segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Pensamento Anarquista de David Graeber: Um Exame

O Pensamento Anarquista de David Graeber: Um Exame

Introdução: A Primazia da Vida Cotidiana



David Graeber escolheu, como epígrafe de seu livro Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, uma citação do artigo sobre Anarquismo de Pyotr Kropotkin para a Encyclopedia Britannica. Nele Kropotkin afirma que, em uma sociedade anarquista, a harmonia seria


obtida, não por submissão à lei, ou pela obediência a qualquer autoridade, mas por acordos livres celebrados entre os vários grupos, territoriais e profissionais, livremente constituídos por questões de produção e consumo, como também pela satisfação da infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado.


A coisa interessante sobre isso é que ele poderia servir como uma descrição precisa de virtualmente qualquer sociedade anarquista, incluindo o tipo comunista libertário favorecido por Kropotkin, Goldman ou Malatesta, o tipo de anarco-sindicalismo favorecido pela maioria dos Wobblies e da CNT, o anarco-coletivismo de Bakunin, o mutualismo de Proudhon, ou o anarquismo de mercado de Thomas Hodgskin e Benjamin Tucker. E é apropriado que Graeber tenha escolhido ele como sua epígrafe, porque sua afeição por "grupos livremente constituídos" e "acordos livres" celebrados entre eles é maior do que qualquer tentativa doutrinária de classificar tais grupos e acordos como firmas empresariais operando no nexo monetário ou como coletivos sem moeda.


Graeber, como já vimos ser o caso com Elinor Ostrom, é caracterizado, acima de tudo, por uma fé na criatividade e na agência humana, e uma relutância em deixar formulações teóricas a priori impedirem suas percepções tanto sobre a particularidade quanto sobre "existência"NT01 da história, ou interferirem com a capacidade de agrupamentos comuns e face-a-face de pessoas no local desenvolverem arranjos funcionais - quaisquer que possam ser - entre si mesmas. Graeber é um daqueles pensadores anarquistas (ou anarquistescos) que, apesar de possivelmente se identificarem com uma variante hifenizada do anarquismo, tem uma afeição pela variedade e pela particularidade de instituições auto-organizados e de escala humana que vai além do rótulo ideológico. Essas pessoas, igualmente, vêem os relacionamentos entre seres humanos individuais de formas que não podem ser reduzidas a simples abstrações como o nexo monetário ou o socialismo doutrinário.


Se nós realmente queremos entender os fundamentos morais da vida econômica e, por extensão, da vida humana, parece-me que precisamos começar...  com as coisas bem pequenas: os detalhes cotidianos da existência social, a maneira como tratamos nossos amigos, inimigos e filhos - frequentemente com gestos tão minúsculos (passar o sal, pedir um cigarro) que normalmente nunca sequer paramos para pensar sobre eles. A antropologia tem nos mostrado exatamente quão diferentes e numerosas são as maneiras em que sabe-se que humanos se organizam. Mas ela também revela algumas notórias semelhanças...


O anarquismo de Graeber é, acima de todo resto, centrado em humanos. Ele implica em uma alta consideração pela atividade e razoabilidade humanas. Em vez de ajustar seres humanos reais a algum paradigma anarquista idealizado, ele exibe uma abertura a - e uma celebração de - o que quer que seja que seres humanos possam realmente fazer ao exercitar essa atividade e razoabilidade. A anarquia não é o que as pessoas farão "após a Revolução", quando algum tipo de "Novo Homem Anarquista" tiver emergido a quem se possa confiar autonomia; é o que elas fazer agora mesmo. "Anarquistas são simplesmente pessoas que acreditam que seres humanos são capazes de se comportarem de uma maneira razoável sem terem que ser forçados a isso."


Em sua forma mais simples, as crenças anarquistas se ligam a duas suposições elementares. A primeira é que seres humanos são, sob circunstâncias normais, tão razoáveis e decentes quanto se permite que sejam, e podem organizar a si mesmos e às suas comunidades sem que se precise lhes dizer como. A segunda é que o poder corrompe. Acima de tudo, o anarquismo é apenas um questão de ter a coragem de tomar os simples princípios de decência através dos quais todos nós vivemos, e segui-los até suas conclusões lógicas. Por mais estranho que isso possa parecer, das maneiras mais importantes você provavelmente já é um anarquista - você apenas não percebeu.


Vamos começar tomando alguns exemplos da vida cotidiana.


  • Se há uma fila para entrar em um ônibus lotado, você espera sua vez e se abstém de acotovelar as pessoas para abrir caminho na ausência da polícia?


Se você responder "sim", então você está acostumado a agir como um anarquista! O princípio anarquista mais básico é a auto-organização: a suposição de que seres humanos não precisam ser ameaçados com processos a fim de que sejam capazes de chegar a entendimentos razoáveis uns com os outros, ou de tratar uns aos outros com dignidade e respeito...


Para encurtar um longa história: anarquistas acreditam que sobretudo é o próprio poder, e os efeitos do poder, que tornam as pessoas estúpidas e irresponsáveis.


  • Você é membro de um clube ou de um time esportivo ou qualquer outra organização voluntária em que as decisões não são impostos por um líder, mas feitas na base do consenso geral?


Se você respondeu "sim", então você pertence a uma organização que trabalha sobre princípios anarquistas! Outro princípio anarquista básico é a associação voluntária. Isto é simplesmente uma questão de aplicar os princípios democráticos à vida comum. A única diferença é que anarquistas acreditam que deveria ser possível ter uma sociedade em que tudo pudesse ser organizado de acordo com essas linhas, todos os grupos baseados no livre consentimento de seus membros e, portanto, que todos os estilos top-down e militares de organização, como exércitos, burocracias ou grandes corporações, baseados em cadeias de comando, não seriam mais necessários. Talvez você não acredite que isso seja possível. Talvez você acredite. Mas toda vez que você chega a um acordo através de consenso, em vez de ameaças, toda vez que você faz um acordo voluntário com uma outra pessoa, chega a um entendimento, ou chega a um compromisso dando a devida consideração à situação e às necessidades particulares da outra pessoa, você está sendo um anarquista - mesmo se você não perceber.


O anarquismo é apenas a maneira que as pessoas agem quando elas são livres para fazer o que escolherem, e quando elas lidam com outras que são igualmente livres - e, portanto, estão cientes da responsabilidade para com as outras que isso implica.


A abordagem de Graeber quanto à forma de uma hipotética sociedade anarquista é simples: retire todas as formas de dominação, ou de autoridade unilateral e não responsiva por parte de algumas pessoas sobre outras, coloque as pessoas juntas, e veja com o que elas aparecem.


Como veremos posteriormente, Graeber critica visões totalizantes e idealizadas do estado. Similarmente, a própria anarquia, em vez de um sistema totalizante, é apenas uma maneira das pessoas interagirem umas com as outras, e isso (como Colin Ward...) está em tudo em torno ao nosso redor agora.


Poderíamos começar com um tipo de sociologia de micro-utopias, a contraparte de uma tipologia paralela de formas de alienação, formas alienadas e não-alienadas de ação... O momento em que paramos de insistir em ver todas as formas de ação apenas através de sua função de reproduzir formas maiores e totais de desigualdade de poder, seremos também capazes de ver que as relações sociais anarquistas e as formas não-alienadas de ação estão em tudo ao nosso redor. E isto é crítico porque já mostra que o anarquismo é, já, e sempre tem sido, uma das principais bases da interação humana. Nós nos auto-organizamos e nos engajamos em ajuda mútua a todo tempo. Sempre o fizemos.


A definição de Graeber de "Anarquia", adequadamente, é bastante simples. É o que quer que seja que as pessoas decidam fazer, quaisquer arranjos dos inúmeros possíveis que elas façam ente si mesmas, quando não estão sendo ameaçadas com violência:


...um movimento político que visa produzir uma sociedade genuinamente livre - e que define uma "sociedade livre" como uma onde humanos entram apenas naqueles tipos de relações uns com os outros que não teriam que ser feitas cumprir pela ameaça constante de violência. A história tem mostrado que vastas desigualdades de riqueza, instituições como a escravidão, serivdão por dívida, ou trabalho assalariado, só podem existir se suportadas por exércitos, prisões, e polícia. Mesmo desigualdades estruturais mais profundas como o racismo e o sexismo são, em última instância, embasadas na (mais sútil e insidiosa) ameaça de força. Anarquistas, portanto, vislumbram um mundo baseado na igualdade e na solidariedade, em que seres humanos seriam livres para se associarem uns com outros para perseguir qualquer variedade infinita de visões, projetos e concepções do que elas acham valioso na vida. Quando as pessoas me perguntam que tipos de organização poderiam existir em uma sociedade anarquista, eu sempre respondo: qualquer forma de organização que se possa imaginar, e provavelmente muitas que atualmente não podemos, com apenas uma ressalva - elas estariam limitadas às que possam existir sem ninguém ter a capacidade, em nenhum momento, de chamar homens armados para aparecerem e dizer "eu não me importo o que você tem a dizer sobre isto; cale a boca e faça o que for mandado".


Graeber se considera um "anarquista com a minúsculo", do lado de quaisquer formas sociais em particular que pessoas livres e mutuamente anuentes organizem para si mesmas quando saírem debaixo do dedão da autoridade.


Eu estou menos interessado em descobrir que tipo de anarquista eu sou do que em trabalhar em amplas coalizões que operem de acordo com princípios anarquistas: movimentos que não estão tentando trabalhar através ou se tornarem governos; movimentos desinteressados em assumir o papel de instituições governamentais de facto, como organizações profissionais ou firmas capitalistas; grupos que foquem em tornar nossas relações uns com os outros um modelo do mundo que desejamos criar. Em outras palavras, pessoas trabalhando em direção a sociedades verdadeiramente livres. Afinal, é difícil descobrir exatamente que tipo de anarquismo faz mais sentido quando tantas questões só podem ser respondidas mais adiante na estrada. Haveria um papel para mercados em uma sociedade verdadeiramente livre? Como poderíamos saber? Eu mesmo estou confiante, embasado na história, que mesmo se tentássemos manter uma economia de mercado em tal sociedade livre - isto é, uma em que não haveria nenhum estado para fazer cumprir contratos, de forma que acordos viriam a ser baseados apenas na confiança - as relações econômicas rapidamente se metamorfoseariam em algo que libertários achariam completamente irreconhecível, e logo não se assemelhariam a qualquer coisa que estamos acostumados a pensar como um "mercado". Eu certamente não consigo imaginar ninguém concordando em trabalhar por salários se tiver quaisquer outras opções. Mas quem sabe, talvez eu esteja errado. Eu estou menos interessado em planejar com o que se pareceria a arquitetura detalhada de uma sociedade livre, do que em criar as condições que nos permitiriam descobrir.


* * *


Eu mesmo estou menos interessado em decidir que tipo de sistema econômico deveríamos ter em uma sociedade livre do que em criar os meios através dos quais as pessoas possam fazer tais decisões por elas mesmas.


É altamente improvável que isto acabasse parecendo qualquer modelo hifenizado monolítico em particular de anarquismo, como anarco-sindicalismo, anarco-comunismo, ou qualquer outra visão esquematizada de sociedade. Seria muito mais provável incluir uma mistura de todo tipo de coisas, a maioria das quais provavelmente já existe em forma nascente hoje em dia em todo nosso entorno. Além de economias de dádiva e de compartilhamento, /peer-production/, etc., poderia muito bem incluir elementos significativos de trocas de mercado - embora Graeber seja altamente cético que qualquer coisas remotamente que se assemelhe ao "anarco-capitalismo" pudesse vir a existir ou ser sustentado inteiramente através de acordos voluntários.


Mesmo o que agora parecem grandes e gritantes divisões ideológicas provavelmente se resolveriam bastante facilmente na prática. Eu costumava frequentar grupos de notícias na Internet nos anos 1990, que, na época, estavam cheios de criaturas que se denominavam "anarco-capitalistas". ...A maioria delas passava uma boa quantidade de seu tempo condenando anarquistas de esquerda como proponentes de violência. "Como você pode ser a favor de uma sociedade livre e ser contra o trabalho assalariado? Se eu quiser contratar alguém para colher meu tomates, como você vai me impedir exceto através da força?" Logicamente, então, qualquer tentativa de abolir o sistema de salário só pode ser feito cumprir por alguma nova versão da KGB. Ouve-se esses argumentos frequentemente. O que nunca se ouve, significantemente, é alguém dizer "Se eu quiser ser contratado para colher os tomates de alguém, como você vai me impedir exceto através da força?" Todo mundo parece imaginar que, em uma futura sociedade sem estado, eles, de alguma forma, vão acabar membros da classe empregadora. Ninguém parece pensar que eles serão os colhedores de tomates. Mas de onde, exatamente, eles imaginam que esses colhedores de tomates vão vir? Aqui pode-se empregar um pequeno experimento mental: vamos chamá-lo de parábola da ilha dividida. Dois grupos de idealistas reclamam, cada um, metade de uma ilha. Eles concordam em desenhar a fronteira de tal forma que há quantidades aproximadamente iguais de recursos em cada lado. Um grupo passa a criar um sistema econômico em que certos membros têm propriedade, outros não tem nenhuma, e aqueles que não tem nenhuma não tem quaisquer garantias sociais: eles serão deixados morrer de fome a menos que busquem emprego sob quaisquer termos que os ricos estejam dispostos a oferecer. O outro grupo cria uma sistema em que é garantido a todos pelo menos os meios básicos de existência, e acolhe todos os que chegam. Que possível razão aqueles previstos para serem o vigia noturno, os enfermeiros, e os mineradores de bauxita na sociedade anarco-capitalista teriam para ficar lá? Os capitalistas ficariam desprovidos de sua força de trabalho em uma questão de semanas. Como resultado, seriam forçados a patrulhar seus próprios terrenos, limpar seus próprios penicos, e operarem seu próprio maquinário pesado - isto é, a menos que eles rapidamente começassem a oferecer a seus trabalhadores um acordo tão extravagantemente bom que eles poderiam muito bem estar vivendo em uma utopia socialista afinal.


Por essa e por qualquer número de outras razões, estou certo que, na prática, qualquer tentativa de criar uma economia de mercado sem exércitos, polícia e prisões para suportá-la acabará não parecendo nada com o capitalismo muito rapidamente. Na verdade, eu suspeito fortemente que ela acabaria parecendo muito pouco com o que estamos acostumados a pensar como um mercado. Obviamente eu poderia estar errado. É possível que alguém tente isso, e os resultados sejam muito diferentes do que eu imaginei. Caso no qual, tudo bem, eu estarei errado. Sobretudo, eu estou interessado em criar as condições em que podemos descobrir.


(Vale a pena manter em mente que o "acordo voluntário" ente Robinson Crusoé e "Sexta-Feira" foi possível apenas porque Crusoé foi capaz de reclamar "propriedade" sobre toda a ilha com a ajuda de uma arma.)


Graeber está razoavelmente confiante na capacidade das pessoas medianas de organizar maneiras de conviverem na ausência de autoridade. Os casos em que o colapso de um estado resulta em uma Hobbesiana "guerra de todos contra todos", como a Somália, são na realidade uma minoria. A violência na Somália resultou principalmente do fato de que o estado colapsou em meio a uma guerra pré-existente entre grandes chefes militares, que continuaram a lutar após o estado ter colapsado.


Mas na maioria dos casos, como eu mesmo observei em partes rurais de Madagascar, muito pouco acontece. Obviamente, as estatísticas estão indisponíveis, uma vez que a ausência de estados geralmente também significa a ausência de qualquer um levantando estatísticas. No entanto, eu falei com muitos antropólogos e outros que estiveram em tais lugares e seus relatos são surpreendentemente similares. A polícia desaparece, as pessoas param de pagar impostos e, de outra forma, elas praticamente continuam como faziam antes. Certamente elas não entram em uma Hobbesiana "guerra de todos contra todos".


Como resultado, nós quase nunca ouvimos falar de tais lugares...


Então, a verdadeira questão que termos que perguntar se torna: o que é que a experiência de viver sob um estado, isto é, em uma sociedade em que as regras são feitas cumprir por ameaça de prisões e pela polícia, e todas as formas de desigualdade e alienação que isso torna possível, que faz ela parecer óbvio para nós que as pessoas, sob tais condições se comportariam de uma maneira que, no final das contas, elas realmente não se comportam?


A resposta anarquista é simples. Se você trata pessoas como crianças, elas tenderão a agir como crianças. O único método bem sucedido que qualquer um jamais inventou de encorajar outros a agirem como adultos é tratá-los como se já o fossem. Não é infalível. Nada é. Mas nenhuma outra abordagem tem qualquer chance real de sucesso. E a experiência histórica do que realmente acontece em situações de crise demonstra que mesmo aqueles que não cresceram em uma cultura de democracia participativa, se você lhes tirar suas armas ou sua capacidade de chamar seus advogados, podem repentinamente se tornar extremamente razoáveis. Isto é tudo que os anarquistas realmente estão propondo fazer.


Então o anarquismo não é apenas uma grandiosa teoria que foi inventada por algum pensador de alto escalão, como Marx no Museu de Londres. É o que as pessoas realmente fazem.


Os princípios básicos do anarquismo - auto-organização, associação voluntária, ajuda mútua - se referem a formas de comportamento que elas [as chamadas "figuras fundadoras" do pensamento anarquista do século XIX] assumiam ter existido há quase tanto tempo quanto a humanidade.



quinta-feira, 11 de junho de 2015

A Natureza do Estado

A Natureza do Estado
[Liberty, 22 de Outubro de 1887.]

Abaixo está reproduzida, extraída do Jus de Londres, a resposta de F. W. Read ao editorial no nº 104 da Liberty, entitulado "Contrato ou organismo, o que é para nós?".

Ao Editor do Jus:

Senhor, - Em relação às críticas do Sr. Tucker sobre as minhas cartas na Jus que lidam com a Tributação Voluntária, o princípio de um organismo de Estado parece estar no fundo da controvérsia. Eu lidarei, portanto, com isso primeiro, embora venha por último no artigo do Sr. Tucker. O Sr. Tucker questiona se o Estado ser um organismo o torna permanente e isento de dissolução. Certamente não; eu nunca disse que o faria. Mas o Sr. Tucker não pode ver que dissolver um organismo é algo diferente de dissolver uma coleção de átomos sem qualquer estrutura orgânica? Se as pessoas de um Estado tivessem sido jogadas juntas ontem ou anteontem, nenhum dano em particular viria de separá-las em numerosas secções independentes; mas quando um povo cresceu junto, geração após geração, e século após século, quebrar as adaptações e correlações que foram estabelecidas dificilmente pode ser gerador de quaisquer bons resultados. O tigre é um organismo, diz o Sr. Tucker, mas se baleado, ele rapidamente será desorganizado. Isso mesmo; mas ninguém supõe que os átomos do corpo do tigre derivam qualquer benefício do processo. Por que os átomos do corpo político deveriam derivar qualquer vantagem da dissolução do organismo do qual eles formam uma parte? Que o Sr. Tucker coloque o Estado no mesmo nível que igrejas e companhias de seguro é simplesmente espantoso. O Sr. Tucker realmente acha que cinco ou seis "Estados" poderiam existir lado a lado com a mesma conveniência que um número igual de igrejas? A dificuldade de determinar a qual "Estado" um indivíduo pertenceria seria praticamente insuperável. Como deve-se lidar com agressões e roubos? Um homem deveria ser julgado pelo "Estado" do qual ele é um cidadão, ou pelo "Estado" da parte ofendida? Se pelo seu próprio, como um policial desse "Estado" saberia se um certo indivíduo pertence a ele ou não? As dificuldades são tão enormes que o Estado seria logo reformado nas linhas antigas. Uma outra grande dificuldade seria que o Estado se encontraria impossibilitado de fazer um contrato. Se o Estado é considerado como uma mera coleção de indivíduos, quem emprestará dinheiro à segurança do Estado? A razão pela qual o Estado tem qualquer confiança das pessoas é porque ele é considerado como algo acima e além dos indivíduos que ocorrem de compô-lo em qualquer dado momento; porque sentimos que, enquanto indivíduos morrem, o Estado permanece, e que o Estado honrará os contratos do Estado, mesmo se feitos por propósitos que são desaprovados por aqueles que são os átomos do organismo do Estado. Eu tenho, de fato, ouvido dizer que seria uma coisa boa se o Estado realmente se encontrasse impossibilitado de empenhar seu crédito; mas o bom crédito parece tão útil para um Estado quanto para um indivíduo. Novamente, não é nenhuma vantagem para nós sermos capazes de fazer tratos com países estrangeiros? Mas que país fará um tratado com uma mera massa de indivíduos, uma grande porção dos quais ter-se-á ido no tempo de dez anos?

Mas afora a questão de organismo ou não organismo, a história não nos mostra um enfraquecimento contínuo do Estado em algumas direções, e um fortalecimento contínuo em outras direções? Encontramos um desaparecimento gradual do desejo de "fornecer invasão em vez de proteção" e, na medida em que o Estado deixe de fazê-lo, tão mais verdadeiramente forte ele de fato se torna, e tão mais vigorosamente ele de fato desempenha o que eu considero sua função última, - aquela de proteger alguns contra a agressão de outros.

Uma palavra em conclusão quanto à restrição de poder do Estado. Claro, por restrição eu quero dizer restrição legal. Por exemplo, você não poderia privar o Estado de seu poder de taxação passando uma lei neste sentido. Os autores do Ato de União entre a Grã-Bretanha e a Irlanda tentaram restringir o poder do Estado de desestabelecer a Igreja Irlandesa; mas a Igreja Irlandesa foi desestabelecida mesmo assim. O que os Individualistas estão tentando fazer é mostrar ao Estado que, quando ele regula fábricas e minas de carvão, e mil e uma outras coisas, ele está agindo contra seus interesses. Quando o Estado tiver aprendido a lição, a intromissão cessará. Se o Sr. Tucker escolher chamar isso de restringir o Estado, ele pode fazê-lo; eu não.

Sinceramente, etc.

F W. Read

Em resposta a alegação do Sr. Read (que, se, com todas suas implicações, fosse verdadeira, seria uma resposta válida e final aos Anarquistas) de que "dissolver um organismo é algo diferente de dissolver uma coleção de átomos sem qualquer estrutura orgânica", eu não posso fazer melhor do que citar a seguinte passagem de um artigo de J. Wm Lloyd no nº 107 da Liberty:

Parece-me que este universo não é nada além de um vasto agregado de indivíduos; de indivíduos simples e primários, e de indivíduos complexos, secundários, terciários, etc. formados pelo agregamento de indivíduos primários ou de indivíduos de um grau menor de complexidade. Alguns destes indivíduos de um alto grau de complexidade são indivíduos verdadeiros, concretos, de tal forma unidos que os organismos menores inclusos não podem existir separados do organismo principal; ao passo que outros são imperfeitos, discretos, os organismos inclusos existindo razoavelmente bem, tão bem, ou melhor separados do que unidos. Na primeira classe estão inclusas muitas das formas mais altas da vida vegetal e animal, incluindo o homem, e na última estão inclusas muitas das formas mais baixas de vida vegetal e animal (capim, tênias, etc.), e a maioria dos organismos societários, governos, nações, igrejas, exércitos, etc.

Assumindo essa visão incontestável da questão, se torna claro que a alegação do Sr. Read sobre "dissolver um organismo" é inverídica enquanto a palavra organismo permanecer sem ser qualificada por algum adjetivo equivalente ao concreto do Sr. Lloyd. A questão, então, é se o Estado é um organismo concreto. Os Anarquistas alegam que não é. Se o Sr. Read acha que é, o onus probandi está sobre ele. Eu julgo que seu erro surge de uma confusão do Estado com a sociedade. Que a sociedade é um organismo concreto os Anarquistas não negam; pelo contrário, eles insistem nisso. Consequentemente, eles não têm qualquer intenção ou desejo de aboli-la. Eles sabem que sua vida é inseparável da vida dos indivíduos; que é impossível destruir uma sem destruir a outra. Mas, embora a sociedade não possa ser destruída, ela pode ser grandemente dificultada e impedida em suas operações, muito para a desvantagem dos indivíduos que a compõem, e encontra seu principal impedimento no Estado. O Estado, ao contrário da sociedade, é um organismo discreto. Se ele fosse destruído amanhã, os indivíduos ainda continuariam a existir. A produção, a troca, e a associação continuariam como antes, mas muito mais livremente, e todas aquelas funções sociais das quais o indivíduo é dependente operariam em seu nome de forma mais útil do que nunca. O indivíduo não está relacionado ao Estado como a pata do tigre está relacionada ao tigre. Mate o tigre, e a pata do tigre não mais desempenha sua função; mate o Estado, e o indivíduo ainda vive e satisfaz seus desejos. Quanto à sociedade, os Anarquistas não a matariam se pudessem, e não poderiam se quisessem.

O Sr. Read acha espantoso que eu "coloque o Estado no mesmo nível de igrejas ou companhia de seguro". Eu acho seu espanto divertido. Crentes de sistemas religiosos compulsórios ficaram espantados quando primeiro se propôs colocar a igreja no mesmo nível de outras associações. Agora, o único espanto é - pelo menos nos Estados Unidos - que se permita que a igreja fique em quaquer outro nível. Mas a superstição política substituiu a superstição religiosa, e o Sr. Read está sob sua influência.

Eu não acho que "cinco ou seis 'Estados' poderiam existir lado a lado com" exatamente "a mesma conveniência que um número igual de igrejas". Nas relações com as quais os Estados têm a ver há mais chance de fricção do que simplesmente na esfera religiosa. Mas, por outro lado, a fricção resultante de uma multiplicidade de Estados não seria nada além de um montículo comparado com a montanha de opressão e injustiça que é gradualmente amontoada por um único Estado compulsório. Não seria necessário que um policial de um "Estado" voluntário soubesse a qual "Estado" um dado indivíduo pertenceria, ou se ele pertenceria a qualquer um. "Estados" voluntários poderiam, e provavelmente iriam, autorizar seus agentes a proceder contra invasão, não importa quem o invasor ou invadido pudessem ser. O Sr. Read provavelmente objetará que o "Estado" ao qual o invasor pertencesse poderia considerar sua prisão como, ela mesma, uma invasão, e proceder contra o "Estado" que o prendeu. A antecipação de tais conflitos provavelmente resultaria exatamente naqueles tratados entre "Estados" que o Sr Read vê como tão desejáveis, e mesmo no estabelecimento de tribunais federais, como cortes de último recurso, através da cooperação dos vários "Estados", e sobre o mesmo princípio voluntário de acordo com o qual os próprios "Estados" foram organizados.

A tributação voluntária, longe de prejudicar o crédito do "Estado", o fortaleceria. Em primeiro lugar, a simplificação de suas funções reduziria grandemente, e talvez aboliria completamente, sua necessidade de tomar emprestado, e o poder de tomar emprestado é geralmente inversamente proporcional à constância da necessidade. É usualmente o tomador de empréstimos inveterado que carece de crédito. Em segundo lugar, o poder do Estado de repudiar, e ainda continuar seu negócio, é dependente de seu poder de tributação compulsória. Ele sabe que, quando não pode mais tomar emprestado, ele pode, pelo menos, tributar seus cidadãos ao limite da revolução. Em terceiro lugar, o Estado tem confiança, não porque está acima e além dos indivíduos, mas porque o emprestador presume que ele deseja manter seu crédito e irá, portanto, pagar suas dívidas. Este desejo por crédito será mais forte em um "Estado" sustentado pela tributação voluntária do que no Estado que força a tributação.

Todas as objeções apresentadas pelo Sr. Read (exceto o argumento do organismo) são meras dificuldades de detalhes administrativos, a serem superadas com engenhosidade, paciência, discrição e expedientes. Elas não são dificuldades lógicas, nem dificuldades de princípio. Elas parecem "enormes" para ele; mas assim pareciam as dificuldade da liberdade pensamento dois séculos atrás. O que ele acha das dificuldades do regime existente? Aparentemente ele é tão cego a elas quanto o Católico Romano para a dificuldade de uma religião do Estado. Todas estas "enormes" dificuldades que surgem na fantasia dos objetores do princípio voluntário desaparecerão sob a influência das mudanças econômicas e da prosperidade bem distribuída que se seguirá à adoção desse princípio. Isto é o que Proudhon chama de "a dissolução do governo no organismo econômico". É um assunto vasto demais para consideração aqui, mas, se o Sr. Read deseja entender a teoria Anarquista do processo, que ele estude esse mais maravilhoso de todos os maravilhosos livros de Proudhon, o "Idée Générale de la Révolution au Dix-Neuvième Siècle".

É verdade que "a história (...) nos mostra um enfraquecimento contínuo do Estado em algumas direções, e um fortalecimento contínuo em outras direções". Pelo menos, tal é a tendência, falando de modo geral, embora esta continuidade às vezes seja quebrada por períodos de reação. Esta tendência é simplesmente o progresso da evolução em direção a Anarquia. O Estado invade cada vez menos, e protege cada vez mais. É exatamente na linha deste processo, e no fim dele, que os Anarquistas demandam o abandono da última citadela de invasão através da substituição da tributação compulsória pela voluntária. Quando este passo for tomado, o "Estado" atingirá sua força máxima como um protetor contra a agressão, e mante-la-á enquanto seus serviços forem necessários para isso.

Se o Sr. Read, ao dizer que o poder do Estado não pode ser restringido, quiser dizer simplesmente que ele não pode ser legalmente restringido, sua observação não tem qualquer aptidão como uma resposta aos Anarquistas e aos tributaristas voluntários. Eles não propõem restringi-lo legalmente. Eles propõem criar um sentimento público que tornará impossível que o Estado recolha impostos através da força ou de qualquer outra maneira invada o indivíduo. Considerando o Estado como um instrumento de agressão, eles não esperam convencê-lo que a agressão é contra seus interesses, mas eles de fato esperam convencer indivíduos de que é contra seus interesses serem invadidos. Se, através destes meios, ele forem bem sucedidos em despojar o Estado de seus poderes invasivos, eles estarão satisfeitos, e é irrelevante para eles se os meios são descritos pela palavra "restringir" ou por alguma outra palavra. Na verdade, eu me empenhei nesta discussão em me acomodar à fraseologia do Sr. Read. De minha parte, não acho apropriado chamar associações voluntárias de Estados, mas, colocando a palavra entre aspas, eu assim a usei porque o Sr. Read estabeleceu o exemplo.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Sobre Racismo Reverso: Três Experimentos Mentais

Sobre Racismo Reverso: Três Experimentos Mentais

Para algumas pessoas, especialmente na direita, o racismo reverso é exatamente tão sério e problemático quando o racismo regular. Para outras, especialmente na esquerda, o racismo reverso é impossível; uma pessoa negra, digamos, pode ser hostil ou preconceituosa em relação a pessoas brancas, mas não pode contar como racista em relação a elas.

Esta discordância é devida, em parte, a uma discordância maior quanto a se o racismo, e/ou a maldade do racismo, é essencialmente um questão de atitudes e ações individuais, ou essencialmente uma questão de relações sistemáticas de poder. E as mesmas questões surgem com sexismo, heterossexismo, cissexismo, e assim por diante.

Eu creio que ambos os lados estão errados. Isto é, eu creio que o racismo reverso (juntamente com o sexismo, etc) é a) possível e real, mas b) menos seriamente problemático que o tipo regular. Deixe-me dizer por quê.

Começarei com um experimento mental projetado para convencer quem já aceita a existência do racismo (etc.) reverso, que ele é menos seriamente problemático do que o tipo regular.

Experimento Mental #1: A Barraca de Hamburguer de Bobby Shafto


Bobby Shafto tem uma estranha obsessão com sardas, especificamente sardas no rosto. Ele gosta de pessoas com um número par de sardas no rosto. (Isso inclui pessoas sem quaisquer sardas no rosto, uma vez que zero é um número par.) Mas ele tem uma aversão em relação a pessoas com um número ímpar de sardas no rosto, e recusa a deixá-las entrar em sua Barraca de Hamburguer, seja como empregadas ou como clientes. Em seu mundo, que vamos supor que seja o nosso também, o preconceito particular de Shaft é, claro, bem pouco comum. Mas na Terra Gêmea, vamos dizer, o mesmo preconceito é amplamente compartilhado entre as pessoas com sardas pares e, como as pessoas com sardas pares comandam a maior parte do poder político e econômico, elas são capazes de tornar seu preconceito efetivo.

Suponha que Bobby Shafto e sua estranha política de discriminação realmente exista em algum lugar. Poderíamos bem desaprovar. Mas quão preocupads estaríamos com ela? Não muito, eu suspeito. E a razão não é difícil de encontrar: o preconceito de Shafto é tão raro que causa muito pouco dano geral; é fácil o suficiente encontrar outros lugares para se trabalhar e comer.

Em comparação, quando consideramos o cenário da Terra Gêmea em que o preconceito de Shafto é a norma entre as pessoas com poder econômico e político, então as escolhas de vida de pessoas com sardas ímpares começariam a ser sistematicamente restringidas, e o preconceito em questão começaria a parecer como algo que necessita ser condenado e combatido de uma forma séria e organizada. (Tal combate não precisa, necessariamente, tomar a forma de coerção legal; mas esta é uma questão distinta.)

Quando eu digo que o preconceito contra pessoas com sardas ímpares é um mal pior na Terra Gêmea do que em nosso mundo, eu não quero apenas dizer que ele tem consequências piores (embora isso seja parte do que eu quero dizer). Eu também quero dizer que ele evidencia um motivo e um caráter piores - uma vez que envolve intencionalmente contribuir para a opressão contínua, de uma maneira que Shaft não o faz.

Então a discriminação contra as pessoas com sardas ímpares é um mal sério na Terra Gêmea; mas nosso mundo não é a Terra Gêmea. E, considerando Bobby Shafto em nosso mundo - Bobby Shafto, o estranhão excêntrico isolado -, eu pergunto a quem pensa que o racismo reverso é tão seriamente problemático quanto o racismo regular, se els também pensam que a política de discriminação de Shafto é tão seriamente problemática quanto o racismo regular. Se - como eu prevejo - a maioria não concordar, isso pareceria mostrar que els estão comprometids a reconhecer que a maldade do racismo é, pelo menos em grande parte, uma questão de restringir sistematicamente as opções das pessoas - de sua opressão, no sentido de Marilyn Frye. Mas isso significa que o racismo reverso - isto é, o racismo por parte de um grupo oprimido contra um grupo não-oprimido - não pode ser um mal tão sério quanto o racismo por parte de um grupo não-oprimido contra um grupo oprimido.

Meu argumento pressupõe, claro, que pessoas negras são um grupo oprimido e que pessoas brancas não o são. (E assim também, mutatis mutandis, para mulheres e homens, etc.) Obviamente algumas das pessoas que se preocupam com o racismo reverso negarão essa suposição. Eu acho que elas são loucas de negar isso, mas este é um debate no qual não vou entrar aqui. Para os propósito deste posto, eu estou me dirigindo a quem concede que pessoas negras são oprimidas, ao passo que pessoas brancas (enquanto brancas) não o são, mas que, não obstante, consideram o racismo regular e o racismo reverso como igualmente ruins. O ponto da minha comparação entre Bobby Shafto e a Terra Gêmea é convencer defensors dessa posição de que não podem mantê-la consistentemente.

Permitam-me passar agora ao segundo grupo - quem nega a possibilidade do racismo reverso, sobre o fundamento de que o racismo é essencialmente sobre a opressão sistemática e institucional, não meramente sobre atitudes individuais. A crítica usual a esta visão é que ela conflita com o uso comum. Essa crítica é, creio eu, forte, mas não tão forte quanto quem a propõe supõe.

Por que o apelo do uso comum é forte? Porque o uso padrão da palavra "racismo" na linguagem comum realmente trata as atitudes individuais como suficientes (mesmo se não necessárias) para o racismo. Claro, as pessoas estão livres para dar à palavra "racismo" um sentido especial enquanto termo técnico se referindo exclusivamente ao racismo institucional; mas se isso é tudo que elas estão fazendo, então elas não têm direito de criticar outras que usam o termo da maneira comum. Por analogia, o termo "tropo"NT01, como usado em minha profissão, significa algo radicalmente diferente de seu(s) uso(s) em quase qualquer outro lugar (seja na retórica, na teoria literária, ou na linguagem comum); mas seria tolo de minha parte criticar quem não a usa da forma que filósofs analítics o fazem.

Por que o apelo ao uso comum não é necessariamente decisivo? Porque o uso comum de um termo pode ser legitimamente rejeitado se ocorrer de haver algo errado com esse uso - como eu argumentei ser o caso com, por exemplo, o termo "capitalismo".

Mas qualquer coisa errada com o uso comum de "racismo"? Ele permite a possibilidade de racismo reverso, claro, mas há qualquer coisa errada com fazer isso? Pode-se pensar que sim, se pensar-se que reconhecer o racismo reverso como uma categoria comprometeria a pessoa a considerar o racismo reverso como comparável ao racismo regular, seja em abrangência ou em seriedade moral; mas não existe qualquer comprometimento do tipo. (Que a existência do racismo reverso não implica em ele ser comparável em seriedade moral ao racismo regular era a moral do meu experimento mental com Bobby Shafto acima.) Claro, o tipo de pessoas que tendem a bater na tecla do racismo reverso tipicamente consideram sim ele como comparável, tanto em abrangência quanto em seriedade moral, ao racismo regular; mas não precisamos negar a existência de uma categoria a fim de negar que a categoria tem a significância que quem está mais investide na categoria geralmente atribui a ela.

Uma outra razão que poder-se-ia ter para rejeitar o uso comum de "racismo" é simplesmente a necessidade de um termo que transmita as dimensões sistemáticas e institucionais do problema; se "racismo" como comumente usado não faz isso, talvez devêssemos mudá-lo de maneira que o faça. Mas, na verdade, nós temos termos que fazem o truque, tais como "opressão", "privilégio branco", e (mutatis mutandis) "patriacado". Esses termos são todos assimétricos; "racismo" não precisa ser (nem, por exemplo, "sexismo").

Em todo cado, insistir que nada conta como racismo a menos que envolva opressão sistemática e institucional tem algumas consequências que mesmo quem assume essa visão deveria achar estranhas. Isto me leva ao meu segundo experimento mental.

Experimento Mental #2: Dono do Homem das Cavernas Descongelado


Pegue alguém que você pense que seja obviamente racista; presumivelmente Donald Sterling vai dar conta (ele também é machista, então este exemplo pode ter função dupla), mas escolha outra pessoa se quiser. Agora suponha que, ao excursionar por uma instalação de criogenia, ele caia no tanque e seja instantaneamente congelado. Quando ele é revivido, muitos anos (décadas? séculos? milênios?) se passaram, e ele acorda em um mundo em que a verdadeira igualdade racial (assim como de gênero, etc.) finalmente foi alcançada. Mas todas as atitudes de Sterling continuam as mesmas que eram no começo do século XXI. Sterling não é mais um racista (o mesmo vale para machista)?

Se o racismo necessariamente envolve relações de poder que permeiam toda a sociedade, então Sterling, no meu exemplo, não é um racista uma vez que acorde, já que as relações de poder em questão se foram. Mas parece bizarro negar que o Sterling do futuro, com todas suas atitudes inalteradas daquelas do Sterling do presente, é um racista. Eu não quero só dizer que parece bizarro para mim. Antes, estou predizendo (sujeito, claro, a falsificação) que mesmo aquels (ou a maioria daquels) que são atraíds pela negação da possibilidade do racismo reverso acharão plausível pensar sobre o Sterling do futuro como um racista. Mas se ele é um racista, então o racismo não depende essencialmente da opressão sistemática (mesmo se muito do interesse moral no racismo provenha de tal opressão), e assim o argumento principal contra a possibilidade do racismo reverso deve ser abandonado.

Mas talvez será dito que o Sterling do futuro conta como um racista apenas porque suas crenças e atitudes foram formadas em um contexto social de privilégio branco e, assim, ainda são definidas por sua origem. Bem, nesse caso, vamos considerar um último experimento mental.

Experimento Mental #3: O Perigo Vermelho e Amarelo


Dois grupos étnicos distintos, os Winkies e os Quadlings, vivem em territórios adjacentes. Cada lado considera o outro como degenerads racialmente inferiores que merecem ser ou subjugads ou exterminads. Os dois estão em constante guerra um com o outro, mas como estão aproximadamente igualados, nenhum lado teve sucesso em dominar o outro. Os Winkies e os Quadling não são racistas?

O ódio racial mútuo entre os Winkies e os Quadlings parece como o tipo de situação para o qual o termo "racismo" foi feito sob medida para descrever. Mas, ao passo que cada lado busca dominação, nenhum a tem. Não há nenhuma desigualdade, nenhum privilégio, nenhuma opressão. Então o racismo, sugiro eu, não precisa envolver esses. Caso no qual o racismo reverso é possível. Embora não seja necessariamente grandes coisas.

NOTAS

[NT01] Além do link fornecido pelo autor, vide também os diferentes significado em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tropo_(filosofia) , http://pt.wikipedia.org/wiki/Tropo, e http://en.wiktionary.org/wiki/trope#English