quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Um Conto de Três Ressalvas

Um Conto de Três Ressalvas


"Devemos dizer, com alguns que pretendem à metafísica, que a propriedade é a expressão da individualidade, da personalidade, do eu? Mas a posse é largamente suficiente para essa expressão..." - P.-J. Proudhon, The Theory of Property


"Passo pela morte com aquele que morre e pelo nascimento com o nascituro, e não estou contido entre o meu chapéu e minhas botas." - Walt Whitman, "Canção de Mim Mesmo"


É engraçado, de algumas maneiras pelo menos, como Proudhon ganhou uma reputação um tanto escandalosa por sua obra sobre a propriedade, ao passo que Locke continua a ser o nome com o qual se conjurar - muito embora "lockeanas" possam ser bastante seletivas sobre quais elementos de suas teorias elas retém. Há algumas voltas e reviravoltas estranhas nos debates sobre propriedade: o cara que diz "a propriedade é impossível", em última análise, propôs uma abordagem bem laissez faire para se lidar com a desigualdade de propriedade, ao passo que aquele amado pela escola laissez fair propôs limitações sobre a propriedade que, de acordo com algumas pessoas críticas às ressalvas, tornam a propriedade impossível na prática. E ambos os pensadores tiveram amiúde "seguidoras" que estiveram decididamente relutantes em ser conduzidas. Aquelas presumivelmente amigáveis a Proudhon tenderam a se agarrar a uma metade de seu tratamento dialético. E, embora, sem dúvida, seja provocador dizer, seguindo seu pensamento maduro, que a "propriedade é liberdade" porque a propriedade é essencialmente despótica, não o é menos assim quando lockeanas contemporâneas nos dizem que a ressalva do "tanto e tão bom" é cumprida precisamente ao não se deixar recursos não apropriados (porque... o mercado...).


Proudhon e Locke são ambos figuras fascinantes e seus escritos sobre propriedade recompensam a atenção séria e repetida, mas eles apresentam problemas radicalmente diferentes. O tratamento de Proudhon do sujeito se espalha por suas obras completas, ao passo que o coração do tratamento de Locke tem uma compressão quase poética. Como resultado, tem sido mais fácil usar Locke para falar sobre Proudhon do que vice-versa - mas certamente há lugares em que, de forma propriamente dialética, a tentativa de trazer Proudhon ao diálogo com Locke levantou questões interessantes sobre os princípios da teoria mais convencional da propriedade.


Por exemplo, a "auto-propriedade" não era realmente um conceito para Proudhon. Sua obra contém todos os elementos para se construir um teoria realmente interessante do eu e indicações de como essa teoria poderia se manifestar no âmbito dos direitos, mas seu tratamento da "propriedade", em geral, focou em outros lugares. Essa é a razão pela qual eu tenho recorrido ao tratamento de Stirner do único e de sua propriedade na elaboração da "economia da dádiva de propriedade". Para Proudhon, a maioria das preocupações que poderíamos abranger com a "auto-propriedade" - questões relativas à "expressão da individualidade, da personalidade, do eu" - eram questões de posse e não de propriedade. Talvez, tivesse ele continuado a desenvolver o material que ele escreveu na década de 1860, e perseguido as consequências desses trabalhos mais tardios, ele poderia bem ter traçado partes do problema da propriedade de volta ao âmbito do fato. Da forma como está, no entanto, fomos deixados a trabalhar essa parte da teoria por nós mesmas.


Mas a divisão da teoria de propriedade de Proudhon ao longo da separação fato/direito é uma ferramenta que ele nos legou, e talvez seja uma que pode nos ajudar a elaborar os pontos de contato entre sua teoria e aquela de Locke.


Ao longo dos últimos anos, eu tenho esboçado algumas das maneiras nas quais a ressalva mais famosa de Locke - a exigência de deixar "tanto e tão bom" no momento da apropriação - pode ser útil para mutualistas ao pensar sobre possíveis regimes de propriedade. Tem sido particularmente útil para examinar a tendência dessa ressalva a limitar a apropriação a recursos não-rivais, quando muitas proprietaristas insistem que a propriedade só pode realmente se aplicar aos rivais. E eu acho que tem sido útil tratar a ressalva sobre a apropriação como uma tentativa relativamente bem sucedida de se determinar como poderíamos formular diretrizes para atos que são "permissíveis" em algum sentido a priori. Apesar de fortes reservas quanto a todo o discurso de "permissibilidade", e um relacionamento de amor e ódio com a conversa de direitos em geral, eu acho que mutualistas têm muito a aprender a partir das tentativas de se descobrir os direitos naturais e a lei natural.


Mas recentemente eu tenho sentido como se talvez houvesse mais esclarecimentos a serem feitos com relação às ressalvas de Locke, começando com alguns esclarecimentos sobre o que exatamente é que as ressalvas condicionam quando estabelecem se podemos ou não reivindicar a propriedade. Há, afinal, um maneira de ler o relato de Locke que envolve uma dicotomia fato/direito muito parecida com a de Proudhon. A mistura de trabalho poderia facilmente ser lida em termos de uma posse proudhoniana, como uma questão da expressão e da extensão da individualidade. Se fôssemos fazer uma leitura bastante literal de todo esse negócio de misturar o eu com recursos externos, poderíamos talvez bastante facilmente esboçar os termos de uma teoria lockeana de posse e aplicar uma ética de reconhecimento e respeito mútuos - e o que teríamos seria provavelmente bem similar, em termos de consequências, aos sistemas de "posse" que anarquistas extraíram das primeiras obras de Proudhon. Embora lockeanas contemporâneas geralmente queiram pular direto para a questão de direitos executáveis, muito das coisas importantes no esquema de Locke ocorrem no lado factual das coisas. Se não há "tanto e tão bom", ainda é o caso de que "algo" do eu está misturado com os recursos - os quais ainda estaríamos tentadas a  dizer que estão apropriados, contanto que seja entendido que não estamos falando sobre propriedade legal ou moral. A ressalva limita as circunstâncias sob as quais uma "apropriação" de fato (no sentido de uma adição ao eu em desenvolvimento) pode criar um direito de propriedade socialmente reconhecível e executável. E, sejamos claras, a ressalva de apropriação de Locke coloca limites sobre a "posse" que não estão necessariamente lá em alguns dos tratamentos anarquistas mais convencionais. E, então, a "ressalva do rebusco" colocou limitações sobre o desperdício ou estabeleceu uma lógica para algo como um regime de "ocupação e uso", dependendo de como é interpretado.


Quando Proudhon observou que os defensores da propriedade estavam bem mais interessados em limitá-la do que ele estava, ele não estava apenas tentando marcar pontos retóricos. De algumas maneiras, a abordagem "sem ressalvas" à teoria de Locke é apenas um  cumprimento mais agressivo do mesmo tipo de propriedade ilimitada que Proudhon adotou nos anos 1860. E isso é algo que mutualistas deveriam levar a sério conforme pesamos os vários possíveis caminhos adiante a partir da obra de Proudhon. Mas há uma importante diferença entre a abordagem madura de Proudhon e aquela das lockeanas sem ressalva: Proudhon, em última análise, assumia uma abordagem consequencialista, adotando a propriedade simples apesar e por causa do fato de que ela era baseada em um princípio que era indefensável por si mesmo, ao passo que as lockeanas alegam que estão apresentando direitos naturais, baseados em uma essencial propriedade sobre a pessoa - auto-propriedade.


Ora, já introduzimos uma forma de auto-propriedade em nosso relato "possessório" da mistura de trabalho e de suas consequências. Mas é essa a forma de auto-propriedade que nos levará a propriedade simples por meio de princípios? Talvez não.


Afinal, como estivemos explorando uma gama de teorias da propriedade, vimos uma gama de teorias da natureza e dos limites do eu e uma variedade de posições em relação a auto-propriedade enquanto um evento exclusivo. Stirner, por exemplo, nos forneceu um relato de propriedade para suplementar o de Proudhon, mas a abordagem de Stirner não exige que os únicos existam sem se sobrepor. Em vez disso, temos uma situação em que os únicos se alimentam uns dos outros - se envolvem numa "utilização mútua" -  mas, de maneiras importantes, a propriedade de outros únicos simplesmente não é do interesse do eu individual. E Pierre Leroux nos deu um relato do eu como "tanto objetivo quanto subjetivo", com a consequência de que o que é inalienavelmente próprio da pessoa tem que incluir "outros" - o que certamente é improvável que conduza a um regime de propriedade com base em uma personalidade individual exclusiva.


Para Proudhon, a descrição da propriedade como "roubo" e "impossível" estava ligada a sua análise dos vários meios pelos quais os fatos da posse deveriam implicar em direitos de propriedade. Ele chegou à conclusão que nenhum dos argumentos a partir de princípios adequadamente estabeleciam os direitos. Ele descreveu o problema envolvido nestes termos: "A propriedade é um direito do homem de dispor à vontade da propriedade social". Ora, não temos nenhuma escassez de argumentos sobre por que a mistura de trabalho dos indivíduos nunca é inteiramente individual, mas talvez tenhamos uma questão mais básica para abordar.


A própria noção de apropriação envolve uma noção de um eu que não está contido, como Whitman colocou, "entre o meu chapéu e minhas botas". Nós nos "misturamos" com todos os tipos de coisas a nosso redor e com outras pessoas - como Stirner nos lembra na longa seção sobre "Minhas Relações". A mistura interpessoal parece uma parte tão natural do que é próprio do ser humano quanto outros tipos. Então, se queremos que os direitos de propriedade regulem uma distinção exclusiva entre "meu" e "teu", então temos que recuar de volta a entre nossos chapéus e nossas botas - pelo menos quando estamos falando sobre proprietárias. E isso significa que a proprietária, o sujeito da auto-propriedade, não terá "auto-propriedade" sobre a totalidade do eu. Há, com efeito, uma terceira ressalva que aplicamos quando nos movemos a partir de todas as maneiras nas quais nos misturamos com o mundo para aquelas a partir das quais estamos dispostas a reconhecer a criação de um direito de propriedade. Nesse sentido, não existem quaisquer lockeanas "sem ressalvas", apenas aquelas que rejeitam as limitações sobre a apropriação, desperdício ou concentração, enquanto mantém uma ressalva diferente que também limita as circunstâncias sob as quais a mistura de trabalho pode resultar em direitos de propriedade.

Esta terceira ressalva é, claro, algo muito próximo a uma das "dádivas" sobre as quais a "economia da dádiva de propriedade" está embasada. Há razões óbvias pelas quais poderíamos desejar um regime de propriedade baseado em um domínio individual exclusivo. Mas se é isso o que desejamos, e isso requer uma ressalva que limita a derivação de direitos a partir dos resultados da mistura do trabalho, precisamos ser claras quanto a isso.

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