segunda-feira, 29 de junho de 2015

O Pensamento Anarquista de David Graeber: Um Exame

O Pensamento Anarquista de David Graeber: Um Exame

Introdução: A Primazia da Vida Cotidiana



David Graeber escolheu, como epígrafe de seu livro Fragmentos de uma Antropologia Anarquista, uma citação do artigo sobre Anarquismo de Pyotr Kropotkin para a Encyclopedia Britannica. Nele Kropotkin afirma que, em uma sociedade anarquista, a harmonia seria


obtida, não por submissão à lei, ou pela obediência a qualquer autoridade, mas por acordos livres celebrados entre os vários grupos, territoriais e profissionais, livremente constituídos por questões de produção e consumo, como também pela satisfação da infinita variedade de necessidades e aspirações de um ser civilizado.


A coisa interessante sobre isso é que ele poderia servir como uma descrição precisa de virtualmente qualquer sociedade anarquista, incluindo o tipo comunista libertário favorecido por Kropotkin, Goldman ou Malatesta, o tipo de anarco-sindicalismo favorecido pela maioria dos Wobblies e da CNT, o anarco-coletivismo de Bakunin, o mutualismo de Proudhon, ou o anarquismo de mercado de Thomas Hodgskin e Benjamin Tucker. E é apropriado que Graeber tenha escolhido ele como sua epígrafe, porque sua afeição por "grupos livremente constituídos" e "acordos livres" celebrados entre eles é maior do que qualquer tentativa doutrinária de classificar tais grupos e acordos como firmas empresariais operando no nexo monetário ou como coletivos sem moeda.


Graeber, como já vimos ser o caso com Elinor Ostrom, é caracterizado, acima de tudo, por uma fé na criatividade e na agência humana, e uma relutância em deixar formulações teóricas a priori impedirem suas percepções tanto sobre a particularidade quanto sobre "existência"NT01 da história, ou interferirem com a capacidade de agrupamentos comuns e face-a-face de pessoas no local desenvolverem arranjos funcionais - quaisquer que possam ser - entre si mesmas. Graeber é um daqueles pensadores anarquistas (ou anarquistescos) que, apesar de possivelmente se identificarem com uma variante hifenizada do anarquismo, tem uma afeição pela variedade e pela particularidade de instituições auto-organizados e de escala humana que vai além do rótulo ideológico. Essas pessoas, igualmente, vêem os relacionamentos entre seres humanos individuais de formas que não podem ser reduzidas a simples abstrações como o nexo monetário ou o socialismo doutrinário.


Se nós realmente queremos entender os fundamentos morais da vida econômica e, por extensão, da vida humana, parece-me que precisamos começar...  com as coisas bem pequenas: os detalhes cotidianos da existência social, a maneira como tratamos nossos amigos, inimigos e filhos - frequentemente com gestos tão minúsculos (passar o sal, pedir um cigarro) que normalmente nunca sequer paramos para pensar sobre eles. A antropologia tem nos mostrado exatamente quão diferentes e numerosas são as maneiras em que sabe-se que humanos se organizam. Mas ela também revela algumas notórias semelhanças...


O anarquismo de Graeber é, acima de todo resto, centrado em humanos. Ele implica em uma alta consideração pela atividade e razoabilidade humanas. Em vez de ajustar seres humanos reais a algum paradigma anarquista idealizado, ele exibe uma abertura a - e uma celebração de - o que quer que seja que seres humanos possam realmente fazer ao exercitar essa atividade e razoabilidade. A anarquia não é o que as pessoas farão "após a Revolução", quando algum tipo de "Novo Homem Anarquista" tiver emergido a quem se possa confiar autonomia; é o que elas fazer agora mesmo. "Anarquistas são simplesmente pessoas que acreditam que seres humanos são capazes de se comportarem de uma maneira razoável sem terem que ser forçados a isso."


Em sua forma mais simples, as crenças anarquistas se ligam a duas suposições elementares. A primeira é que seres humanos são, sob circunstâncias normais, tão razoáveis e decentes quanto se permite que sejam, e podem organizar a si mesmos e às suas comunidades sem que se precise lhes dizer como. A segunda é que o poder corrompe. Acima de tudo, o anarquismo é apenas um questão de ter a coragem de tomar os simples princípios de decência através dos quais todos nós vivemos, e segui-los até suas conclusões lógicas. Por mais estranho que isso possa parecer, das maneiras mais importantes você provavelmente já é um anarquista - você apenas não percebeu.


Vamos começar tomando alguns exemplos da vida cotidiana.


  • Se há uma fila para entrar em um ônibus lotado, você espera sua vez e se abstém de acotovelar as pessoas para abrir caminho na ausência da polícia?


Se você responder "sim", então você está acostumado a agir como um anarquista! O princípio anarquista mais básico é a auto-organização: a suposição de que seres humanos não precisam ser ameaçados com processos a fim de que sejam capazes de chegar a entendimentos razoáveis uns com os outros, ou de tratar uns aos outros com dignidade e respeito...


Para encurtar um longa história: anarquistas acreditam que sobretudo é o próprio poder, e os efeitos do poder, que tornam as pessoas estúpidas e irresponsáveis.


  • Você é membro de um clube ou de um time esportivo ou qualquer outra organização voluntária em que as decisões não são impostos por um líder, mas feitas na base do consenso geral?


Se você respondeu "sim", então você pertence a uma organização que trabalha sobre princípios anarquistas! Outro princípio anarquista básico é a associação voluntária. Isto é simplesmente uma questão de aplicar os princípios democráticos à vida comum. A única diferença é que anarquistas acreditam que deveria ser possível ter uma sociedade em que tudo pudesse ser organizado de acordo com essas linhas, todos os grupos baseados no livre consentimento de seus membros e, portanto, que todos os estilos top-down e militares de organização, como exércitos, burocracias ou grandes corporações, baseados em cadeias de comando, não seriam mais necessários. Talvez você não acredite que isso seja possível. Talvez você acredite. Mas toda vez que você chega a um acordo através de consenso, em vez de ameaças, toda vez que você faz um acordo voluntário com uma outra pessoa, chega a um entendimento, ou chega a um compromisso dando a devida consideração à situação e às necessidades particulares da outra pessoa, você está sendo um anarquista - mesmo se você não perceber.


O anarquismo é apenas a maneira que as pessoas agem quando elas são livres para fazer o que escolherem, e quando elas lidam com outras que são igualmente livres - e, portanto, estão cientes da responsabilidade para com as outras que isso implica.


A abordagem de Graeber quanto à forma de uma hipotética sociedade anarquista é simples: retire todas as formas de dominação, ou de autoridade unilateral e não responsiva por parte de algumas pessoas sobre outras, coloque as pessoas juntas, e veja com o que elas aparecem.


Como veremos posteriormente, Graeber critica visões totalizantes e idealizadas do estado. Similarmente, a própria anarquia, em vez de um sistema totalizante, é apenas uma maneira das pessoas interagirem umas com as outras, e isso (como Colin Ward...) está em tudo em torno ao nosso redor agora.


Poderíamos começar com um tipo de sociologia de micro-utopias, a contraparte de uma tipologia paralela de formas de alienação, formas alienadas e não-alienadas de ação... O momento em que paramos de insistir em ver todas as formas de ação apenas através de sua função de reproduzir formas maiores e totais de desigualdade de poder, seremos também capazes de ver que as relações sociais anarquistas e as formas não-alienadas de ação estão em tudo ao nosso redor. E isto é crítico porque já mostra que o anarquismo é, já, e sempre tem sido, uma das principais bases da interação humana. Nós nos auto-organizamos e nos engajamos em ajuda mútua a todo tempo. Sempre o fizemos.


A definição de Graeber de "Anarquia", adequadamente, é bastante simples. É o que quer que seja que as pessoas decidam fazer, quaisquer arranjos dos inúmeros possíveis que elas façam ente si mesmas, quando não estão sendo ameaçadas com violência:


...um movimento político que visa produzir uma sociedade genuinamente livre - e que define uma "sociedade livre" como uma onde humanos entram apenas naqueles tipos de relações uns com os outros que não teriam que ser feitas cumprir pela ameaça constante de violência. A história tem mostrado que vastas desigualdades de riqueza, instituições como a escravidão, serivdão por dívida, ou trabalho assalariado, só podem existir se suportadas por exércitos, prisões, e polícia. Mesmo desigualdades estruturais mais profundas como o racismo e o sexismo são, em última instância, embasadas na (mais sútil e insidiosa) ameaça de força. Anarquistas, portanto, vislumbram um mundo baseado na igualdade e na solidariedade, em que seres humanos seriam livres para se associarem uns com outros para perseguir qualquer variedade infinita de visões, projetos e concepções do que elas acham valioso na vida. Quando as pessoas me perguntam que tipos de organização poderiam existir em uma sociedade anarquista, eu sempre respondo: qualquer forma de organização que se possa imaginar, e provavelmente muitas que atualmente não podemos, com apenas uma ressalva - elas estariam limitadas às que possam existir sem ninguém ter a capacidade, em nenhum momento, de chamar homens armados para aparecerem e dizer "eu não me importo o que você tem a dizer sobre isto; cale a boca e faça o que for mandado".


Graeber se considera um "anarquista com a minúsculo", do lado de quaisquer formas sociais em particular que pessoas livres e mutuamente anuentes organizem para si mesmas quando saírem debaixo do dedão da autoridade.


Eu estou menos interessado em descobrir que tipo de anarquista eu sou do que em trabalhar em amplas coalizões que operem de acordo com princípios anarquistas: movimentos que não estão tentando trabalhar através ou se tornarem governos; movimentos desinteressados em assumir o papel de instituições governamentais de facto, como organizações profissionais ou firmas capitalistas; grupos que foquem em tornar nossas relações uns com os outros um modelo do mundo que desejamos criar. Em outras palavras, pessoas trabalhando em direção a sociedades verdadeiramente livres. Afinal, é difícil descobrir exatamente que tipo de anarquismo faz mais sentido quando tantas questões só podem ser respondidas mais adiante na estrada. Haveria um papel para mercados em uma sociedade verdadeiramente livre? Como poderíamos saber? Eu mesmo estou confiante, embasado na história, que mesmo se tentássemos manter uma economia de mercado em tal sociedade livre - isto é, uma em que não haveria nenhum estado para fazer cumprir contratos, de forma que acordos viriam a ser baseados apenas na confiança - as relações econômicas rapidamente se metamorfoseariam em algo que libertários achariam completamente irreconhecível, e logo não se assemelhariam a qualquer coisa que estamos acostumados a pensar como um "mercado". Eu certamente não consigo imaginar ninguém concordando em trabalhar por salários se tiver quaisquer outras opções. Mas quem sabe, talvez eu esteja errado. Eu estou menos interessado em planejar com o que se pareceria a arquitetura detalhada de uma sociedade livre, do que em criar as condições que nos permitiriam descobrir.


* * *


Eu mesmo estou menos interessado em decidir que tipo de sistema econômico deveríamos ter em uma sociedade livre do que em criar os meios através dos quais as pessoas possam fazer tais decisões por elas mesmas.


É altamente improvável que isto acabasse parecendo qualquer modelo hifenizado monolítico em particular de anarquismo, como anarco-sindicalismo, anarco-comunismo, ou qualquer outra visão esquematizada de sociedade. Seria muito mais provável incluir uma mistura de todo tipo de coisas, a maioria das quais provavelmente já existe em forma nascente hoje em dia em todo nosso entorno. Além de economias de dádiva e de compartilhamento, /peer-production/, etc., poderia muito bem incluir elementos significativos de trocas de mercado - embora Graeber seja altamente cético que qualquer coisas remotamente que se assemelhe ao "anarco-capitalismo" pudesse vir a existir ou ser sustentado inteiramente através de acordos voluntários.


Mesmo o que agora parecem grandes e gritantes divisões ideológicas provavelmente se resolveriam bastante facilmente na prática. Eu costumava frequentar grupos de notícias na Internet nos anos 1990, que, na época, estavam cheios de criaturas que se denominavam "anarco-capitalistas". ...A maioria delas passava uma boa quantidade de seu tempo condenando anarquistas de esquerda como proponentes de violência. "Como você pode ser a favor de uma sociedade livre e ser contra o trabalho assalariado? Se eu quiser contratar alguém para colher meu tomates, como você vai me impedir exceto através da força?" Logicamente, então, qualquer tentativa de abolir o sistema de salário só pode ser feito cumprir por alguma nova versão da KGB. Ouve-se esses argumentos frequentemente. O que nunca se ouve, significantemente, é alguém dizer "Se eu quiser ser contratado para colher os tomates de alguém, como você vai me impedir exceto através da força?" Todo mundo parece imaginar que, em uma futura sociedade sem estado, eles, de alguma forma, vão acabar membros da classe empregadora. Ninguém parece pensar que eles serão os colhedores de tomates. Mas de onde, exatamente, eles imaginam que esses colhedores de tomates vão vir? Aqui pode-se empregar um pequeno experimento mental: vamos chamá-lo de parábola da ilha dividida. Dois grupos de idealistas reclamam, cada um, metade de uma ilha. Eles concordam em desenhar a fronteira de tal forma que há quantidades aproximadamente iguais de recursos em cada lado. Um grupo passa a criar um sistema econômico em que certos membros têm propriedade, outros não tem nenhuma, e aqueles que não tem nenhuma não tem quaisquer garantias sociais: eles serão deixados morrer de fome a menos que busquem emprego sob quaisquer termos que os ricos estejam dispostos a oferecer. O outro grupo cria uma sistema em que é garantido a todos pelo menos os meios básicos de existência, e acolhe todos os que chegam. Que possível razão aqueles previstos para serem o vigia noturno, os enfermeiros, e os mineradores de bauxita na sociedade anarco-capitalista teriam para ficar lá? Os capitalistas ficariam desprovidos de sua força de trabalho em uma questão de semanas. Como resultado, seriam forçados a patrulhar seus próprios terrenos, limpar seus próprios penicos, e operarem seu próprio maquinário pesado - isto é, a menos que eles rapidamente começassem a oferecer a seus trabalhadores um acordo tão extravagantemente bom que eles poderiam muito bem estar vivendo em uma utopia socialista afinal.


Por essa e por qualquer número de outras razões, estou certo que, na prática, qualquer tentativa de criar uma economia de mercado sem exércitos, polícia e prisões para suportá-la acabará não parecendo nada com o capitalismo muito rapidamente. Na verdade, eu suspeito fortemente que ela acabaria parecendo muito pouco com o que estamos acostumados a pensar como um mercado. Obviamente eu poderia estar errado. É possível que alguém tente isso, e os resultados sejam muito diferentes do que eu imaginei. Caso no qual, tudo bem, eu estarei errado. Sobretudo, eu estou interessado em criar as condições em que podemos descobrir.


(Vale a pena manter em mente que o "acordo voluntário" ente Robinson Crusoé e "Sexta-Feira" foi possível apenas porque Crusoé foi capaz de reclamar "propriedade" sobre toda a ilha com a ajuda de uma arma.)


Graeber está razoavelmente confiante na capacidade das pessoas medianas de organizar maneiras de conviverem na ausência de autoridade. Os casos em que o colapso de um estado resulta em uma Hobbesiana "guerra de todos contra todos", como a Somália, são na realidade uma minoria. A violência na Somália resultou principalmente do fato de que o estado colapsou em meio a uma guerra pré-existente entre grandes chefes militares, que continuaram a lutar após o estado ter colapsado.


Mas na maioria dos casos, como eu mesmo observei em partes rurais de Madagascar, muito pouco acontece. Obviamente, as estatísticas estão indisponíveis, uma vez que a ausência de estados geralmente também significa a ausência de qualquer um levantando estatísticas. No entanto, eu falei com muitos antropólogos e outros que estiveram em tais lugares e seus relatos são surpreendentemente similares. A polícia desaparece, as pessoas param de pagar impostos e, de outra forma, elas praticamente continuam como faziam antes. Certamente elas não entram em uma Hobbesiana "guerra de todos contra todos".


Como resultado, nós quase nunca ouvimos falar de tais lugares...


Então, a verdadeira questão que termos que perguntar se torna: o que é que a experiência de viver sob um estado, isto é, em uma sociedade em que as regras são feitas cumprir por ameaça de prisões e pela polícia, e todas as formas de desigualdade e alienação que isso torna possível, que faz ela parecer óbvio para nós que as pessoas, sob tais condições se comportariam de uma maneira que, no final das contas, elas realmente não se comportam?


A resposta anarquista é simples. Se você trata pessoas como crianças, elas tenderão a agir como crianças. O único método bem sucedido que qualquer um jamais inventou de encorajar outros a agirem como adultos é tratá-los como se já o fossem. Não é infalível. Nada é. Mas nenhuma outra abordagem tem qualquer chance real de sucesso. E a experiência histórica do que realmente acontece em situações de crise demonstra que mesmo aqueles que não cresceram em uma cultura de democracia participativa, se você lhes tirar suas armas ou sua capacidade de chamar seus advogados, podem repentinamente se tornar extremamente razoáveis. Isto é tudo que os anarquistas realmente estão propondo fazer.


Então o anarquismo não é apenas uma grandiosa teoria que foi inventada por algum pensador de alto escalão, como Marx no Museu de Londres. É o que as pessoas realmente fazem.


Os princípios básicos do anarquismo - auto-organização, associação voluntária, ajuda mútua - se referem a formas de comportamento que elas [as chamadas "figuras fundadoras" do pensamento anarquista do século XIX] assumiam ter existido há quase tanto tempo quanto a humanidade.



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