A
Natureza da lei
Parte
III: Lei vs. Legislação
por
Roderick
T. Long
Sócrates sobre a Lei
Em dos diálogos filosóficos de Platão, chamado Minos, Sócrates pede a um camarada anônimo uma definição de lei. O
camarada aquiesce, oferecendo a seguinte definição: "A Lei é o que é
legislado". Mas Sócrates objeta: assim como a visão não é o que vemos, mas sim aquilo através do que vemos, assim também a lei
não é o que é legislado, mas aquilo através do que legislamos. O camarada
aceita esta crítica e retrata sua definição. Isso pode nos surpreender:
certamente a lei é o produto da legislação, não vice-versa. Mas ao dizer que a
lei é aquilo através do que legislamos,
Sócrates está, na verdade, apelando a uma ideia muito antiga e profundamente
arraigada, como veremos.
A segunda definição do camarada é essa: "A Lei é o julgamento do
estado". Mas através de repetido questionamento, Sócrates rapidamente
prova que essa definição se choca com outras coisas em que o camarada acredita;
dessa maneira o camarada está comprometido com uma tríade inconsistente de
crenças:
●
A Lei é o julgamento do estado.
●
A legalidade é justa.
●
O julgamento do estado às vezes é injusto.
Se o camarada aceitar quaisquer
duas, ele deve rejeitar uma terceira.
Claramente, o camarada de Sócrates está atraído tanto por uma concepção
positivista da lei (de acordo com a qual a lei é o que quer que o governo diga,
seja justo ou injusto) quanto por uma concepção moralizada da lei (de acordo
com qual a lei é inerentemente justa); e Sócrates explora essa tensão.
Então Sócrates sugere uma revisão: "A Lei é o julgamento correto do estado". Dessa maneira,
apenas aqueles julgamentos do estado que estão corretos contam como leis
genuínas. Isso pode parecer estranho para nós; quando os decretos do estado
estão incorretos, tendemos a dizer que eles são leis ruins ou leis injustas,
não que eles não são leis de forma alguma. Ser uma lei é um fato puramente descritivo
sem nenhum peso avaliativo: qualquer coisa que a legislatura invente, seja bom
ou mau, é uma lei ipso facto.
Por que alguém pensaria diferente? Bem, considere a distinção entre poder e autoridade. Qual a diferença entre uma ordem emitida por uma legislatura,
e uma ordem emitida por um assaltante com uma arma? Ambos têm o poder de impor suas demandas; mas presume-se
que a legislatura, ao contrário do assaltante, tenha autoridade. Ainda assim a autoridade da legislatura é condicional;
se o Congresso viesse a aprovar um projeto de lei proibindo o Metodismo, ele
estaria excedendo sua autoridade constitucional e, então, seu decreto não teria
força de lei. Mas se o Congresso deriva sua autoridade da Constituição, de onde
a Constituição obtém a sua autoridade?
Nesse ponto só podemos concluir que a autoridade da Constituição, se existir,
deve ser moral em caráter, derivando da justiça natural. Apenas algo com peso
normativo intrínseco poderia servir como o Autorizador Não-Autorizado que
transforma todos os decretos menores em leis.
Mas Sócrates não precisa poder contar puramente com um argumento desse
tipo. Ele também tem uma importante tradição histórica a seu lado. A concepção
de lei de Sócrates é sem dúvida a historicamente dominante, e a nossa, positivista, uma mera anomalia; o conceito de
lei como um padrão objetivo a ser declarado
ou descoberto (em vez de criado) por
legisladores foi a noção dominante, tanto na prática legal, quanto na filosofia
jurídica, pela maior parte da história - chamado de rta ou dharma na Índia, ma'at no Egito, e torah na Judeia. É por isso que Sócrates pode falar
incontroversamente da lei não como aquilo que é legislado, mas aquilo através
do que legislamos. Foi um princípio padrão da jurisprudência pelos próximos
dois milênios de que lex injusta non est
lex: uma lei injusta não é uma lei. Não foi até o Iluminismo que a noção de
Lei Natural se degenerou de sua noção original, uma restrição sobre o que a lei
era, para uma mera restrição sobre o
que a lei devia ser.
A concepção positivista da lei de atualmente é, dessa forma, realmente
uma espécie de aberração histórica; embora pareça que ela tenha tido alguma
circulação na Grécia antiga também, como é mostrado pela resistência do
camarada, assim como pelo fato de que a palavra Grega nomos significa tanto "lei" quanto "convenção".
(Uma tensão similar entre concepções positivistas e moralizadas da lei é
encontrada nas respostas confusas do estadista grego Péricles aos
questionamentos socráticos de Alcebíades, em Memoráveis de Sócrates de Xenofonte. Talvez o fato de que Atenas
era uma democracia e de que o Ateniense médio estava constantemente envolvido
em aprovar e revogar leis serviram para enfraquecer a tradicional concepção
moralizada da lei.)
Sócrates argumenta que apenas decretos baseados no conhecimento da
justiça e da injustiça objetivas podem contar como leis verdadeiras; ele adiciona
que todos os estados legislam o justo, mas eles cometem erros sobre o que, de
fato, é justo. O ponto de Sócrates
aqui é reminiscente de um argumento de David Lyons de que a interpretação legal
pressupõe uma teoria moral:
"Imagine que você e eu discordamos sobre os requisitos substantivos
da justiça social. Nós, então, diferimos quanto a como o conceito de justiça se
aplica; nós diferimos, isto é, sobre os princípios da justiça. Isto é possível
se o conceito de justiça admitir diferentes interpretações ou concepções
concorrentes. .... Agora considere um exemplo constitucional. ...um tribunal que
aplique a cláusula da justa compensação não decidiria necessariamente um caso
como os autores originais o teriam feito…. Em vez disso, o tribunal entenderia
que a Constituição quer dizer precisamente o que diz e, assim, exigiria
compensação justa. O tribunal
precisaria defender uma concepção particular de justa compensação.... contra as
alternativas mais plausíveis. ...Conceitos contestados não parecem limitar-se à
moralidade e à lei. Suas propriedades são, de qualquer maneira, similares
àquelas dos conceitos que se referem a substâncias e fenômenos naturais, tais
como água e calor. Num entendimento plausível do desenvolvimento da ciência,
por exemplo, as teorias calóricas e cinéticas do calor são (ou já foram)
concepções concorrentes do conceito calor. .... Se, como a maioria das pessoas
concordaria, 'calor' se refere a um determinado fenômeno físico, pode haver, em
princípio, uma melhor teoria do calor. Isto implica que pode haver uma melhor
concepção de um conceito contestado. Isto sugere, por sua vez, que os conceitos
contestados na Constituição podem ter melhores interpretações. .... Agora, se a
ideia de que a Constituição inclui conceitos contestados está correta, então
aplicar a Constituição em termos de sua melhor interpretação é, na realidade,
aplicar doutrinas cuja aplicação é exigida pela Constituição original. Mas,
assim como a interpretação do conceito de calor exige mais do que mera
reflexão, qualquer interpretação desse tipo inevitável se baseia em recursos
que não são nem implícitos no texto nem puramente linguísticos. Ela... requer
que os tribunais que aplicam as 'cláusulas vagas' da Constituição interpretem
'conceitos contestados'. O que requer raciocinar sobre princípios morais ou
políticos."
(David Lyons, "Constitutional
Interpretation and Original Meaning". Social Philosophy & Policy IV, pp. 85-99.)
Se a lei diz que os empregados do governo devem ser pagos em ouro, então
eles não podem ser pagos em piritas de ferro, uma vez que piritas de ferro não
são de fato ouro, mesmo que aqueles
que escreveram a lei fossem ignorantes quanto à diferença. Se a lei diz que
pescadores não podem caçar mamíferos, então, de fato, a lei diz que eles não podem caçar golfinhos, mesmo que os
legisladores pensassem que golfinhos fossem peixes. Da mesma forma, se a lei
diz que a servidão involuntária é proibida, então o governo não pode recrutar
soldados, uma vez que o recrutamento militar é de fato servidão involuntária, mesmo que aqueles que escreveram a
lei não reconhecessem isso.
O ponto do Professor Lyons é que precisamente o mesmo argumento se aplica
a termos morais: se a Constituição demanda justa compensação para as vítimas de
desapropriação, então tais vítimas devem receber o que quer que seja realmente justo, não o que os redatores
pensavam que era justo, uma vez que a Constituição diz dar "justa
compensação" em vez de dizer dar "o que consideramos ser justa
compensação". (O abolicionista oitocentista Lysander Spooner usou
argumentos similares em seu Unconstitutionality of
Slavery, alegando que a escravidão era proibida por várias cláusulas
na Constituição, mesmo que os autores daquelas cláusulas não tivessem tal
intenção, porque frases tais como "forma de governo republicana" e
"contra violência doméstica", quando interpretadas de acordo com a
teoria moral e política correta, excluem a escravidão.)
A conclusão de Minos de Platão,
então, pode ser descrita como se segue: Todos os estados legislam tanto o conceito de justiça quanto concepções particulares dela. Na medida
em que eles legislam o conceito, todos eles legislam a mesma coisa, e essas
legislações são leis genuínas. Na medida em que eles legislam diferentes
concepções, seus decretos (ou a maioria deles) não são leis genuínas, e seus
legisladores estão simplesmente se provando ignorantes do que a lei
verdadeiramente exige.
Dois Sentidos de Lei
Na Parte I dessa série de artigos sobre a natureza da lei, eu defini lei como “a instituição ou conjunto de
instituições numa sociedade que adjudica alegações conflitantes e garante
conformidade de uma maneira formal, sistemática e ordeira". (Formulations,
Vol. I, No. 3.) Deveria agora estar claro que eu estava definindo lá a lei positiva, não a Lei no sentido estrito e
tradicional discutido aqui. Um dos meus objetivos principais nas Partes I e II
foi argumentar em favor de um tipo específico de sistema legal positivo - o
anarquismo de mercado - como sendo superior, de maneira tanto moral quanto prática,
a outros sistemas. Minha conclusão lá pode ser agora reformulada como se segue:
o anarquismo de mercado é a variedade de lei positiva mais de acordo com a Lei
no sentido apropriado.
Mas qual é a relação precisa entre a lei positiva e a Lei propriamente
dita? A essa questão eu me volto agora.
Lei Natural e Lei Humana
Meu relato da concepção tradicional da Lei propriamente dita pode sugerir
que o conteúdo dessa Lei é completamente independente do desejo humano. Alguns
filósofos legais nessa tradição de fato pensaram isso. Lysander Spooner, por
exemplo, insiste que a legislação humana não pode nem adicionar nem remover da
verdadeira Lei uma única provisão.
A visão historicamente mais comum, no entanto, têm sido aquela do grande
filósofo medieval Tomás de Aquino. Aquino mantinha que o conteúdo da verdadeira
Lei incluía não apenas a Lei Natural - ou seja, os princípios de justiça
necessários ao genuíno bem-estar humano e inerentes à natureza humana como
criada por Deus - mas também a Lei Humana. Por Lei Humana, Aquinas não quer
dizer o que eu tenho chamado de lei positiva. Sua ideia é, antes, a seguinte:
Algumas das disposições da Lei Natural, embora absolutas e vinculantes,
frequentemente carecem de especificidade. Por exemplo, pode ser uma provisão da
Lei Natural que carros indo em direções opostas numa autoestrada devam viajar
em lado opostos da estrada - mas a Lei Natural pode se calar sobre a questão de
se os carros deveriam dirigir à esquerda ou à direita. Qualquer decisão sobre
essa última questão é uma matéria de indiferença, do ponto de vista da Lei
Natural, e pode ser deixada para a convenção humana. Tudo que a Lei Natural
exige é que exista alguma decisão
sobre a questão e que qualquer convenção que seja adotada deva, então, ser
obedecida. Assim, se uma nação em particular adota a regra de dirigir à
direita, essa última disposição então adquire força de Lei, e então é
moralmente vinculante. A regra "Dirija à direita" não é parte da
imutável Lei Natural, mas é, antes, uma provisão da mutável Lei Humana.
Juristas medievais diziam que tais regras reduziam
(ou seja, tornavam mais específicas)
as provisões da Lei Natural; mas eles negavam que a Lei Humana jamais poderia contradizer a Lei Natural. A Lei no
sentido estrito, então, cobre tanto a Lei Natural quanto a Lei Humana, a última
sendo subordinada à primeira; mas a Lei Humana é mais restrita que a lei
positiva, uma vez que apenas aquelas provisões da lei positiva que são
consistentes com a justiça devem ser contadas como Lei Humana. O legislador
pode ter alguma liberdade criativa, mas apenas dentro dos limites da Lei
Natural, e é tarefa dele descobrir esses limites, não os estipular por decreto.
Lei Natural e Lei Consuetudinária
Eu tenho falado do padrão ao qual a legislação deve responder como Lei
Natural - um conjunto de princípios morais imutáveis que transcendem o desejo
humano. Tal era, de fato, a visão de Platão, Aristóteles, Cícero, Aquinas e, na
verdade, a maioria dos filósofos legais ao longo de toda a história. (Para
algumas citações representativas, veja a evidência documental nas páginas 7-11.)
Mas historiadores legais apontam para o que poderia ser uma concepção diferente
da verdadeira Lei: a prática, na maioria das sociedades pré-modernas, de
considerar o costume tradicional como
o padrão supremo da Lei. (Novamente, vide pp. 7-11.) A tarefa do legislador, em
tais sociedades, é vista como uma tentativa de descobrir, declarar, e aplicar
as práticas já existentes da tribo ou nação - o que os juristas britânicos
chamam de "costume do país" - e não apelar para algum padrão abstrato
de justiça transcendente como a Lei Natural.
Esse conflito é largamente ilusório, contudo. Pois devemos lembrar que (não
obstante Spooner em contrário) a verdadeira Lei compreende não apenas a Lei Natural,
mas também a Lei Humana - e a Lei Humana deve ser promulgada não apenas por uma
legislatura oficial, mas, similarmente e com igual (se não maior) autoridade,
pelo costume, que evolui de maneira espontânea. De fato, tal lei
consuetudinária provavelmente é um método mais confiável para
"reduzir" a Lei Natural, porque um costume evoluído espontaneamente e
mantido voluntariamente tem uma probabilidade maior de promover uma vantagem
mútua do que um decreto idealizado e imposto por um pequeno grupo no poder.
Por razões semelhantes, foi argumentado, por F. A. Hayek e Bruno Leoni,
entre outros, que um sistema de direito comum, em que a legislação surge
através de precedente judicial, é superior a um sistema em que juízes e
tribunais simplesmente aplicam a legislação criada por uma legislatura
separada. (O sistema americano é uma mistura desses dois.) Uma vantagem do
sistema de direito comum com leis criadas por juízes é que um juiz não pode
simplesmente começar a legislar sobre qualquer coisa que passe em sua
imaginação, mas deve responder a alegações particulares trazidas por pessoas
particulares e, então, o sistema de precedentes que evolui foi moldado pelas
necessidades dos indivíduos.
Tal sistema de direito comum funciona melhor, no entanto, se houver
tribunais concorrentes em jurisdições concorrentes, de modo que os tribunais
que fizerem decisões ruins percam para aqueles com melhor julgamento. Sob um
judiciário centralizado com escolhas restrita de jurisdições, muitas das
vantagens do direito comum são perdidas - embora mesmo aqui exista um tipo de
elemento competitivo, na medida em que diferentes precedentes podem ser pensados como se competindo um contra o
outro.
Um sistema de direito comum não funcionará bem se os tribunais ignorarem
os precedentes completamente; nesse ponto, um juiz simplesmente se torna um
minilegislador, rejeitando a sabedoria incorporada na experiência judicial
anterior. Por outro lado, um sistema de direito comum também deixará de
funcionar bem se aderir muito estritamente ao precedente; pois se os
empreendedores judiciais se recusarem a inovar ou a introduzir precedentes
concorrentes, a mão invisível não tem nada com o que trabalhar. A Lei Humana,
ao contrário da Lei Natural, deveria
ser flexível, se adaptando às circunstâncias em mudança. Tom Bethell oferece o
sistema legal islâmico como um exemplo de sistema de direito comum que se
degenerou quando perdeu sua flexibilidade, congelando, assim, a outrora
dinâmica e progressista civilização Islâmica em uma rigidez medieval:
"...o declínio do Islã começou aproximadamente no século XV...
Gradualmente, a lei Islâmica foi 'congelada', de modo que os interpretadores da
lei não mais podiam aplicar seu raciocínio independente a ela. Eles foram
obrigados a viver com a interpretação que foi atingida quando o 'congelamento' ocorreu.
Esse evento é conhecido para os estudiosos da shari'a (lei religiosa) como 'o fechamento do portão da itjihad' - itjihad significando 'a luta pela compreensão' ou, mais
simplesmente, o uso da razão. Ela foi substituída pela taqlid, a aceitação submissa da interpretação anterior. A
interpretação continuada cessou porque se dizia que ela mostrava desrespeito
para com os juristas mais antigos.
Taqlid trouxe consigo sérios
problemas. ...Alguns estudiosos Islâmicos... acreditam que o fechamento do portão
foi uma causa principal do declínio do Islã. .... Com o pensamento independente
não mais desejado, a lei no mundo muçulmano ficou dominada por pessoas de uma
disposição subserviente, que eram atraídas ao serviço do poder. ...Taha al
Alwani denuncia o estado decaído do mundo muçulmano.... 'Muçulmanos e não-muçulmanos
estão igualmente assombrados que uma das civilizações mais avançadas da
história pudesse decair a tal estado de esmagadora miséria, ignorância, atraso
e declínio geral…' Ele acredita que a arraigada deferência à autoridade e o
desencorajamento da razão que começaram com o 'fechamento dos portões' é uma
parte importante da explicação."
(Tom Bethell, "The
Mother of All Rights", Reason 25
(April 1994), p. 45.)
Em seu manifesto clássico On Liberty,
John Stuart Mill apontou os benefícios da concorrência
intelectual para se alcançar a verdade. É precisamente através desse método
que atingimos o progresso científico desconcertante dos últimos quatro séculos.
Um sistema judicial que similarmente incorpore o princípio da concorrência -
nem renegando a vasta informação embutida no processo de mercado, nem se
prostrando frente a ele de uma maneira tal a impedir a inovação empreendedora -
está mais propenso do que qualquer outro a ser bem-sucedido em descobrir e
aplicar efetivamente os princípios da Lei Natural. Δ
Lei
vs. Legislação: Evidência Documental
"A Lei
no sentido de regras de conduta aplicadas é sem dúvida coeva com a sociedade;
apenas a observância de regras comuns torna a existência pacífica dos
indivíduos na sociedade possível. ...Tais regras podem, de um certo modo, não
ser conhecidas e ainda terem que ser descobertas, porque 'saber como' agir ou
ser capaz de reconhecer que atos de outro se conformaram ou não a práticas
aceitas ainda está bem longe de ser capaz de declarar tais regras em palavras.
Mas embora possa ser em geral reconhecido que a descoberta e a declaração de
quais eram as regras aceitas (ou a articulação de regras que seriam aprovadas
quando postas em prática) era uma tarefa que exigia especial sabedoria, ninguém
ainda concebia a lei como algo que os homens poderiam fazer à vontade. Não é
nenhum acidente que ainda usemos a mesma palavra 'lei' para as regras
invariáveis que governam a natureza e para as regras que governam a conduta dos
homens. Elas foram ambas concebidas a princípio como algo existente
independentemente do desejo humano. ...elas eram consideradas como verdades
eternas que o homem poderia tentar descobrir, mas que ele não poderia alterar.
Para o homem moderno, por outro lado, a crença de que toda a lei que governe a
ação humana é produto de legislação parece tão óbvia que a contenção de que a
lei é mais antiga do que o processo legislativo tem quase o caráter de um
paradoxo. Ainda assim, não pode haver dúvidas de que a lei existiu por eras
antes que ocorresse ao homem que ele poderia fazê-la ou alterá-la. .... Um
'legislador' poderia se esforçar para remover da lei as supostas corrupções ou
para restaurá-la à sua pureza original, mas não se pensava que ele podia fazer
nova lei. Os historiadores da lei estão de acordo que a esse respeito todos os
famosos 'legisladores', de Ur-Nammu e Hamurabi a Sólon, Licurgo e os autores
das Doze Tábuas Romanas, não pretendiam criar nova lei, mas meramente declarar
o que a lei era e tinha sempre sido."
— F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty
"Uma vez
que é através da lei que o que é legislado
é legislado, em virtude de a lei ser o
quê que isso é legislado? É em virtude de ela ser alguma consciência ou
alguma demonstração, como o que é aprendido é aprendido através da ciência que
o demonstra? .... Não são o direito e a lei aquilo que é mais aprazível? ...E o
errado e a ilegalidade, aquilo que é mais vergonhoso? ...E os primeiros
preservam estados e todas as outras coisas, enquanto os últimos destroem e
derrubam? .... Então tem-se que pensar a lei como algo aprazível e buscá-la
como tal? .... Então não seria apropriado que o julgamento oficial perverso
fosse lei. ...E ainda assim, mesmo para mim, a lei parece ser algum tipo de
julgamento; mas uma vez que não é o julgamento perverso, não está claro que a
lei, se é de fato julgamento, é o digno? ...E o que é o julgamento digno? Não é
o julgamento verdadeiro? .... Não é o verdadeiro, a descoberta do que é de fato?
...A lei, então, deseja ser a descoberta do que é de fato.... mas os homens,
que (assim nos parece) nem sempre usam as mesmas leis, nem sempre são capazes
de descobrir o que a lei deseja: o que é de fato. ...O que é certo é certo e o
que é errado é errado. E não é nisso que todos acreditam ...mesmo entre os
Persas, e sempre? ...O que é aprazível, sem dúvida, é legislado em todo lugar
como aprazível, e o que é vergonhoso, como vergonhoso; mas não o vergonhoso
como aprazível ou o aprazível como vergonhoso. ...E, em geral, o que é de fato,
ao invés do que não é de fato, é legislado como sendo de fato, tanto por nós
quanto por todos os demais. .... Então aquele que erra sobre o que é de fato,
erra sobre o legal. .... Então, nos escritos sobre certo e errado e, em geral,
sobre ordenar um estado e sobre como um estado deveria ser organizado, o que é
correto é a lei real, enquanto o que não é correto, o que parece ser lei para
aqueles que carecem de conhecimento, não o é, pois é ilegal."
— Platão, Minos (séc. V A.C.)
"Mas o
que é a violência e a ilegalidade, Péricles? Não é quando a parte mais forte
compele a mais fraca a fazer o que ela quer usando força em vez de persuasão? ....
Então qualquer coisa que um déspota decreta e compele os cidadãos a fazer, em
vez de persuadi-los, é um exemplo de ilegalidade? ...E se a minoria decreta
algo, não ao persuadir a maioria, mas ao dominá-la, deveríamos chamar isso de
violência ou não? Parece-me que se uma parte, em vez de persuadir uma outra, a
compele a fazer algo, seja por decreto ou não, isso é sempre violência ao invés
de lei. Então, se as pessoas como um todo usam não a persuasão, mas seu poder
superior de decretar medidas contra as classes proprietárias, será isso
violência ao invés de lei?"
— Xenofonte, Memoráveis de Sócrates (séc. V A.C.)
"Eu acho
que tem sido a opinião dos homens mais sábios de que a lei não é um produto do
pensamento humano, nem é qualquer decreto dos povos, mas algo eterno... Desse
ponto de vista pode ser prontamente entendido que aqueles que formularam
estatutos perversos e injustos para as nações, assim violando sua confiança e
pacto, puseram em prática qualquer coisa, mas não leis. Assim, pode estar claro que a própria definição do termo lei
está incluída a ideia e o princípio de escolher o certo e o verdadeiro. …Que
diremos dos muitos estatutos mortais e pestilentos que as nações colocam em
vigor? Estes não são mais dignos de serem chamados leis do que as regras que um
bando de ladrões possa aprovar em sua assembleia. Pois, se homens ignorantes e
incapazes prescreveram venenos mortais em vez de remédios eficazes, estas não
podem sequer serem chamadas de prescrições de um médico."
— Cicero, Leis (séc. I A.C.)
"A
Jurisprudência é a familiaridade com as coisas humanas e divinas, o
conhecimento do que está certo e do que está errado. .... Esses são os
preceitos da lei: viver corretamente, não ofender o outro e dar a cada um o que
é seu."
— Institutas de Justiniano (sec. VI D.C)
"O
jurista romano era um tipo de cientista: os objetos de sua pesquisa eram as
soluções para casos que os cidadãos submetiam a ele para estudo, assim como
industriais poderiam hoje submeter a um físico ou a um engenheiro um problema
técnico relativo a suas fábricas ou sua produção. Consequentemente, a lei romana
privada era algo a ser descrito ou ser descoberto, não algo a ser decretado -
um mundo de coisas que existiam, formando parte do patrimônio comum de todos os
cidadãos romanos. Ninguém decretava aquela lei; ninguém poderia mudá-la por
qualquer exercício de sua vontade pessoal."
— Bruno
Leoni, Liberdade e a Lei
"As
cortes Anglo-Saxãs, chamadas de moots,
eram assembleias públicas de homens comuns e vizinhos. Os moots não gastavam seus esforços criando ou codificando a lei; eles
deixavam isso para o costume e para os códigos de leis essencialmente
declaratórios dos reis. .... Como em outros sistemas legais consuetudinários,
os moots tipicamente exigiam que os
criminosos pagassem restituição ou composição a suas vítimas.... Os códigos de
leis da Europa no início da Idade Média consistiam largamente de listas de
crimes e as correspondentes tabelas de pagamentos. Ao emitir esses, os reis não
estavam legislando no sentido moderno: eles estavam, ao invés, codificando e
declarando o costume e a prática já existentes."
— Tom Bell, "Polycentric
Law," Humane Studies Review 7,
No. 1, 1991/92
"Quando
surge um caso para o qual nenhuma lei válida pode ser aduzida, então os homens
legítimos ou os árbitros farão nova lei na crença de que o que estão fazendo é
a boa e velha lei, não de fato expressamente proferida, mas tacitamente
existente. Eles, portanto, não criam a lei: eles a 'descobrem'."
— Fritz Kern, Kingship and
Law in the Middle Ages
"Como
Agostinho diz, aquilo que não é correto parece não ser lei alguma; por
conseguinte a força de uma lei depende da medida na qual ela é correta. ....
Consequentemente, toda lei humana tem a natureza da lei apenas na medida em que
ela é derivada da lei da natureza. Mas se, em qualquer ponto, ela se desvia da
lei da natureza, ela não mais é uma lei, mas uma perversão da lei. ...quando
uma autoridade impõe sobre seus subordinados 'leis' onerosas conducentes não ao
bem comum, mas sim a sua própria cupidez e vanglória... e similares são atos de
violência em vez de leis.... por conseguinte, tais 'leis' não se vinculam na
consciência... Um governo tirano não está certo... Consequentemente, não há
sedição em incomodar um governo desse tipo.... De fato, é o tirano, antes, que
é culpado de sedição…. Se uma coisa é por si só contrária ao direito natural, o
desejo humano não pode torná-la correta…"
— Thomas
Aquinas, Summa Theologiæ (séc. XIII.)
"Um
legislador humano não tem um arbítrio perfeito, como tem Deus; e, portanto...
tal legislador pode às vezes prescrever coisas injustas, um fato que é
manifestamente verdadeiro; mas ele não tem o poder de vincular através de leis
injustas e, consequentemente, muito embora ele possa de fato prescrever aquilo
que é injusto, tal preceito não é lei, porquanto ele carece de força ou
validade para impor uma obrigação vinculante."
— Francisco
Suarez, Tractatus de legibus ac Deo
Legislatore (séc. XVII)
"Nihil quod est contra rationem est licutum:
nada que é contra a razão é lícito. É uma máxima certa no direito, pois a razão
é a vida da lei."
- Richard Overton, A Defiance against All Arbitrary Usurpations
or Encroachments (séc.
XVII)
"Estas
são as leis eternas e imutáveis do bem e do mal, às quais o próprio criador em
todas suas dispensações se conforma; e que ele capacitou a razão humana para
descobrir, tanto quanto elas são necessárias para a conduta das ações humanas.
Tais, entre outros, são estes princípios: que devemos viver honestamente, não
devemos ferir ninguém e devemos dar cada um o que lhe é devido; três princípios
aos quais Justiniano reduziu toda a doutrina da lei. ...[Deus]
misericordiosamente reduziu a regra da obediência e esse único preceito
paternal, 'que o homem deve perseguir sua própria felicidade'. Este é o
fundamento do que chamamos de ética ou lei natural. ...Esta lei da natureza,
sendo coeva com a humanidade e ditada pelo próprio Deus, é, claro, superior em
obrigação a qualquer outra. É vinculante em todo o globo, em todos os países e
em todos os tempos: nenhuma das leis humanas tem qualquer validade, se
contrária a esta; e aquelas delas que são válidas derivam toda sua força e toda
sua autoridade, mediata ou imediatamente, desta original. ...Aqueles diretos,
então, que Deus e a natureza estabeleceram e que são, portanto, chamados de
direitos naturais, como o são a vida e a liberdade, não precisam do auxílio de
leis humanas para serem mais eficazmente aplicadas a todo homem; nem recebem
eles qualquer força adicional quando declarados, pelas leis municipais, como
sendo invioláveis. Pelo contrário, nenhuma legislatura humana tem o poder de
abreviá-los ou destruí-los.... Pois aquela legislatura em todos esses casos age
apenas, como foi observado antes, em subordinação ao grande legislador,
transcrevendo e publicando seus preceitos. …[Um juiz é] jurado a determinar,
não de acordo com seu próprio julgamento particular, mas de acordo com as leis
e costumes conhecidos da terra; não delegado a pronunciar uma nova lei, mas a
manter e expor a antiga. Ainda assim.... se for descoberto que a decisão
anterior é manifestamente absurda ou injusta, é declarado, não que tal sentença
foi uma lei ruim, mas que ela não era lei; ou seja, que ela não é o
costume estabelecido do reino…"
— William Blackstone, Commentaries on the Laws of England
(séc. XVIII)
"Mas que
a origem do governo seja colocada onde for, o fim dele é manifestamente o bem do todo. Salus populi suprema
lex esto [que o bem-estar do povo seja a lei suprema], é a lei da
natureza.... Dizer que o parlamento é absoluto e arbitrário é uma contradição.
O parlamento não pode fazer 2 e 2 ser 5: a Onipotência não pode fazê-lo. O
poder supremo num estado é jus dicere
[dizer o correto] apenas: - jus dare [dar
o correto], estritamente falando, pertence somente a Deus. Parlamentos devem,
em todos os casos, declarar o que é
para o bem do todo; mas não é a declaração
do parlamento que o faz assim: Deve haver em cada instância uma autoridade
maior, viz. DEUS. Fosse um ato do
parlamento contra qualquer de suas
leis naturais, que são imutavelmente
verdadeiras, a declaração deles seria
contrária à verdade, à igualdade e à justiça eternas e, consequentemente, nula:
e assim seria julgada pelo próprio parlamento, quando convencidos de seu erro.
Sobre esse grande princípio, os parlamentos anulam tais atos, tão logo eles
descubram que estavam errados ao ter os declarado ser pelo bem público, quando
de fato não o eram."
— James Otis, The Rights of the British Colonies Asserted and Proved (séc. XVIII)
"...a
justiça é um princípio imutável e natural; e não qualquer coisa que possa ser
feita, desfeita ou alterada pelo poder humano. .... Ela não deriva sua
autoridade dos comandos, do desejo, do prazer ou da discrição de qualquer
combinação possível de homens, quer se chamem de governo ou qualquer outro
nome.
Ela é também,
em todos os momentos e em todos os lugares, a lei suprema. E, sendo em todo
lugar e sempre a lei suprema, é necessariamente em todo lugar e sempre a única
lei. Os legisladores, como se chamam, não podem adicionar nada a ela, nem tirar
nada dela. Portanto suas leis, como eles as chamam - ou seja, todas as leis de
sua própria criação - não têm nenhum tom de autoridade ou obrigação. É uma
falsidade chamá-las de leis; pois não há nada nelas que ou crie os deveres e
direitos dos homens ou os ilumine quanto a seus deveres e direitos.
Consequentemente não há nada vinculante ou obrigatório sobre eles. .... É
intrinsecamente tão falso, absurdo e ridículo dizer que os assim chamados legisladores
podem inventar e fazer quaisquer leis por
eles mesmos... quanto o seria dizer que eles podem inventar e criar tanta
matemática, química, fisiologia, ou outras ciências, quanto entenderem…"
— Lysander
Spooner, Letter to Grover Cleveland (séc. XIX)
"Eu nego
que os legisladores façam a lei. Eles
criam Atos legais, estatutos, que podem ou não coincidir com a verdadeira Lei
e, de fato, raramente o fazem. ...a grande maioria de tais Atos legislativos se
destinam a prevenir, dificultar ou parar a ação humana inofensiva e útil. Então
a aplicação deles tem esse efeito lamentável."
— Rose Wilder
Lane, The Lady and the Tycoon
(séc. XX)
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