conceitos inerentemente relacionais; ser bom ou valioso é ser bom ou valioso para alguém. Afinal, conceitos
normativos são conceitos-guia da ação e, desta forma, não têm significado
exceto no contexto de um agente cujas ações devem ser orientadas.
3.
Desta forma, cada um de nós implicitamente busca
bens que são tanto objetivos (i.e., que não são simplesmente uma função de
nossas preferências subjetivas) e relativos a agentes (i.e., não são bens
estritamente impessoais, mas são bens para
si).
4.
Um organismo vivo — seja uma azálea ou um
contador — não pode ser completamente explicado sem apelar para os "fins
naturais" ou metas daquele organismo. Como Darwin mesmo percebeu, essa
abordagem teleológica é apenas apoiada, não desacreditada, pela teoria da evolução
através da seleção natural. Tais fins naturais fornecem o conteúdo para os bens
objetivos e relativos a agentes que nossos desejos nos comprometem a buscar.
5.
Os fins naturais podem ser ordenados por sua
classificação de acordo com a centralidade e a importância, que, por sua vez,
são funções do poder explicativo teleológico. Se A e B são ambos fins naturais
meus, mas A explica mais sobre mim do que B, ou se os fatos que A explica sobre
mim são mais centrais e essenciais a mim do que os fatos que B explica, então A
é mais um fim meu do que B. Desta
forma, por exemplo, a capacidade de raciocínio explica um número maior das
características dos seres humanos do que a capacidade de afinar pianos.
6.
Assim como o fim para o qual uma coisa é usada pode não ser o seu fim mais
explicativo (e.g., se eu uso uma pinha como peso de papel, sua meta de se
transformar em um pinheiro ainda é mais explicativa, uma vez que ela explica
mais sobre a estrutura causal interna que torna a pinha o tipo de coisa que ela
mais fundamentalmente é, ao passo que a meta de segurar papéis apenas explica o
fato acidental e periférico da pinha estar onde está, quando está), da mesma
forma mesmo o fim pelo qual uma coisa é criada
pode não ser o seu fim mais explicativo.
Por exemplo, uma faca é projetada para cortar coisas. Mas suponha que eu
faça uma faca a fim de assustar potenciais agressores. Eu não tenho intenção
alguma de cortar ninguém com ela; se meu plano funcionar, eu nunca terei que
utilizá-la. Ainda assim, a meta de cortar é mais explicativa do que a meta de
assustar agressores; como no caso da pinha, a meta de cortar explica mais sobre
a estrutura causal interna que torna a faca o tipo de coisa que ela mais
fundamentalmente é, ao passo que a meta de assustar agressores apena explica o
fato acidental e periférico da faca ter vindo à existência onde o fez, quando o
fez. Similarmente, se um casal procria a fim de ter um escravo conveniente, o
fato de que a criança foi criada a fim de ser o escravo de seus pais não
significa que o fim externo sobrepõe os fins internos da própria criança.
Esse ponto também se aplica a explicações teleológicas em termos de
"genes egoístas". Suponha que o impulso pela autopreservação foi
implantado em nós porque seres que buscam se preservar tem maior probabilidade
de reproduzir seus genes (ao contrário de morrer antes que atinjam a idade de
acasalamento). Em outras palavras, nossos genes "escolhem" o impulso
pela autopreservação como um meio
para a meta da reprodução. Isso pode fazer da reprodução a meta primária dos
nossos genes, mas não faz disso a nossa meta primária; dado que nossos
genes, a fim de atingir suas metas, se chocaram com a estratégia de nos dar um
impulso em direção a uma meta um tanto diferente, então se nós acabarmos
escolhendo nossa meta sobre a deles em casos em que as duas metas conflitam, é
problema dos nossos genes, não nosso.5 Nós não somos meras
marionetes de nossos genes; nós temos a capacidade (nossos genes nos deram!) de
rejeitar as metas de nossos genes em favor de outras mais altas (ou, em alguns
casos, outras mais baixas).
7.
O fim natural primário de um ser humano não é
reproduzir mais seres humanos, mas viver sua vida como um ser humano. Mas
algumas vidas — a saber, as vidas que mais completamente expressam as
características mais fundamentais e essenciais de ser humano — são mais humanas
que outras.6 Uma vez que a razão é a característica mais explicativa
de um ser humano, uma vida é mais humana (e assim, mais um fim de alguém) na
medida em que ela expressa razão e, então, a vida de razão é o fim natural
primordial de um ser humano. (Em particular, a racionalidade da vida é mais importante do que a duração dessa vida; a longevidade é
apenas um valor entre outros, e pode ser sobreposta.) A Lei Natural, assim,
representa as regras para se determinar quais são nossas metas apropriadas e
para se agir de acordo; e a força vinculante da Lei Natural vem do fato de que
nós já implicitamente desejamos os fins aos quais ela dá conteúdo.
8.
Uma vida que exemplifica a razão apenas nos
meios que se escolhe para se atingir os fins não é tão humana quanto uma que
exemplifica a razão não apenas nos meios aos seus fins, mas naqueles próprios
fins. Dessa maneira, quando quer que escolhemos deixar nossas vidas pessoais
serem guiadas por emoção cega em vez de reflexão atenta, estamos escolhendo uma
vida menos humana acima de uma mais humana. E, similarmente, quando quer que
escolhemos lidar com outras pessoas através da violência e da intimidação em
vez de através da razão e da persuasão, estamos mais uma vez escolhendo uma
vida menos humana acima de uma mais humana. Em ambos os casos, estamos
derrotando nosso próprio desejo por nosso bem objetivo. Consequentemente, nosso
fim natural nos compromete a preferir a vida de razão e cooperação.
9.
Se subordinarmos outras pessoas a nossos
próprios propósitos, tratando-as como caça ou objetos de manipulação em vez de
como parceiros iguais a serem tratados através da persuasão, estamos escolhendo
uma vida que é inferior, por nossos próprios padrões. Dessa maneira, somos
obrigados a escolher relações pacíficas quando quer que relações pacíficas
estejam disponíveis; somos obrigados a não impor nosso desejo sobre outras
pessoas.
Por outro lado, se insistirmos em renunciar à violência mesmo quando
relações pacíficas não são uma opção — ou seja, se nos recusarmos a nos
defender de agressão — então estamos rejeitando estender nossas vidas mesmo
quando poderíamos fazê-lo sem diminuir a humanidade de nossas vidas. Dessa
maneira, embora os seres humanos estejam obrigados a respeitar a autonomia uns
dos outros, eles não estão de qualquer forma obrigados a se absterem de
defender forçosamente sua própria autonomia.7 (De fato, eles podem
até mesmo estar obrigados a se defenderem, uma vez que temos outros fins (tais
como a autopreservação) que se tornam imperativos para nós quando não conflitam
com metas maiores). Mas isso significa que todo ser humano tem uma obrigação de
se abster de invadir a liberdade de qualquer outro ser humano e que é
permissível para o último defender essa liberdade por meio de força contra
incursões do primeiro. Em outras palavras, todo ser humano tem um direito à
liberdade — um direito natural, um que deriva da Lei Natural que especifica
nossos fins naturais.
Eu não espero que os nove passos que eu acabei de registrar convençam
ninguém; o que eu acabei de oferecer não é um argumento, mas um contorno para
um argumento, e cada passo teria que ser preenchido com muito mais detalhe e
suportado por argumentos adicionais a fim de ser convincente. De fato, esse
projeto é um que estou perseguindo em minha própria pesquisa filosófica. O
ponto de estabelecer esses nove passos aqui é simplesmente mostrar que tipo de base metafísica eu acho que pode
ser dada para a Lei Natural (e, em particular, mostrar que nenhuma base
sobrenatural é exigida).
Além disso, eu deveria enfatizar que não é primariamente sobre a base dos
nove passos que eu acabei de esboçar que eu acredito nos direitos naturais
libertários. Eu me sinto bem mais certo da existência dos direitos naturais libertários
do que eu me sinto da minha habilidade de fundamentar esse argumento de nove
passos. O propósito de tal argumento, caso possa ser feito funcionar, é explicar por que termos os direitos que
temos, não justificar nossa crença neles (embora, por outro lado, o processo de
trabalhar e desenvolver tal argumento naturalmente induza modificações nos
detalhes das alegações de direitos naturais que eu acho que temos justificativa
para fazer).
Em séculos anteriores, os teóricos da Lei Natural traçaram uma distinção
útil entre o principium essendi da
Lei Natural e seu principium cognossendi.
O principium essendi de X é a base
para X ser como é; o principium cognossendi é a base para se saber que X é como é.
Por exemplo, a madeira de sândalo tem um odor distinto pelo qual pode ser
identificada; de modo que o odor é um principium
cognossendi da madeira de sândalo. Mas esse odor não é o que faz o sândalo
ser o que é; não é o principium essendi
do sândalo. O principium essendi do
sândalo é, presumivelmente, sua microestrutura bioquímica; mas a presença de um
distinto odor de sândalo é um indicador confiável da presença dessa
microestrutura bioquímica. Um principium
essendi pode também servir como um principium
cognossendi; ou seja, podemos identificar o sândalo pela sua microestrutura
bioquímica tanto quanto pelo seu odor. Mas nem todo principium cognossendi é também um principium essendi.
O propósito do programa de pesquisa descrito no meu esboço de nove passos
é descobrir o principium essendi da
Lei Natural e dos direitos naturais. Mas eu não acho que o sucesso de tal
programa é exigido a fim de sermos capazes de dizer que direitos naturais temos
ou o que a Lei Natural exige de nós. Como logo veremos, existem muitas avenidas
epistêmicas para a verdade moral; o principium
essendi da Lei Natural, qualquer que venha a ser, é apenas um dos muitos principia cognossendi.
Objeção Três: Mesmo Se Houvesse uma Lei Natural, Ela
Seria Incognoscível
A base epistemológica da Lei Natural
Uma das objeções mais comuns à Lei Natural é que ela não está aberta ao
teste científico. Wilson, por exemplo, insiste que ele está de mente aberta e
disposto a aceitar a Lei Natural, se ao menos se puder fornecer uma base
científica a ela:
"...tudo que estou pedindo é que alguém deveria apresentar um
fragmento ou uma sugestão de um esboço de uma sombra de um fantasma de algo
como uma evidência científica ou experimental, no lugar dos verbalismos
metafísicos e sem significado, que os cultistas da Lei Natural habitualmente
usam. Até que eles apresentem tal evidência sensorial-sensitiva
espaço-temporal, eu ainda digo: não
comprovado."
(Wilson, p. 37)
Mas Wilson não está terrivelmente otimista sobre os prospectos de se
encontrar tal base científica; por sua própria natureza enquanto código moral,
a Lei Natural "não está sujeita à experimentação; a experimentação e a
refutação através da experimentação simplesmente não são relevantes para
ela" (p. 14). Observando que o aiatolá Khomeini acha que a Lei Natural
autoriza o divórcio em alguns casos, enquanto o papa acha que não, Wilson
comenta:
"Eu ainda não tenho a menor ideia de um teste científico para
determinar qual desses velhos veementes e dogmáticos poderia realmente saber o
que a Lei Natural é, como ter certeza que eles não estão só chamando seus
próprios preconceitos de Lei Natural. ...não há qualquer maneira
experiencial-experimental de julgar entre quaisquer deles..."
(pp. 35-37)
Em outras palavras, a objeção de Wilson é que afirmações normativas não
são testáveis e, então, não há fundamentos racionais para decidir se elas são
verdadeiras ou falsas.
Mas isso é um erro. Afirmações normativas — julgamentos morais — estão tão
abertas a serem testadas quanto qualquer outro tipo de julgamento. Pois
afirmações normativas ocasionam afirmações empíricas e, se as afirmações
empíricas em questão forem falsificadas pela observação sensorial, então as
afirmações normativas que as ocasionaram estão igualmente falsificadas.8
Considere as duas seguintes afirmações normativas: "Adolf Eichmann é
uma pessoa virtuosa" e "Uma pessoa virtuosa nunca participaria de um
genocídio". Essas duas afirmações, tomadas em conjunto, implicam em uma
afirmação empírica, a saber, "Adolf Eichmann não participou de um
genocídio". Essa é uma afirmação que está aberta ao teste empírico; a
falsificação mais clara seria o próprio testemunho ocular de Eichmann
participando de um genocídio, mas tirando isso, ainda podemos ter provas
convincentes de que Eichmann de fato participou de um genocídio. E uma vez que
a conclusão empírica tenha sido falsificada desta maneira, podemos inferir que
pelo menos uma de nossas premissas normativas deve estar errada. (De "Se P
& Q, então R" e "Não R", a inferência "Não ambos P
& Q" se segue logicamente.) Então o resultado da investigação empírica
pode, de fato, exigir que revisemos nossas crenças morais; em suma, afirmações
normativas são realmente testáveis.
Agora, pode-se objetar que tudo que esse teste mostra é que pelo menos uma de nossas premissas normativas deve
estar errada, mas não nos diz qual
das premissas normativas rejeitar.
Isto é verdade. Mas a mesma crítica se aplica igualmente bem a qualquer
aplicação do método científico. Suponha que eu quero testar a proposição de que
a água ferve a 100°C. Então eu aqueço um pouco de água e, quanto ela começa a
ferver, eu coloco um termômetro resistente e vejo que leitura eu tiro. Agora
suponha que o termômetro lê 96°C. O que eu deveria concluir? Bem, eu poderia
considerar que a suposição de que a água ferve a 100°C como tendo sido
refutada. Mas essa não é minha única opção. Também está aberto a mim me agarrar
a essa suposição e, ao invés, rejeitar alguma suposição auxiliar — e.g., minha
suposição de que essa coisa é realmente água, ou minha suposição de que o
termômetro foi corretamente rotulado, ou mesmo minha suposição de que eu estou
acordado e não sonhando.
Nunca se pode testar uma crença em isolamento; só se pode testar grupos de
crenças. Nas ciências naturais, assim como na ética, os testes empíricos podem
expor uma inconsistência no conjunto total de crenças, mas eles não podem dizer
qual (quais) crença(s) rejeitar. Como resolvemos essa inconsistência dependerá
de quais crenças nós achamos mais plausíveis, quão comprometidos estamos com
elas, quantas de nossas outras crenças dependem delas e assim por diante. A
esse respeito, a ética não está nem um pouco pior do que as ciências naturais.
A implicação que eu gostaria de tirar disso é "tanto melhor para a
ética!". Mas alguns, ao contrário, vão querer concluir: "tanto pior
para as ciências naturais!". Se nenhuma crença pode jamais ser testada em
isolamento — se todas as nossas conclusões, na ciência assim como na ética,
dependem de julgamentos pessoais e inevitavelmente impressionistas de
plausibilidade relativa — então não é impossível que qualquer crença seja justificada? Ao invés de aprimorar nossa
avaliação do raciocínio moral para colocá-lo em pé de igualdade com a
objetividade do raciocínio científico, por que não deveríamos rebaixar nossa
avaliação do raciocínio científico para colocá-lo em pé de igualdade com a
subjetividade do raciocínio moral?
Bem, uma razão para não o fazer é que isso equivaleria ao tipo de
ceticismo global que já vimos ser autodestrutivo. Se o cético deseja afirmar
que o padrão do método científico não produz crenças justificadas, então o
cético colocou os padrões de justificativa tão alto que é muito difícil ver
como a própria tese cética poderia satisfazer esses padrões. E se ela não
puder, então o cético não nos deu razão alguma para aceitar sua alegação de que
os padrões deveriam ser colocados tão alto. Nós não temos que construir nosso
sistema de crenças sobre uma fundação rochosa de verdade autoevidente antes de
termos justificativa para aceitar essas crenças como pontos de partida
provisórios.
Nossas crenças atuais merecem o benefício da dúvida até que encontremos
alguma razão positiva para suspeitar delas; temos que começar onde estamos e
não em algum outro lugar. A estrutura de um conjunto de crenças não é
hierárquica, como um arranha-céu com cada andar repousando sobre o andar abaixo
dele e assim por diante até o chão; ela é mais como uma teia de aranha, uma
rede de julgamentos inter-relacionados que se apoiam mutualmente variando em
força e centralidade. Na epistemologia (a teoria do conhecimento), esse modelo
de teia de aranha de justificativa é conhecido como coerentismo, enquanto o seu rival do arranha-céu é chamado de fundacionalismo.
Até agora eu tenho falado sobre testar crenças normativas verificando se
elas conflitam com observações empíricas. Mas, se o coerentismo está correto,
também podemos testar as crenças normativas verificando se elas conflitam umas
com as outras. E podemos até mesmo testar crenças descritivas verificando se
elas conflitam com as crenças normativas. No modelo de arranha-céu, crenças de
mais alto nível podem ser revisadas à luz de mudanças em crenças de nível mais
baixo, mas nunca vice-versa; a seta de justificativa aponta apenas em uma
direção. Mas, de acordo com o coerentismo, qualquer crença está, a princípio,
aberta a revisão se ela se chocar com um número suficiente de outras crenças,
de qualquer tipo. Quais crenças deveríamos manter e quais deveríamos jogar fora
dependerá de quão centrais as crenças em questão são para a nossa visão geral
do mundo.
A maioria das pessoas, por exemplo, tem muito mais investido no julgamento
de que o genocídio é imoral do que o tem em qualquer visão particular sobre o
status dos julgamentos normativos; então se alguém como Rollins propõe uma
teoria sobre o status dos julgamentos normativos que implica que o genocídio,
afinal, não é imoral, a resposta racional é se agarrar à sua condenação do
genocídio e rejeitar a teoria de Rollins — a
menos que Rollins possa mostrar que sua teoria repousa sobre julgamentos
que são mais centrais à nossa estrutura de crenças do que a nossa crença que o
genocídio é imoral. Não há diferença fundamental entre o raciocínio moral e o
método experimental das ciências naturais; ambos envolvem o que Platão e
Aristóteles chamam de dialética, o
que John Rawls chama de método do equilíbrio reflexivo: traçar as implicações
de nossas crenças e tentar eliminar as inconsistências entre elas. (E realizar
experimentos é simplesmente uma maneira de adicionar novas crenças ao nosso
conjunto total de crenças — e usar essas novas crenças para testar as antigas.)
Nesse ponto, a seguinte objeção pode ser levantada: no caso de
discordância entre duas teorias descritivas
diferentes, há a possibilidade de resolver a disputa realizando-se
experimentos. Talvez, como o coerentista alega, os experimentos sejam apenas
uma maneira de adquirir novas crenças, mas ao menos eles fazem com que os
disputantes adquiram as mesmas novas
crenças, trazendo assim os dois conjuntos de crenças a um alinhamento maior.
Mas não parece haver nenhuma maneira análoga de resolver as disputas sobre
diferentes interpretações da Lei Natural. Por exemplo, Stephen O'Keefe escreve
em seu prefácio ao livro de Rollins:
"Qualquer conversa política superficial com libertários vai, mais
cedo ou mais tarde, tocar no assunto de direitos.... Se a discussão fica séria,
no entanto, os libertários veem sua sólida base de direitos rapidamente se
desintegrar em areia movediça. Uma questão mortal usualmente põe fim ao
disparate dos direitos: por que a alegação comunista de que as pessoas têm o
direito de viver do trabalho de outros é menos válida do que os direitos
libertários? O libertário deve então encontra uma autoridade superior à sua e
não há lugar racional para onde se voltarem. Eles podem apelar a Deus, ou à
natureza, ou à natureza humana como a ordenação de sua marca de direitos, mas
os comunistas podem fazer o mesmo."
Mas eu acho que essa diferença entre o método científico e o raciocínio
moral está exagerada. Mesmo pessoas que diferem violentamente sobre várias
questões morais geralmente têm muito mais crenças (tanto descritivas quanto
normativas) em comum, e é frequentemente possível minerar a vasta área de
acordo comum em busca de premissas com as quais resolver as disputas.
Experimentos mentais desempenham um papel no raciocínio moral similar ao papel
que experimentos reais (e experimentos mentais também, aliás) desempenham nas
ciências naturais.
Por exemplo, alguém que acredita que deveríamos sempre fazer o que quer
que maximize a utilidade social pode ter dúvidas, quando solicitado que imagine
um caso em que um médico secretamente mata um paciente saudável a fim de
redistribuir os órgãos do paciente para cinco pacientes doentes que morrerão a
menos que recebam transplantes de órgão tão logo quanto possível. Se
concordarmos que a ação do médico maximiza a utilidade social, mas não obstante
nos encontrarmos inclinados a avaliar a ação do médico como errada, então o
experimento mental resultou em novas crenças que conflitam com a nossa crença
anterior de que o que quer maximize a utilidade social é okay. Dessa maneira,
os experimentos mentais também podem servir a função de trazer sistemas de
crenças divergentes a um alinhamento.
Uma função importante de novos dados — quer adquiridos através de
experiência sensorial, quer através de reflexão filosófica — é introduzir
inconsistências em um conjunto de crenças anteriormente consistente, assim
incitando uma revisão de crenças.
Claro, alguém pode escolher rejeitar os novos dados em vez de revisar as
antigas crenças; e, às vezes (e.g., no caso de alucinações e afins), isso pode
até mesmo ser a opção racional. Mais uma vez, o que aceitamos e o que
rejeitamos dependerá do número de crenças em questão e o peso ou plausibilidade
que atribuímos a essas crenças. Então a tentativa de resolver inconsistências
entre suas crenças pode não necessariamente levar a uma maior consiliência com
aqueles de outrem.
No caso moral, por exemplo, Rollins, um autoproclamado
"amoralista", opta por se agarrar ao que a maioria veria como uma
crença altamente inverossímil — a crença de que não há nada errado com
"assassinato, estupro, roubo, ou tortura de crianças" — e rejeitar
crenças mais plausíveis quando quer que elas entrem em conflito com aquela. Mas
isso não é nenhuma prova de que o raciocínio moral é inútil para chegar a um
acordo, porque o mesmo fenômeno pode aparecer nas ciências naturais — como no
caso de criacionistas que se agarram tão teimosamente à crença de que o
universo tem apenas alguns milhares de anos de idade que rejeitam evidências
contrárias (quer astronômicas, geológicas ou paleontológicas) como pistas
falsas plantadas por Deus para testar nossa fé.
Na ética, assim como nas ciências naturais, a dialética é uma ferramenta
poderosa para se chegar a um acordo, mas em nenhum caso ela oferece qualquer
garantia de convencer pessoas como amoralistas e criacionistas, que, quando
confrontados com inconsistências em seus conjuntos de crenças, insistem em
resolvê-las mantendo as crenças menos plausíveis e rejeitando as mais
plausíveis. (Claro, tanto os amoralistas quanto os criacionistas protestarão
que a caracterização que eu acabei de dar de suas posições depende da minha perspectiva pessoal quanto ao que
é ou não é plausível. Bem, claro. A minha perspectiva pessoa é o único lugar
que eu tenho para estar.)
Wilson (em Natural Law) é cético
sobre o grau de similaridade entre a discordância ética e a discordância
científica:
"A suspeita de que o que se chama de 'Lei Natural' pode consistir de
parcialidade pessoal com um rótulo metafísico inflado preso a ela fica mais
insidiosa conforme se contempla a fantástica quantidade de discordância sobre
virtualmente tudo entre os vários defensores da 'Lei Natural'.
O Prof. Rothbard nos diz que isso não significa nada, porque há
discordâncias entre físicos também: mas eu acho essa analogia totalmente pouco
convincente. ...Na área da Lei Natural e da 'moralidade' metafísica em geral,
não há qualquer pingo de... concordância sobre como se perguntar questões
significativas (questões que podem ser experimentalmente ou experiencialmente
respondidas)9 ou mesmo sobre que forma uma questão significativa
(que se possa responder) teria que tomar. Não há acordo pragmático sobre como
conseguir os resultados que se quer. Não há acordo sobre que modelos contêm
informação e que modelos contém apenas verbalismo vazio. Não há, acima de tudo,
qualquer acordo sobre o que pode ser conhecido especificamente e o que pode ser
apenas suposto ou deixados sem resposta. ...
Alguns estados e nações acreditam na pena capital; outros não. Pacifistas
são contra a morte de qualquer um, mas nem todos os pacifistas são
vegetarianos. Alguns semi-vegetarianos não comem mamíferos superiores mas comem
peixe. Vegetarianos puros matam vegetais para comer. E assim por diante. ...
Comparar esse espaguete ontológico com as discordâncias altamente técnicas
da física me parece como comparar dez bêbados arrebentando-se uns aos outros
num bar com a diferença de tempo e humor entre dez condutores de uma sinfonia
de Beethoven."
(Wilson, pp. 33-36)
Provavelmente é verdade que há mais discordância nas ciências naturais do
que na ética (sic).10 Mas
as ciências naturais são a melhor classe de comparação? A ética certamente tem
mais em comum com as ciências sociais do que com as ciências naturais; e nas
ciências sociais — e.g., economia, sociologia, psicologia — a medida da
discordância é notória. Considere as diferenças entre, digamos, as abordagens
keynesiana, monetarista, econométrica, da escolha pública, marxista, georgista,
austríaca e a mainstream neoclássica para a teoria
econômica. Aqui encontramos não somente uma torrente de discordâncias sobre
questões específicas de política, tais como se uma dada política aumentará ou
não a inflação, o desemprego, o crescimento econômico, etc., mas também
extremamente pouco acordo sobre "como perguntar questões
significativas", ou "que forma uma questão significativa (que possa
ser respondida) teria que tomar", ou "o que pode ser conhecido
especificamente e o que só pode ser suposto ou deixado sem resposta".
O método econômico deveria ser indutivo ou a priori? Ele deveria visar à predição ou a explicação? Ele deveria
empregar uma concepção subjetiva ou objetiva do valor econômico? Quão úteis são
os modelos matemáticos quando aplicados ao comportamento humano? Quantas
suposições simplificadoras podemos fazer sobre as motivações dos agentes
econômicos antes que nossos modelos cessem de ser úteis em elucidar a realidade
social?
Estas são questões sobre as quais o campo da economia não está nem mesmo
perto de chegar a um consenso. Ainda assim, como um libertário, Wilson
provavelmente não estaria disposto a concluir que todas as teorias econômicas
são igualmente válidas e que nenhuma está mais bem fundamentada do que qualquer
de suas rivais, ou que não há fato que importe quanto a se dada política
causaria um aumento ou diminuição no desemprego. Eu apostaria que, apesar da
falta de consenso entre os economistas, Wilson provavelmente acredita em algum
tipo de verdade econômica.11 Então por que um nível equivalente de
discordância na ética deveria nos tornar céticos sobre a possibilidade da
verdade ética?
Não há grandes mistérios sobre por que o acordo é mais difícil de ser
atingido na ética e nas ciências sociais do que nas ciências naturais. Por um
lado, a matéria (a atividade humana) é tanto mais complexa quando menos
suscetível à análise matemática, tornando assim a modelagem teórica e a
experimentação controlada inerentemente mais difíceis. Por outro, os
pesquisadores têm maior probabilidade de levar mais preconceito, autointeresse
e bagagem ideológica consigo a questões na ética e nas ciências sociais do que
a questões nas ciências naturais, tornando assim o problema do viés mais
generalizado. É a complexidade e o viés, não a subjetividade inerente, que
tornam a discordância moral tão intratável.
Conhecimento vs. mera justificativa
Eu estive argumentando que crenças normativas podem ser justificadas. Agora, alguém pode
conceder isso, mas ainda negar que nossas crenças morais possam contar como conhecimento. Houve uma época em que era
elegante nos círculos filosóficos definir o conhecimento como uma crença
verdadeira e justificada, mas hoje em dia os filósofos reconhecem que uma
crença pode ser tanto verdadeira e justificada e ainda assim ser tal que poucos
estariam dispostos a chamá-la de conhecimento.
O caso paradigmático é quando uma crença verdadeira e justificada é
baseada em uma crença falsa e justificada. Suponha que eu acredite que jacarés
são mamíferos. Suponha ainda que eu tenho boas razões para minha crença
errônea: a enciclopédia em que eu olhei continha um erro de impressão, o
biólogo que eu consultei mentiu para mim, e assim por diante. Então eu tenho
justificativa para acreditar, falsamente, que jacarés são mamíferos. Uma vez
que eu sei que todos os mamíferos são vertebrados, eu tenho justificativa para
concluir, com base na minha crença falsa que jacarés são mamíferos, que jacarés
são também vertebrados. Agora, acontece que jacarés realmente são vertebrados,
embora minhas razões para acreditar nessa verdade estejam erradas. Então, eu
tenho uma crença verdadeira e justificada que jacarés são vertebrados, mas a
maioria das pessoas estaria relutante em dizer que eu sei que jacarés são vertebrados, e a fonte de sua relutância é o
fato de que a conexão entre a crença ser verdadeira e eu ter justificativa para
acreditar nela parecer tão incerto e acidental. Consequentemente, a maioria dos
filósofos conclui que algum tipo de condição de confiabilidade, mostrando como
nossas crenças rastreiam a verdade, deve ser adicionada a fim de uma crença
verdadeira e justificada contar como conhecimento.
Parece se seguir que mesmo que a) eu acreditar que as pessoas têm um
direito à liberdade e b) minha crença for verdadeira e c) eu tiver
justificativa para mantê-la, eu não me incluo como quem sabe que as pessoas têm
um direito à liberdade ao menos que eu acredite nisso porque é verdade. Mas, a objeção continua, só podemos interagir
causalmente com fatos descritivos, não com fatos normativos; portanto, crenças
normativas jamais podem satisfazer a condição de confiabilidade e, então, nunca
contam como conhecimento.
Resumidamente, minha resposta a essa objeção é tripla:
a)
se algo como meu esboço de nove passos do principium essendi da Lei Natural
estiver correto, então fatos normativos são, na verdade, um subconjunto dos
fatos descritivos (e.g., fatos sobre nossos fins naturais) e então nós podemos,
afinal, interagir com eles;
b)
não podemos interagir causalmente com fatos
matemáticos, mas podemos, não obstante, ter conhecimento matemático, então a
interação causal não deve ser a única maneira possível para satisfazer a
condição de confiabilidade;12 e
c)
em todo caso, assim como não precisamos ser
capazes de explicar como nossos olhos funcionam antes de termos justificativa
para assumir que temos conhecimento sensorial, da mesma maneira não precisamos
ser capazes de explicar como é que nossas crenças rastreiam a verdade moral
antes de termos justificativa para assumir que temos conhecimento moral.
Abordagens consequencialistas vs. deontológicas
Enquanto estou no assunto, acho que a abordagem coerentista ao argumento
moral que eu estive defendendo pode lançar alguma luz sobre um tópico de debate
comum entre libertários — a saber, se o libertarianismo deveria ser baseado a)
no argumento consequencialista de que deveríamos permitir que as pessoas sejam
livres porque fazê-lo terá consequências sociais benéficas ou, ao contrário, b)
no argumento deontológico que deveríamos permitir que as pessoas sejam livres
porque fazê-lo é exigido por nossa obrigação moral de respeitar outras pessoas
como fins em si mesmas.13 (Geralmente são apenas os libertários
deontológicos que empregam a linguagem da Lei Natural, mas historicamente houve
versões tanto consequencialistas quanto deontológicas da teoria da Lei Natural;
se você acredita em um padrão moral superior, independente da convenção, mas
acessível à razão, ao qual as leis feitas pelo homem são devidamente
responsáveis, então você é um crente na Lei Natural, mesmo se seu padrão moral
superior for simplesmente o bem-estar social.)
Às vezes, toda a disputa entre libertários consequencialistas e
deontológicos equivale a simplesmente um debate sobre a melhor maneira de
apresentar o libertarianismo ao tentar convencer não-libertários. Nesse caso eu
acho que o debate é um tanto tolo; por razões que eu entrarei em breve, a
maioria das pessoas não estará disposta a aceitar como socialmente benéfico um
sistema que elas julgam injusto, e vice-versa, então nem o argumento
consequencialista nem o deontológico pode se manter muito bem sozinho. E, em
todo caso, uma vez que há muitos bons argumentos consequencialistas e muitos bons deontológicos, por que não
usar toda a munição em nosso arsenal?
Mas, mais frequentemente, a discordância não é sobre como embalar o
libertarianismo ao vendê-lo para os infiéis, mas sim sobre que conjunto de
razões — as consequencialistas ou as deontológicas — constituem a verdade mais
profunda sobre por que o
libertarianismo é o sistema correto. Por exemplo, os libertários deontológicos
frequentemente dizem que, embora seja um golpe de sorte para nós que o
libertarianismo seja socialmente benéfico, ainda seríamos obrigados a respeitar
os direitos libertários mesmo se acontecesse de que fazê-lo levasse ao caos
social e à miséria; e os libertários consequencialistas fazem observações
similares do outro lado. Em outras palavras, cada lado desse debate está
oficialmente comprometido com a visão de que as razões do outro lado são irrelevantes para a justificação do
libertarianismo.
Ainda assim, bastante curiosamente, embora os libertários deontológicos
não pensem que importa que o
libertarianismo seja socialmente benéfico, todos eles parecem pensar que de
fato ele é benéfico. E, similarmente,
embora os libertários consequencialistas não pensem que importa que o libertarianismo expresse respeito pelas pessoas,
todos eles parecem pensar que, de fato, ele expressa
respeito pelas pessoas.
Se os libertários deontológicos viessem a ser convencidos que as políticas
libertárias realmente causariam caos social e miséria, eu suspeito que a
maioria deles veria sua fé no libertarianismo abalada. Os libertários
consequencialistas, reconhecendo isso, frequentemente acusam os deontológos de
hipocrisia, alegando que sob sua aparência deontológica, eles são
cripto-consequencialistas. (Eu me lembro de ler um longo debate sobre esse
tópico na revista Liberty durante suas primeiras
edições.) Mas essa acusação é uma faca de dois gumes, uma vez que se os
libertários consequencialistas viessem a ser convencidos de que as políticas
libertárias de fato expressam desprezo pelas pessoas, eu imagino que sua fé
ficaria abalada também.
Então, o que está acontecendo aqui? Bem, suponha que eu acredite que a
água é H2O. Então essa crença me compromete a pensar que se não houvesse coisa
tal como H2O, então não haveria água (uma vez que eles são a mesma coisa). No
entanto, se eu viesse a ser convencido de que a teoria atômica da matéria está
errada — se eu viesse a ser convencido de que não há átomos de hidrogênio e de
oxigênio e, assim, nenhum H2O — eu não concluiria que não há água. Em vez
disso, eu revisaria minha crença de água é H2O.
Eu não tenho nenhuma teoria em particular sobre qual é o principium essendi da água; eu acho que
é H2O. E isso me compromete com a crença "Se não houvesse H2O, não haveria
água". Mas essa afirmação não me
compromete com a crença "Se eu não acreditasse em H2O, eu não acreditaria
na água". H2O não é o meu principium
cognossendi primário da água; eu normalmente identifico a água por sua
aparência, potabilidade, pontos de ebulição e solidificação, etc., não por sua
composição molecular. Então, se eu descobrisse que o H2O não existe, mas meus principia cognossendi comuns ainda
indicassem a presença da água, a maneira mais plausível de resolver a
inconsistência seria rejeitar minha teoria sobre qual é o principium essendi da água, em vez de desistir da minha crença na
existência da água.
O mesmo ponto se aplica à disputa sobre a base do libertarianismo. A
discordância é sobre o principium essendi
da validade do libertarianismo; os libertários consequencialistas acham que o principium essendi é o bem-estar social,
enquanto os libertários deontológicos acham que é o respeito pelas pessoas. No
entanto, os libertários, assim como a maioria das pessoas (eu incluso), tendem
a pensar que o bem-estar social e o respeito pelas pessoas andam juntos, pelo
menos aproximadamente; ou seja, eles pensam que um sistema que respeita as
pessoas provavelmente é benéfico socialmente, e vice-versa, então cada
característica pode servir como um indicador confiável (embora não sem
exceções) da presença do outro. Dada essa crença, aqueles que consideram o
bem-estar social como o principium
essendi da retidão tenderão a tratar o respeito pelas pessoas como, pelo
menos, um principium cognossendi da retidão,
assim como aqueles que consideram o respeito pelas pessoas como o principium essendi da retidão tenderão a
tratar o bem-estar social como um principium
cognossendi.
O debate sobre se o bem-estar social ou o respeito pelas pessoas é o principium essendi da validade do
libertarianismo é importante (e não é nenhum segredo que eu estou no campo do
respeito); mas eu acho que seus participantes têm às vezes interpretado mal o
que suas posições os comprometem. Lembre-se do caso do H2O. Aqueles que acreditam
que o respeito pelas pessoas é o principium
essendi do libertarianismo estão de fato comprometidos com a crença
"Se o libertarianismo não fosse socialmente benéfico, ainda seria
moralmente obrigatório". Mas muitos deles cometeram o erro, do meu ponto
de vista, de pensar que essa crença os compromete com a crença adicional
"Se cessarmos de acreditar que o libertarianismo é socialmente benéfico,
ainda o consideraríamos moralmente obrigatório". (E similarmente, mutatis mutandis, para os
consequencialistas.) Esta crença adicional raramente é verdade, nem deveria
ser; as considerações tanto consequencialistas quanto deontológicas são
cruciais para a justificação do
libertarianismo, mesmo se uma for mais fundamental do que a outra quando se
trata de explicar por que o
libertarianismo é a posição correta.
Objeção Quatro: As Explicações Evolutivas Tornam a Lei
Natural Obsoleta
A Lei Natural: um produto da evolução biológica?
Uma objeção
final que eu quero considerar é a que a Lei Natural é uma hipótese desnecessária,
porque as avaliações morais podem ser explicadas como um produto da evolução,
em vez de como uma resposta a uma verdade moral objetiva.14 Em um
artigo recente, Rich Hammer escreve:
"Se a beleza é beleza, você poderia pensar que [uma barata] e eu
lutaríamos pela mesma dama.... [Mas nós] somos cada um programados para buscar
fêmeas com quem nossos genes possam, bem, continuar.... [Porque reconhecemos
isso] nós não caímos numa disputa acirrada porque discordamos sobre que dama é
mais bonita.... Mas temos pequenas desavenças às vezes quando nossos outros
sentidos, especialmente nosso senso de direito, recomendam regras diferentes de
conduta.... Talvez esse senso de direito, que faz com que eu forme opiniões
sobre como eu deveria regular minhas ações a fim de considerar as necessidades
dos outros, foi programada em mim, exatamente como meu senso de beleza.
Talvez meus genes tenham descoberto que eles têm uma chance melhor de
sobreviver se indivíduos humanos forem programados para desejar regras de comportamento
que favoreçam a cooperação sobre o conflito."
("The Sense of Right
and a Man-to-Man Talk With Archy About Women", Formulations, Vol. IV, No. 1 (Autumn 1996), p. 37.)
Mas eu tenho algumas perguntas sobre essa analogia. Na história de Rich,
não é surpresa que humanos e baratas discordem em seus julgamentos sobre
beleza, porque necessidades biológicas os programaram para ter respostas
diferentes — e então deveríamos tomar uma atitude similar em relação a
discordâncias morais. Esta última inferência, sobre moralidade, é o que me
intriga.15 Discordâncias morais não ocorrem entre humanos e baratas;
elas ocorrem entre humanos — membros da mesma espécie, produtos do mesmo
processo evolutivo. Então uma explicação de nossos julgamentos morais que apela
apenas para considerações evolutivas vai necessariamente estar incompleta.
Então explicações evolutivas sobre as discordâncias
morais parecem pouco promissoras. Explicações evolutivas sobre as concordâncias morais estão sobre
fundamentos mais firmes. Mas mesmo aqui há espaço para ceticismo.
Frequentemente se pensa que se a teoria darwiniana da evolução através da
seleção natural está correta, então qualquer característica central ou
importante dos seres humanos deve ter uma função evolutiva. Mas isso não é verdade.
Considere a habilidade de resolver equações matemáticas. Esta é uma habilidade
importante e valiosa, e sem dúvidas tem valor de sobrevivência; mas ela foi
selecionada por causa de seu valor de
sobrevivência? Eu duvido. A pressão evolutiva selecionou algo, mas o que ela
selecionou foi a razão — i.e., uma
capacidade genérica para descobrir coisas — e nossa capacidade mais
especializada de resolver equações matemáticas é um subproduto dessa capacidade mais genérica, em vez de algo que foi
selecionado diretamente.
Então se os seres humanos geralmente têm uma tendência para concordar,
após reflexão, com a proposição de que 374 vezes 98 é igual a 36652, isso não
por causa da crença que 374 vezes 98 é igual a 36652 tem qualquer valor de
sobrevivência em particular; em vez disso, é por que temos uma capacidade
genética para descobrir coisas (uma capacidade que tem valor de sobrevivência)
e, quando aplicamos essa capacidade ao problema do que 374 vezes 98 é igual,
nós propomos 36652 porque somos capazes de descobrir que 36652 é a resposta
correta mesmo.
Similarmente, então, é possível que nossa capacidade para o raciocínio
moral, assim como a nossa capacidade para o raciocínio matemático, seja o
subproduto de nossa capacidade geral para a razão, em vez de algo pelo que a
seleção natural é diretamente
responsável. Em outras palavras, se as pessoas têm uma tendência a manter
certas crenças normativas, pode ser porque elas usaram suas capacidades
racionais para descobrir que certas coisas são certas e outras, erradas.
Agora, eu certamente não pretendo negar que as considerações evolutivas do
tipo a que Robert Axelrod apela em seu livro The Evolution of Cooperation
desempenham um papel importante em explicar por que tendemos a favorecer
"regras de comportamento que favoreçam a cooperação sobre o
conflito". Eu endosso de todo coração esse ponto. Mas esses impulsos
cooperativos não são específicos o suficiente, por si próprios, para embasar
todo o espectro de nossas atitudes normativas.
Considere o seguinte padrão de raciocínio moral:
1.
É errado matar humanos exceto em autodefesa.
2.
Os animais são relevantemente como os humanos,
pelo fato de terem capacidades para o desejo e o medo, alegria e dor.
3.
Portanto, também é errado matar animais exceto
em autodefesa.
Meu presente interesse não é com se este é um argumento bom ou ruim. O
ponto é que esse é um modo típico e facilmente compreensível de raciocínio.
Mesmo aqueles que discordam do argumento podem facilmente ver o ponto dele.
Agora, suponha que temos uma tendência natural para acreditar em (1), e
que esta tendência foi selecionada pela evolução, porque criaturas que matam
sua própria espécie tem mais dificuldade para construir redes cooperativas e
assim estão em desvantagem na luta pela sobrevivência.
Suponha também, por outro lado, que não tenhamos nenhuma tendência em
particular para acreditar em (3), e que a ausência de tal tendência também seja
o produto da evolução, porque, antes do desenvolvimento da agricultura, as
pessoas que eram escrupulosas para comer animais tendiam a se extinguir antes
que tivessem uma chance de se reproduzir e passar seus genes adiante.16
Podemos assumir, então, que nossos ancestrais primitivos não tinham
escrúpulos para comer animais e não sentiam qualquer tensão entre sua aceitação
de (1) e sua rejeição de (3). Mas o exercício da razão pode incitar as pessoas
a notar a tensão e a resolvê-la abraçando (3). (Não estou dizendo que esta é a
única maneira de resolver a tensão, apenas que é uma maneira saliente e inteligível.) Este é um dos modos através
dos quais as pessoas chegam às suas crenças morais, e é um modo ao qual as
considerações evolutivas são apenas perifericamente relevantes.
Podemos pensar sobre nossos impulsos normativos implantados evolutivamente
como desempenhando um papel no raciocínio moral análogo ao papel que a
experiência sensorial desempenha no raciocínio científico. Os dados dos
sentidos são uma das mais importantes fontes das nossas crenças sobre como o
universo funciona. Mas não estamos confinados ao nível sensorial. Nossa
capacidade para a razão nos leva a tentar construir um quadro conceitual do
universo que faça sentido; e, embora confiemos profundamente nos dados
sensoriais para construir esse quadro, se tivermos que sacrificar alguns dados
sensoriais a fim de atingir um certo quadro científico que faça um pouco mais
de sentido — se tivermos que decidir que, apesar das aparências iniciais, a
terra não é plana, o sol não a circunda, e as mesas não são continuamente
sólidas até o fim — então um pouco do que os sentidos nos dizem pode ter que
ser jogado fora em consideração a uma teoria mais intelectualmente
satisfatória.
Igualmente, nossos impulsos morais implantados evolutivamente são uma das
mais importantes fontes das nossas crenças sobre como devemos viver. Mas não
estamos confinados ao nível instintivo. Nossa capacidade para a razão nos leva
a tentar construir um quadro conceitual do certo e do errado que faça sentido;
e, embora confiemos profundamente em nos impulsos inatos ao construir esse
quadro, se tivermos que desconsiderar alguns de nossos impulsos inatos a fim de
atingir um quadro moral que faça um pouco mais de sentido — se tivermos que
decidir que, apesar de nossos impulsos iniciais, não deveríamos matar animais
para comer — então um pouco do que os nossos instintos morais nos dizem pode
ter que se jogado fora em consideração a uma ética mais intelectualmente
satisfatória. Mais uma vez, um relato puramente evolutivo do nosso senso de
moralidade, por mais iluminador que seja, estará consideravelmente incompleto.
A Lei Natural: o produto da evolução cultural?
Em todo caso, a proporção do comportamento aprendido para o comportamento
instintivo é maior nos humanos do que em qualquer outro organismo conhecido.17
Então, não é surpreendente que muitos defensores da objeção evolutiva à Lei
Natural tenham escolhido focar na evolução cultural em vez da evolução natural.
Como essa versão da objeção propõe, nossas atitudes morais não são, em geral, o
resultado da seleção natural agindo sobre as espécies, mas da seleção natural agindo sobre as maneiras de fazer as coisas. As práticas culturais que promovem
a sobrevivência de sua sociedade tendem, elas mesmas, a sobreviverem, tanto
porque a sociedade onde elas se originaram sobrevive e mantém essas práticas,
quanto porque outras sociedades notam seu sucesso e começa a imitá-la. Práticas
sociais danosas, ao contrário, tendem a minar as chances de sobrevivência de
uma sociedade; a sociedade tem maior probabilidade de perecer, e outras
sociedades tem maior probabilidade de evitar a prática porque a sociedade
falida tem menos prestígio e, portanto, atraem menos imitadores. Dessa maneira
as práticas danosas se extinguem.
Eu creio que há um cerne de verdade profunda nesse argumento. Ele
exemplifica a compreensão liberal clássica — desenvolvida de maneiras
diferentes por escritores como John Stuart Mill, Michael Polanyi, Friedrich
Hayek e Bruno Leoni — de que a competição é, acima de tudo, um processo de
descoberta. Ainda assim, o argumento tem seus limites. Para emprestar uma comparação
de David Ramsay Steele18: é verdade que organismos com parasitas
benéficos têm mais chances de sobreviver do que organismos com parasitas
danosos, mas seria precipitado concluir disso que os parasitas existentes têm
maior chance de serem benéficos. O fato de que uma dada sociedade sobreviveu
não é prova alguma que qualquer prática em
particular daquela sociedade seja benéfica.
Esta ressalva se aplica a qualquer abordagem evolutiva, seja biológica ou
cultural; mas a evolução cultural em particular enfrenta problemas especiais
como um fato explicativo. Na evolução biológica, as mutações surgem lenta e
incrementalmente; nenhuma espécie brota asas ou galhadas da noite para o dia.
Dessa maneira, quando vemos organismos com asas ou galhadas, podemos ter certeza
de que essas características se desenvolveram durante muitos milhares de
gerações, e, então, a hipótese de que essas características são benéficas, ou
que pelo menos não são hostis, é proeminente. Mas na evolução cultural, as
mutações — i.e., novas ideias e práticas, ou o que Richard Dawkins chama de memes — são frequentemente o produto do
pensamento humano e podem emergir completamente desenvolvidas em uma única
geração (exemplos: o Islã, a Constituição dos E.U.A., o clipe de papel), e,
portanto, a presença de um meme é uma evidência muito fraca de que ele foi
confiavelmente selecionado por pressões evolutivas.
Pior ainda, já que os memes, ao contrário dos genes, podem se reproduzir
via imitação, um meme em particular pode se espalhar e sobreviver mesmo se ele
matar seu grupo hospedeiro. O fato de que um meme é bom em garantir sua própria sobrevivência não é garantia
alguma de que ele será igualmente efetivo para garantir a sobrevivência dos
grupos que o adotam.
Por exemplo, conforme o Império Romano ficou mais centralizado e
autoritário, ele enfraqueceu tanto sua base econômica e cultural que
essencialmente se autodestruiu, incapaz de afastar as tribos saqueadoras que em
anos anteriores poderia ter esmagado sem piscar. Ainda assim, a queda da Roma estagnada,
ossificada e hierárquica não pôs um fim ao meme centralista romano, que
continuou a atrair admiradores e imitadores através dos séculos. Tendo
destruído seu hospedeiro original, o vírus imperial se propagou, infectando
inúmeras sociedades, do Império Bizantino ao Reich de Mil Anos, matando-as por
sua vez.
Quando lemos o poeta italiano do século XIV Dante cantando louvores ao
governo mundial em seu tratado De
Monarchia, olhando especialmente para Roma como seu modelo, ou tratando o
assassinato de César, em seu famoso Inferno,
como um crime comparável em seriedade à traição e crucificação de Cristo19,
reconhecemos que o poder de permanência de um meme pode ter pouco a ver com seu
sucesso em promover as sociedades que o adotam. E uma olhada em nossa própria
vasta reprodução — tanto arquitetônica20 quanto política — da Roma
antiga em pleno esplendor imperial às margens do Potomac é um mal presságio para o
futuro dos Estados Unidos.
Os perigos da vitória: lições da história
Essa distinção entre o sucesso dos memes e o sucesso das sociedades que
adotam esses memes dá uma possível resposta a uma preocupação colocada por Rich
Hammer de que se fizermos de qualquer outra coisa além do sucesso evolutivo o
nosso padrão normativo, corremos o risco de pôr em perigo nosso próprio
bem-estar:
"Os direitos podem ser vistos como maneiras de economizar, maneiras
de poupar o custo da batalha.... Os direitos guiam o comportamento dentro de
uma comunidade dominante. Entre um grupo de pessoas que ganharam e que estão no
processo de colher (ou pilhar), os direitos limitam as lutas contra-produtivas
dentro do grupo. Os direitos guiam cada membro individual do grupo para que
busquem satisfazer seus desejos colhendo de fora do grupo ao invés de outro
membro dentro do grupo.... Se você acredita na explicação evolutiva da formação
da vida, então você pode observar que nós, os humanos presentemente
sobrevivendo, nos encontramos aqui como o ponto culminante atual de uma longa
história de luta evolutiva. E se você acredita na minha tese, de que há uma
sobrevivência do mais apto competitiva entre os sistemas de direitos, então
você pode observar que nós, a Civilização Ocidental, nos encontramos aqui, numa
posição que parece dominar outras culturas, porque somos os beneficiários da luta
evolutiva e da seleção de direitos. ...Como eu estou apresentando, os direitos
minimizam a violência e o derramamento de sangue entre nós humanos que
dominamos o ecossistema em que vivemos. Argumentar que os direitos têm uma base
diferente é argumentar, creio eu, contra a nossa dominância e a favor de mais
violência e derramamento de sangue."
("Might Makes Right",
pp. 15-16)
Mas claro que as regras que encorajam "colher de fora do grupo",
permitindo assim que uma sociedade "domine outras culturas", vai
"minimizar a violência e o derramamento de sangue" com sucesso apenas
dentro do grupo. Sociedades bem-sucedidas
têm uma longa história de exploração e mesmo extermínio daqueles que estão fora
do grupo; testemunhe o tratamento que africanos, asiáticos e nativos americanos
receberam nas mãos dos poderes colonialistas Ocidentais. Rich observa (p. 16)
que culturas poderosas podem se permitir ser mais generosas ao conceder
direitos a seus vizinhos mais fracos. É verdade, e às vezes elas o fazem. Mas
culturas poderosas podem também se
permitir escravizar ou assassinar seus vizinhos mais fracos sem medo de
represálias e às vezes eles fazem isso ao invés. A civilização é largamente um
processo de aumentar as opções das pessoas (avanços na tecnologia e avanços na
liberdade política podem ambos ser vistos sob essa luz); mas infelizmente, uma
das coisas que se é mais capaz de fazer uma vez que suas opções aumentaram é
diminuir as opções de seus vizinhos.
Mas, deixando de lado a questão da violência para com os de fora, pelo
menos é verdade que a sociedades dominantes conseguem minimizar a violência e a
coerção dentro do grupo? Não
necessariamente. Uma vez que uma certa sociedade atinge uma posição de
dominância sobre outras culturas, ela tende a esmagar o processo competitivo
que a levou ao poder (dominando os concorrentes); e uma vez que a pressão
competitiva é diminuída, a presunção de que as práticas da sociedade dominante
gozam da benção da seleção evolutiva deve inevitavelmente ser enfraquecida.
O status de tal sociedade é mais como o de uma empresa cuja eficiência e
inovação fazem seu sucesso no livre mercado — mas que então usa seus recursos
recém-descobertos, os frutos do sucesso competitivo, para fazer lobby com o
governo a favor de leis que a isolam da concorrência. Uma vez que tais leis são
aprovadas, os incentivos da empresa mudam, e ela se torna ineficiente e
preguiçosa porque agora ela pode se permitir. Seria um erro, então, assumir que
a dominância continuada da empresa faz de sua estrutura administrativa top-down, design de produto
sem imaginação e falta de capacidade de resposta aos clientes, um modelo útil
para os futuros empresários imitarem.
Em suma, a dominância de uma sociedade não garante, e pode mesmo minar,
sua eficiência em qualquer área em particular, incluindo a minimização da
violência e do derramamento de sangue. De fato, o seguinte padrão é comum
através da história:
1.
Um avanço na civilização permite que os membros
do Grupo A expandam suas opções.
2.
Membros do Grupo A escolhem usar suas opções expandidas
para diminuir as opções do Grupo B.
3.
A necessidade do Grupo A de manter seu controle
sobre o Grupo B resulta numa diminuição das opções dos membros do Grupo A
também; eles perdem sua liberdade, e sua cultura estagna.
Manter o Grupo B em sujeição é uma proposta custosa; requer conscrição,
aumentos de impostos e talvez um complexo industrial-militar, todos fardos que
acabarão sendo arcados pela população do Grupo A. Ficar de olho em potenciais
encrenqueiros do Grupo B exige um sistema de vigilância e documentação que os
governantes do Grupo A podem usar mais tarde contra seus próprios cidadãos.
Aqueles dentro do Grupo A que criticarem o tratamento do Grupo B ameaçam a
dominância de A sobre B e podem se encontrar sujeitos à censura. Transações
econômicas livres entre membros de A e membros de B podem resultar em melhoras
na situação econômica de B que o empoderaria a resistir à autoridade de A,
então a liberdade dos membros de A para negociar com os membros de B também
necessitará ser cerceada. E assim por diante.
No mundo antigo, Esparta e Roma fornecem exemplos paradigmáticos dessa
dinâmica em funcionamento. Ambos começaram como centros vigorosos e
progressistas de comércio e cultura, mas a necessidade de manter o controle
sobre as populações subordinadas (os Hilotas no caso de Esparta; o Império no
caso de Roma) fizeram de Esparta um cruel coletivo militar e de Roma um estado
policial burocrático e ditatorial.
Mas há exemplos mais perto de casa também. Considere o caso da Guerra
Civil Americana. Por séculos, os colonos brancos estiveram usando as opções
expandidas legadas a eles pelo progresso da civilização Ocidental para manter
os negros em servidão. Então, a Revolução Americana trouxe um aumento dramático
de liberdade aos brancos por toda a colônia. Os brancos do Norte, ainda
aproveitando a onda de fervor libertário revolucionário, na verdade, usou suas
recentemente expandidas opções para aumentar
as opções dos negros, decretando uma série de leis que por fim levaram à
abolição da escravatura no Norte. Mas no Sul, mais agrário, onde a escravidão
estava mais profundamente arraigada, os brancos estavam menos seduzidos pela
causa da emancipação (embora eles frequentemente falassem bastante sobre isso).
Desenvolvimentos econômicos e políticos posteriores consolidaram o apego
dos brancos sulistas à escravidão ainda mais firmemente. Especificamente, a
invenção de Eli Whitney e Katherine Greene do descaroçador de algodão tornou a
agricultura de plantação mais lucrativa, enquanto que o acordo de três-quintos
da Constituição (que tratava cada escravo como três quintos de uma pessoa para
propósitos de representação) deu aos estados escravocratas um bloco eleitoral
desproporcional no Congresso e, assim, um incentivo a mais para continuar a
escravidão. A fim de tirar vantagem das opções econômicas expandidas oferecidas
pelo descaroçador de algodão e das opções políticas expandidas oferecidas pelo
acordo de três-quintos, os brancos nos estados escravocratas precisavam se
certificar de que as opções dos negros se mantivessem severamente limitadas.
Mas para manter o sistema escravocrata, o Sul teve que fugir dos
princípios libertários de Jefferson e da revolução. Os governos sulistas
acharam necessário impor restrições cada vez maiores sobre as liberdades
econômicas e civis dos brancos a fim
de manter os negros em sujeição. Muitos estados tornaram ilegal que senhores de
escravos libertassem seus escravos; e logo não havia qualquer liberdade de
expressão ou imprensa para os brancos que defendiam a abolição. Em alguns casos,
discursar contra a escravidão era punível com a morte.
Quando a secessão finalmente veio e foi estabelecida a Confederação, a
supressão das liberdades dos brancos ficou ainda maior, já que o governo
central, em nome da necessidade militar, estendeu seus controles a todos os
aspectos da vida. Passaportes internos eram exigidos para viajar, direitos
civis tradicionais como habeas corpus
foram suspensos, a moeda foi desvalorizada e a maioria dos setores da economia
foi nacionalizada. Em sua busca desesperada para manter seu controle sobre os
negros, os brancos Sulistas se viram obrigados a estabelecer uma ordem política
autoritária que acabou por tomar sua própria liberdade também.
Esta fuga dos princípios da Revolução Americana na prática política foi acompanhada por uma deterioração paralela da teoria política também. Durante as
décadas de 1810 e 1820, o grande porta-voz intelectual do Sul — o defensor dos
interesses agrários contra a regulamentação neomercantilista federalista — era
John Taylor of Caroline
(autor de Arator, Tyranny Unmasked e An Inquiry into the Principles of Government),
cuja perspectiva política era profundamente jeffersoniana e libertária - com a
previsível exceção de um enorme ponto cego sobre a escravidão. Taylor se
recusava enfrentar a tensão entre os princípios da Declaração da Independência
e a instituição da escravidão; mas intelectuais Sulistas posteriores
enfrentariam essa tensão — e a resolveriam da maneira errada.
Nas décadas de 1830 e 1840, o defensor ideológico dos interesses Sulistas
não era John Taylor, mas John C. Calhoun (autor de A Disquisition on Government e A Disquisition on the Constitution).
A seu favor, Calhoun era um feroz oponente do poder centralizado e propôs
ideias bastante engenhosas para refrear seu crescimento (e.g., poder de veto
para facções minoritárias); nesta medida, Calhoun estava inequivocamente na
tradição jeffersoniana. Mas a necessidade de evitar as implicações radicais
dessa tradição para a legitimidade da escravidão levou Calhoun a repudiar os
princípios de 76. Os direitos humanos, Calhoun mantinha, repousam sobre a
tradição legal, não sobre as Leis da Natureza — e o exercício da autoridade
política não depende do consentimento dos governados para sua legitimidade, mas
é uma característica natural e inevitável da condição humana. Ao jogar pela
janela a Declaração da Independência, Calhoun foi capaz de desenvolver uma
ideologia política Sulista que poderia acomodar a instituição da escravidão.
(Os negros não eram uma das facções
minoritárias a quem Calhoun contemplava oferecer direitos de veto!)
O processo de decadência não parou por aí. Na década de 1850, o novo
porta-voz ideológico do Sul era o arqui-comunitário George Fitzhugh (autor de Cannibals All! or Slaves Without Masters e Sociology for the South, or the Failure of Free Society). No sistema de Fitzhugh, a
necessidade de justificar a escravidão resultou em um ataque em larga escala à
tradição jeffersoniana em todos os seus aspectos; todo vestígio de
libertarianismo foi metodicamente extirpado. Combinando a nostalgia da direita
por um passado tradicionalista feudal idílico com o desejo da esquerda por um
futuro socialista cientificamente organizado, Fitzhugh defendia a Sociedade do
Status — uma visão hierárquica e orgânica da sociedade em que cada pessoa tem
um papel social atribuído que carrega tanto deveres compulsórios de obediência
ao seu superior quanto uma garantia de apoio, segurança e fiscalização
paternalista desses mesmos superiores. A escravidão negra, na visão de
Fitzhugh, era apenas um caso particular do princípio geral que nenhuma pessoa,
branca ou negra, tem o direito de ser o mestre de sua própria vida.
Nem todos os defensores da escravidão aceitavam a filosofia de Fitzhugh,
claro; mas a maneira geral de pensar que seus trabalhos representavam estava se
tornando generalizada na sociedade sulista. Em 1862, o jornal Confederado De Bow's Review estava
alardeando o slogan "O Estado é tudo, o indivíduo nada". (Algumas das
pessoas que vestem a bandeira confederada em suas jaquetas podem querer
refletir sobre essa.) A necessidade da cultura branca sulista de manter a
dominação sobre sua população negra a levara a adotar princípios que acabaram
ameaçando a liberdade de seus próprios membros brancos.
Não era inevitável que os brancos sulistas escolhessem fechar seus olhos
para a injustiça da escravidão. Esta era uma escolha a ser feita por eles, e
eles a fizeram. O que era inevitável, ou quase inevitável, era que essa
escolha, uma vez feita, teria consequências onerosas — que ela teria uma
influência corruptiva tanto sobre suas instituições quanto sobre seus ideais.
Quando nos vemos numa posição de dominação sobre os outros, não podemos nos
permitir desculpar nossa autoridade alegando que a luta pela sobrevivência nos
favoreceu. Não podemos nos permitir seguir Calhoun e Fitzhugh em rejeitar a Lei
Natural de que todos os seres humanos têm direito a igual respeito,
independente de quem recebeu a mão vencedora. Pois se o fizermos, corremos o
risco de destruir não apenas a liberdade deles, mas, no longo prazo, a nossa
própria.
Eu não quero estar dando à União um passeio livre aqui. Na Guerra Civil, ambos, o Norte e o Sul, deram as costas
de forma decisiva aos ideais pelos quais se lutou a Revolução Americana21.
O desejo do Norte de subjugar o Sul teve um efeito sobre o Norte análogo ao
efeito que o desejo do Sul de preservar a escravidão teve sobre o Sul. Mais
autoridade foi centralizada em Washington; as liberdades civis eram
rotineiramente violadas; o imposto de renda e o recrutamento administrado
federalmente foram introduzidos; e um culto sinistro à união nacional se
espalhou pela consciência americana. O resultado foi um governo federal com
vastos novos poderes — um Leviatã incipiente que rapidamente se provou um
prazer muito saboroso para não ser capturado pela elite corporativa. E assim
fomos deixados, ao fim do século XX, com um crescente estado policial americano
cujas vítimas primárias, ironicamente, são os mesmos negros cuja liberação
deveria ser a justificativa moral da vitória da União.
A moral dessa longa digressão histórica é que, quando uma sociedade
adquire uma posição dominante, os prospectos para a liberdade podem se tornar
não menos, mas mais precários, primeiro para os vizinhos da sociedade e segundo
(como um resultado da necessidade de manter esses vizinhos em sujeição) para os
próprios membros da sociedade. Consequentemente, estamos confiando num caniço
fraco se dependermos do processo de evolução cultural para garantir a liberdade
para nós mesmos e para nossos vizinhos. Se quisermos que o meme da liberdade
prevaleça, devemos tomar a iniciativa e trabalhar para propagá-lo, tomando como
nosso guia a estrela polar da Lei Natural. Δ
Notas
[1] Vale a pena notar que há outro
sentido comum de "lei natural", de acordo com o qual as leis causais
básicas que governam o universo são chamadas de leis naturais. Esses dois
conceitos são distintos. Na concepção causal, a lei natural é descritiva; ela diz o que realmente
acontece. Mas a Lei Natural, no sentido em que estou interessado, é normativa; ela diz o que deveria acontecer.
Mas esses dois sentidos às vezes estão ligados. Por exemplo, é uma lei
natural, no sentido descritivo, que se você puser sua mão no fogo, você terá
uma sensação que você não vai gostar; e, na medida em que se toma isso como uma
razão para não pôr sua mão no fogo, a conexão causal pode também ser contada
como uma Lei Natural no sentido normativo.
O termo "lei natural" ganhou uma quantidade incomum de
notoriedade ultimamente por causa da crescente proeminência do Natural Law Party,
e alguns podem se perguntar qual a relação, se existe, entre o tipo de Lei
Natural que estou defendendo e o tipo de que o Natural Law Party está falando. Na recente
campanha dos EUA, representantes do Natural
Law Party comentaram que eles concordavam com os fundadores da
América que a política pública deveria se baseada na Lei Natural. Agora, os
fundadores da América foram profundamente influenciados por teóricos da Lei
Natural como Cícero e John Locke e, quando eles falavam sobre Lei Natural,
normalmente (embora nem sempre — eles eram fãs da física Newtoniana também)
eles queriam dizer o sentido normativo, como quando a Declaração de
Independência diz em seu preâmbulo que as "Leis da Natureza e do Deus da
Natureza" autorizam os colonos americanos a se separarem do Império
Britânico. Eu não sei muito sobre as crenças do Natural Law Party, mas dada sua ênfase em
"soluções cientificamente comprovadas" e sua repetida declaração de
que "o governo deveria ser baseado no que funciona", minha impressão
é que eles estão, em vez disso, falando primariamente sobre a lei natural no
sentido descritivo e que o que eles querem dizer é que a política pública
deveria ser moldada à luz de informações precisas sobre como o mundo funciona.
Então, nessa medida, eu não acho que o Natural
Law Party está falando sobre a Lei Natural no mesmo sentido que eu
quero dizer aqui.
Por outro lado, parece haver uma dimensão religiosa — especificamente uma
influenciada pelo Hinduísmo — na perspectiva do Natural Law Party (seu fundador e candidato
presidencial recorrente, John Hagelin, dá aulas na Maharishi University em Fairfield, Iowa, e tais
práticas espirituais como meditação transcendental e o voo do yoga são centrais
às propostas políticas do partido), então é possível que algumas das
observações dos candidatos do Natural Law
sobre a necessidade de pôr nosso sistema político em conformidade com a Lei
Natural deveriam ser interpretadas como um chamado à reforma de nosso sistema à
luz de uma moral inerente ao universo
(a existência de tal ordem, Dharma, é um princípio fundamental do Hinduísmo),
caso no qual a perspectiva do Natural Law Party contaria como uma versão da teoria normativa da Lei
Natural afinal. Mas, mais uma vez, meu conhecimento sobre o Natural Law Party é
demasiado superficial para que eu ofereça qualquer interpretação com confiança.
[2] Descartes acha que tem uma saída
para isso, que ele pode parar a regressão com algumas crenças (e.g., minha
crença de que eu existo) que são autoevidentes e não estão sujeitas à dúvida.
Mas o princípio que começa a regressão — o princípio cartesiano de que a crença
só está justificada quando podemos excluir toda possibilidade de erro — não
parece ser uma das crenças que são auto-evidentes e não sujeitas à dúvida,
então ainda não está claro por que deveríamos acreditar nela.
[3] Vale a pena notar, no entanto, que
há algumas versões da teoria da Lei Natural que veem a Lei Natural como um
conjunto auto-impositivo de regras e, assim, veem os direitos naturais como
direitos de facto de um tipo
estranho, com o universo, em vez da sociedade, realizando a imposição. De acordo
com essas visões, as violações da Lei Natural serão punidas — talvez por Deus
(você será enviado ao Inferno por transar com a pessoa errada), talvez pela
natureza (se você quebrar a Lei Natural contra caminhar para fora de um
penhasco, você será punido com morte ou ferimento), talvez pela Lei do Carma
(se você pecar nesta vida, você será punido sendo reencarnado como algo nojento
em sua próxima vida), talvez pelo próprio fato de ser uma pessoa pior (se você
age perversamente, sua punição é sua própria condição perversa, que é bem menos
desejável do que a condição de ser virtuoso; como Sócrates coloca, a pior
punição possível é ter uma alma corrompida). E se violações dos direitos
naturais são punidas com segurança, então esses direitos naturais começam a
parecer mais com direitos de facto,
ao menos na medida (frequentemente mínima, ai de mim) em que o prospecto de tal
punição realmente detenha violações de direitos.
Essa noção de Lei Natural como auto-impositiva ainda adiciona um elemento
normativo sobre o elemento de facto,
no entanto. É uma coisa dizer que se você fizer X, você receberá a punição Y. É
outra coisa dizer que a punição Y é tão ruim que não vale a pena fazer X. Este
último é um julgamento normativo; ele
diz que a ruindade de Y pesa mais do que a bondade de X. Isso é algo sobre o
que nenhuma teoria meramente de facto
está qualificada para emitir juízo. Então, mesmo que todos os direitos
normativos viessem a ser uma espécie de direitos de facto, seu status como direitos normativos não seriam redutíveis a seu status como direitos de facto.
[4] Por outro lado, há mais uma
evidência para (a). Notando que nossos ancestrais e nossa civilização
sobreviveram por causa de seu sucesso na luta competitiva pela existência, Rich
diz: "Se você argumenta em favor de um modo diferente de seleção, você
argumenta contra o processo que trouxe eu e você aqui. Nós desfrutamos da vida,
da saúde e do lazer de discutir esse assunto por causa do processo que nos
trouxe aqui" (p. 16). Rich pode ser interpretado como dizendo que o valor
que colocamos em nossas próprias vidas e bem-estar nos compromete a valorizar o triunfo do poderio superior, porque é
apenas através do último tendo prevalecido que somos capazes de desfrutar do
anterior — e que, portanto, devemos sempre torcer pelo poder mais forte, mesmo
quando esse poder se opõe a nós. Mas eu divido que essa passagem suportará o
peso de tão forte interpretação.
[5] Incidentalmente, isso é o que está
errado com o argumento (parodiado no subtítulo do livro de Wilson) apresentado
por alguns teóricos da Lei Natural que condenam a contracepção alegando que a
reprodução é o fim natural das relações sexuais. Nossos genes nos deram um
ímpeto sexual sobre o fundamento estratégico de que seres com um impulso sexual
têm mais probabilidade de se reproduzir. Então a reprodução era a meta de
nossos genes ao nos dar a capacidade
do desejo sexual, mas o fim natural das relações sexuais consideradas em si
mesmas são as relações, não a reprodução.
[6] Ser humano não é uma condição
tudo-ou-nada, em vez de uma questão de grau? Bem, eu responderia que a
humanidade é como tamanho. Em um sentido, o tamanho é uma condição
tudo-ou-nada; ou algo tem um tamanho ou não. Ainda assim, entre as coisas que
tem um tamanho, algumas têm um tamanho maior que outras. Do mesmo modo, em um
sentido ser humano é uma condição tudo-ou-nada; ou uma vida é humana (i.e., se
é a vida de um ser humano) ou não — mas entre as vidas humanas, algumas vidas
exemplificam essa humanidade em uma maior medida do que outras.
[7] Para mais discussão sobre esse
ponto, veja os meus "Punishment
vs. Restitution" (Formulations,
Vol. I, No. 2 (Winter
1993-94)) e "Slavery Contracts and Inalienable Rights" (Formulations,
Vol. II, No. 2 (Winter
1994-95)). [Nota do Tradutor: Os textos mencionados estão disponíveis em <http://liberacaohumana.blogspot.com.br/2014/02/punicao-vs-restituicao-uma-
formulacao.html> e <http://liberacaohumana.blogspot.com.br/2014/05/contratos-de-escravidao-
e-direitos.html>, respectivamente.
[8] Eu estou em dívida com Nicholas
Sturgeon, Richard Boyd e Robert Adams por muitas das ideias que se seguem.
[9] A fraseologia de Wilson aqui sugere
que ele é um adepto da antiga noção positivista do verificacionismo, que mantinha que uma afirmação só é significativa
se ela puder ser testada empiricamente. Wilson não diz como ele responderia à
objeção padrão ao verificacionismo, a saber, que por esse critério a doutrina
verificacionista é, ela mesma, sem sentido. (Outra cura para o verificacionismo
é considerar como você reagiria se estivesse escutando criaturas de outra
dimensão que fossem incapazes de lhe detectar e ouvindo-as concluir que a
hipótese de sua existência não era apenas inverossímil (o que seria justo), mas
sem sentido).
[10] Eu digo "provavelmente”
porque a medida de dissidência dentro das ciências naturais é difícil de
avaliar, dado que tal dissidência é tornada invisível por nossos costumes
sociais de uma maneira que a dissidência dentro do campo da ética não é. Por
exemplo, se um autoproclamado cientista argumenta que a terra é plana ou que as
Montanhas Rochosas são uma escultura de vanguarda esculpida por visitantes de
Vênus, nós recusamos continuar chamando ele de cientista ou conceder que o que
ele está fazendo é ciência; mas se um autoproclamado eticista argumenta que a
raça humana é um câncer sobre a terra e deveria ser aniquilada, então mesmo se
discordarmos de sua posição, nós ainda concedemos a ele o título de eticista e
dizemos que ele está fazendo ética. Como resultado, a discordância sobre
questões científica é tornada menos visível do que a discordância sobre
questões éticas. (O verdadeiro teste de "ciência genuína" na nossa
cultura, suspeito eu, é se ela pode produzir tecnologia militar para o
governo.)
[11] Eu digo isso com cuidado, visto
que alguns dos outros escritos de Wilson sugerem um ceticismo sobre o conceito
de realidade objetiva como tal. Ainda assim, ele frequentemente escreve como se
pensasse que afirmações sobre interações causais no espaço e no tempo tivessem
um tipo de objetividade nelas que as afirmações normativas não têm.
[12] Em particular, a seguinte provisão
parece fazer tudo que precisamos que a condição de confiabilidade faça, sem
excluir o conhecimento moral: "A crença não deve depender, para sua
justificativa, da presença de crenças que são falsas ou da ausência de crenças
que são verdadeiras".
[13] Estritamente falando, minha
própria posição não é nem consequencialista nem deontológica, mas da ética das
virtudes; mas na maioria das questões, e certamente na presente questão, ela
chega mais perto do lado deontológico e então eu ignorarei as diferenças aqui
(especialmente uma vez que Immanuel Kant, usualmente considerado como o teórico
deontológico paradigmático, conta como um eticista das virtudes a meu ver, já
que ele justifica as regras morais em termos da atitude virtuosa que elas
expressam, em vez de justificar a atitude virtuosa em termos de ser uma
disposição para obedecer a regras certas. Para mais sobre estas distinções,
veja os meus "Slavery
Contracts and Inalienable Rights" (Formulations,
Vol. II, No. 2 (Winter
1994-95)) e "Inalienable Rights and Moral Foundations" (Formulations, Vol. II, No. 4
(Summer 1995). [N. do T.: Vide nota 7 para o link em português do primeiro
texto.]
[14] Outra maneira de colocar a objeção
é que se nossas atitudes morais são o resultado da evolução, então teríamos as
atitudes morais que temos, quer elas refletissem com precisão uma verdade moral
transcendente ou não, caso em que as crenças morais falham em satisfazer o
critério para o conhecimento, i.e., a conexão entre nossa crença de que algo é
errado e isso realmente ser errado é puramente acidental.
[15] Na verdade, eu estou intrigado com
o exemplo da beleza também. Parece funcionar apenas se limitarmos a beleza ao
caso estrito da atratividade sexual. Uma explicação evolutiva é bem plausível
quando se trata da preferência do Rich por fêmeas humanas sobre fêmeas de
barata. Mas se alguém acha a música de Mozart mais bonita do que a de Haydn, é
menos óbvio que uma explicação evolutiva deva ser iminente. Como seria uma
explicação dessas?
[16] Por favor, note que estes são
apenas exemplos; eu não estou fazendo quaisquer alegações sobre como a evolução
humana realmente ocorreu. Na verdade, muitas de nossas tendências mais básicas
podem ter evoluído quando nossos ancestrais ainda eram herbívoros. E, em
particular, eu duvido que nossos ancestrais mais primitivos estavam inclinados
a acreditar em qualquer coisa tão elevada como (1); de fato, eles podem bem ter
se agarrado a uma ética de cooperação dentro do grupo e de indiferença ou hostilidade
àqueles fora do grupo. Em caso afirmativo, então a generalizada atitude moderna
de que a cooperação deveria se estender (pelo menos em algum grau) a todos os
camaradas humanos pode ser, em parte, o resultado da compreensão moral, o
reconhecimento de que as diferenças entre os de dentro e de fora do grupo não
são significantes o suficiente para justificar tal disparidade em tratamento.
[17] Para
discussão, vide "The
Return of Leviathan" (Formulations,
Vol. III, No. 3 (Spring 1996)).
[18] Deixe-me aproveitar esta
oportunidade para recomendar a qualquer um interessado no assunto o iluminador
artigo de David Ramsay Steele "Hayek's
Theory of Cultural
Group Selection" (Journal of Libertarian Studies,
Vol. VIII, No. 2 (Summer 1987), pp. 171-195), uma das melhores discussões que
já vi sobre os usos e abusos dos argumentos evolutivos culturais.
[19] No círculo mais baixo do Inferno (Inferno, Canto XXXIV), as três
mandíbulas de Satã estão para sempre roendo os três maiores traidores de todos
os tempos: Judas (o traidor de Cristo) — e Brutus e Cassius (os traidores de
César). Isto de um autor supostamente cristão, em adulação ao sistema imperial
romano sob cujas leis Cristo foi executado e milhares de cristãos primitivos
foram martirizados! A única indicação de que o crime de Judas poderia ser um
nível mais sério do que o dos dois tiranicidas é que Judas tem sua cabeça
dentro da boca de Satã e suas pernas para fora, enquanto Brutus e Cassius estão
numa posição, presumivelmente mais confortável, de cabeça para fora e pernas
para dentro. (Ironicamente, o florescimento cultural europeu que produziu
artistas como Dante — e lançaram as bases para a Renascença e para a Revolução
Científica — parece ter sido largamente o resultado da descentralização e
fragmentação política do Ocidente, refletindo precisamente a medida em que a
sociedade de Dante tinha (felizmente) falhado
em assimilar o meme centralista romano.)
[20] A maioria dos edifícios clássicos
de mármore do governo que parecem tão definidores de Washington, D.C., data não
do tempo da Fundação, mas sim da Era Progressista (aproximadamente o final do
século XIX e começo do século XX), quando o romance da América com o fascismo e
o imperialismo estava apenas entrando em pleno funcionamento.
[21] Defensores do Norte gostam de
pensar que a Guerra Civil foi primariamente sobre a escravidão, porque isso põe
a União às luzes mais atraentes. Defensores do Sul gostam de pensar que a
Guerra Civil não teve quase nada a ver com a escravidão, porque isso põe a
Confederação às luzes mais atraentes. A verdade real lança as luzes menos
lisonjeiras possíveis sobre cada lado: a preservação da escravidão foi central
para os motivos do Sul para seceder, mas a eliminação da escravidão foi apenas
periférica para os motivos do Norte para invadir. Para uma análise libertária
penetrante que foca nos aspectos políticos, econômicos e culturais em vez de
aspectos militares e evita a tentação de elogiar tanto o Norte quanto o Sul,
vide Emancipating Slaves, Enslaving Free Men: A History of the American Civil War (Chicago: Open Court,
1996) de Jeffrey Rogers Hummel. (Os ensaios bibliográficos sozinhos valem o
preço do livro.)
John Locke sobre a Lei Natural
O primeiro argumento pode ser feito a partir da
evidência de Aristóteles, na Ética a Nicômaco, Livro I, capítulo 7, onde ele
diz que "a função apropriada do homem é a atividade da alma de acordo com
a razão"; pois, uma vez que provara através de vários exemplos que há uma
função apropriada para cada coisa, ele questionou qual é essa função apropriada
no caso do homem; isto ele procurou através de uma descrição de todas as
operações das faculdades tanto vegetativas quanto sencientes, que são comuns
aos homens juntamente com os animais e as plantas. Ele finalmente chega à
conclusão adequada de que a função do homem é a atividade de acordo com a
razão; consequentemente o homem deve realizar aquelas ações que são ditadas
pela razão. Similarmente no Livro V, capítulo 7, em sua divisão da lei entre
civil e natural, ele diz que "esta lei natural é aquela lei que tem em
todo lugar a mesma força" ...
Nesse ponto, alguns objetam à lei da natureza, alegando
que tal lei não existe absolutamente, uma vez que não é descoberta em nenhum
lugar; pois a maior parte da humanidade vive como se não houvesse qualquer princípio
norteador da vida em absoluto... se houvesse, de fato, uma lei da natureza,
conhecível pela luz da razão, como ocorre de que todos os homens que são
dotados de razão não a conheçam?
Respondemos: ...se um homem cego não pode ler um aviso
mostrado publicamente, não se segue que uma lei não existe ou não foi
promulgada, nem se for difícil para alguém que tem uma visão deficiente lê-la;
nem se alguém que está ocupado com outros assuntos não tem tempo, nem se não é
do gosto do ocioso ou do vicioso levantar seus olhos para o aviso público e
aprender com ele a declaração de seu dever. Eu admito que a razão foi concedida
a todos pela natureza, e afirmo que existe uma lei da natureza, conhecível pela
razão. Mas não se segue necessariamente disso que ela é conhecida por cada um e
todos, pois alguns não fazem uso algum desta luz, mas amam a escuridão ... Mas
o próprio sol não revela o caminho a ninguém além daquele que abre seus olhos ....
Alguns homens que são nutridos de vício mal distinguem entre bem e mal, uma vez
que ocupações más, ficando fortes com a passagem do tempo, os levaram a
estranhas disposições, e maus hábitos corromperam seus princípios também. Ainda
outros, por causa de um defeito da natureza, têm uma avidez de espírito
demasiado fraca para permiti-los descobrir esses segredos escondidos da
natureza. De fato, quão raro é o homem que se rende à autoridade da razão nos
assuntos da vida cotidiana ou em coisas facilmente conhecidas, ou que segue a
orientação da razão? Pois os homens são frequentemente afugentados de seu curso
apropriado pela arremetida de seus sentimentos ou por sua indiferença e falta
de preocupação, ou conforme eles são corrompidos por suas ocupações habituais e
seguem passivamente não o que a razão dita, mas o que suas paixões baixas
incitam neles. ...
O que é que devemos fazer podemos inferir... da
constituição do próprio homem e da aparelhagem das faculdades humanas, uma vez
que o homem não é feito por acidente, nem lhes foram dadas essas faculdades,
que tanto podem quanto devem ser exercidas, para não fazer nada. Parece que a
função do homem é o que ele está naturalmente equipado para fazer; isto é, uma
vez que ele descubra em si mesmo o sentido e a razão e perceba a si mesmo
inclinado e pronto para realizar os trabalhos de Deus, como ele deve, e para
contemplar seu poder e sua sabedoria nestes trabalhos... Então, ele perceberá
que ele está impelido a formar e preservar uma união de sua vida com a de
outros homens, não apenas pelas necessidades e indispensabilidades da vida, mas
ele percebe também que é guiado por uma certa propensão natural a entrar na
sociedade e está equipado para preservá-la pelo dom da fala e do comércio da
linguagem. E, de fato, não há necessidade de eu enfatizar aqui a que grau ele é
obrigado a preservar a si mesmo, uma vez que ele é impelido a esta parte de seu
dever ... por um instinto interno...
— Questions on the Law of Nature
...devemos
considerar em que estado todos os homens estão naturalmente, e esse é um estado
de perfeita liberdade para ordenar suas ações e dispor de suas possessões e
pessoas conforme lhes aprouver, dentro dos limites da lei da natureza, sem
pedir licença ou depender do desejo de qualquer outro homem.
Um estado também de igualdade, em que todo o poder e
jurisdição são recíprocos, ninguém tendo mais do que o outro: não havendo nada
mais evidente de que criaturas da mesma espécie e categoria, promiscuamente
nascidas para as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas
faculdades deveriam também ser iguais umas entre as outras, sem subordinação ou
sujeição...
O estado de natureza tem uma lei da natureza para
governá-lo, que obriga a todos. E a razão, que é essa lei, ensina a toda a
humanidade que vá consultá-la que, sendo todos iguais e independentes, ninguém
deve fazer mal à vida, à saúde, à liberdade ou às posses um do outro. ...sendo
providos com tais faculdades, compartilhando tudo em uma comunidade da
natureza, não pode ser suposta qualquer subordinação entre nós que possa
autorizar-nos a destruir uns aos outros, como se fossemos feitos um para o uso
do outro...
Pois no estado de natureza ... um homem [pode] fazer
tudo o que ele achar conveniente para a preservação de si próprio e de outros
dentro da permissão da lei da natureza; por qual lei, comum a todos eles, ele e
todo o resto da humanidade são uma comunidade, constituindo uma sociedade
distinta de todas as outras criaturas. E, não fosse a corrupção e a crueldade
que degenera o homem, não haveria necessidade de nenhuma outra; nenhuma
necessidade que os homens se separassem dessa grande comunidade natural e,
através de acordos positivos, se combinassem em associações menores e
divididas.
— Two Treatises of
Government
A mãe de Roderick T. Long cometeu o erro de
ensinar-lhe em tenra idade a prova de Descartes de sua própria existência.
Roderick nunca se recuperou dessa infecção precoce e demonstra sintomas
perturbadores do meme filosófico ainda hoje. Tragicamente, ele agora busca
infectar outros, através de seu cargo de professor na Universidade da Carolina
do Norte.
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