terça-feira, 28 de agosto de 2018

Equidade e Posse

Equidade e Posse

Gary Chartier (2011)
A justiça na posse não é, per se, uma questão de relações entre pessoas e coisas. Antes, é uma questão de relações entre pessoas. Como muitas (talvez não todas) exigências morais, ela tem a ver com como é razoável que tratemos uns aos outros. A exigência moral básica de equidade significa que temos boas razões para levar os interesses uns dos outros em consideração quando tomamos decisões. Em paralelo com um conjunto de truísmos sobre o comportamento humano e a condição humana, esse princípio implica em respeito por um conjunto de regras sobre a posse. Há boas razões para que um sistema legal justo trate essas regras como sem exceção, embora um pouco menos de razão para que atores morais individuais o façam.
            Podemos falhar em sermos razoável uns em relação aos outros de várias maneiras. Por exemplo, eu posso optar por atacar algum aspecto do seu bem-estar por despeito, ou por um desejo de vingança, ou como um meio de realizar alguma meta minha. E esse tipo de irrazoabilidade é extremamente importante - ela está na raiz de muita injustiça na guerra, por exemplo. Mas ela não é o tipo de irrazoabilidade que tipicamente surge quando as pessoas ignoram ou ativamente violam os interesses de posse legítimos umas das outras. Geralmente, o tipo de ação irrazoável em questão em tais casos é uma discriminação arbitrária entre aqueles afetados pelas escolhas do agente. Este tipo de irrazoabilidade viola o que eu chamarei de Princípio da Equidade.
            Há diferentes maneiras de se expressar este princípio, nenhum deles imune a críticas. Para os presentes propósitos, eu quero ressaltar um aspecto bastante simples do princípio, que pode ser formulado assim: evite tratar os outros de maneiras que você não estaria disposto a ser tratado em circunstâncias relevantemente similares. Esta formulação está enraizada no que eu assumo ser a sugestão intuitivamente plausível de que aqueles afetados por nossos atos e omissões são, geralmente, bastante parecidos conosco e que a simples diferença numérica é insuficiente para justificar um tratamento fundamentalmente diferente.
            Esse aspecto do Princípio da Equidade pode servir como base para um conjunto de regras de posse.
            Primeiro, o princípio estabelece uma presunção a favor de permitir que as pessoas retenham controle das coisas que elas realmente possuem. Muitos de nós não estamos dispostos, na maior parte do tempo, que outros apanhem nossas coisas de maneira violenta ou enganosa. Então, geralmente não é razoável que tomamos as deles.
            Claro, essa presunção básica pode ser derrotada - como a própria noção de um afano censurável sugere. Ladrões não gostam de ter suas posses tomadas mais do que aqueles que chegam ao que têm de maneira honesta e pacífica, mas nossas reações às reivindicações de posse dos ladrões tendem, penso eu de maneira justificada, a ser um tanto diferentes de nossas respostar às reivindicações daqueles a quem eles despojaram.
            Considerações adicionais ajudam a esclarecer o alcance e delimitar a gama de regras de posse justas. Tomadas em conjunto com o Princípio da Equidade, essas considerações fornecem um apoio considerável para o que eu chamo de regras basais: (i) alguém estabelece uma reivindicação de posse justa a um objeto físico ou a um trato de terra não reivindicado, através do estabelecimento da posse efetiva dele; (ii) uma vez que uma pessoa tome posse de um objeto físico ou de um trato de terra, depende dela agora como ele será usado e o que será feito com ele (na medida em que, ao fazê-lo, ele não ataque os corpos ou as posses justamente adquiridas de outras pessoas); (iii) isso significa, em particular, que alguém com uma reivindicação de posse justa livremente permite que outra pessoa tome posse de um objeto ou trato de terra que seja dela, em quaisquer termos mutuamente acordados. Se eu estou certo sobre as regras basais, então, embora seja verdadeiro, em algum sentido, que as normas de posse são convenções, elas são convenções fortemente restritas, uma vez que a equidade parece exigir que normas de posse razoáveis incorporem as regras basais.
            Um olhar sobre algumas considerações relevantes irá ajudar a esclarecer como elas suportam as regras basais.
            * Acessibilidade. Todas as outras coisas sendo iguais (presumindo, em particular, que os custos não podem ser transferidos para os que não os desejam, como acontece tão frequentemente em relação a abusos que vão da escravidão à poluição), todos se beneficiam conforme o fornecimento de bens e serviços que as pessoas querem aumenta e seus custos diminuem. Se os direitos de posse das pessoas são estáveis, de modo que elas possam barganhar com outras e manter o que lhes é prometido em troca dos bens e serviços que fornecem, elas tem mais probabilidade de produzir esses bens e serviços em quantidades desejáveis a preços desejáveis.
            * Autonomia. As pessoas tendem a querer autonomia: elas querem ser capazes de tomar suas próprias decisões sem, no mínimo, uma interferência forçosa de outrem. Reivindicações estáveis de posse permitem que as pessoas preservem sua autonomia. Então será irrazoável que a maior parte das pessoas não favoreça regras que protegem tais reivindicações.
            * Coordenação. Coordenar o comportamento de atores econômicos - estabelecer preços e determinar níveis de produção e padrões de distribuição - só pode ser uma atividade racional se as pessoas tiverem direitos estáveis de posse.
            * Compensação. Direitos estáveis de posse permitem que as pessoas barganhem de maneira efetiva umas com as outras - tais direitos criam uma linha de base para a barganha - e fazem as pessoas serem compensadas por seus esforços passados.
            * Generosidade. Você não pode ser generoso se você não tem direitos estáveis de posse e se aqueles a quem você dá carecem de tais direitos.
            * Incentivos. As pessoas provavelmente serão produtivas - de maneiras que beneficiam a si mesmas e aos outros igualmente - quando elas mantêm o que ganham. Isto significa, por sua vez, que elas e aqueles com quem elas barganham precisam de direitos estáveis de posse.
            * Pacificação. Direitos estáveis de posse, reconhecidos como tal por todos, reduzem o conflito por recursos escassos.
            * Produtividade. Ter direitos estáveis de posse significa que as pessoas provavelmente colocarão os recursos em seu uso mais produtivo. (Este ponto precisa de alguma qualificação, claro, uma vez que diferentes pessoas têm metas diferentes; a meta de uma pessoa para um pedaço de terra, por exemplo, pode ser precisamente que ele funcione efetivamente como uma reserva natural.)
            * Confiabilidade. A confiabilidade contribui para a estabilidade e o planejamento efetivo.
            * Simplicidade. Regras simples são mais fáceis de formular, articular, entender e aplicar. A regras basais são mais simples do que quase todas as alternativas. (Elas talvez sejam menos do que um conjunto de regras que permita que todo mundo acesse tudo, mas as outras considerações certamente sugerem que tais regras seriam indesejáveis.)
            * Estabilidade. Algumas regras provavelmente estarão embasadas em convenções auto-aplicadoras. Tais regras são mais fáceis de entender e aplicar. E existem boas razões para pensar que as regras basais são, precisamente, convenções estáveis e auto-aplicadoras.
            * Gestão. A gestão importa: todos se beneficiam quando se toma bom cuidado das coisas, e toma-se bom cuidado das coisas quando alguém em particular é responsável por tudo.

            Essas várias considerações contribuem para treliças sobrepostas de justificativa para as regras basais de posse. Em geral, todas elas (a preocupação com a produtividade dos ativos individuais sem dúvidas é uma exceção) se inclinam na mesma direção: tratar os outros de maneira equânime, levar seus interesses em consideração de maneira apropriada, é agir de uma maneira que leve cada uma das considerações a sério.
            O Princípio da Equidade exigirá compensação para as violações dos interesses protegidos pelas regras basais. Afinal, as regras são basicamente insignificantes se elas podem ser violadas com impunidade. Interesses legítimos merecem proteção. Aqueles que consideram a possibilidade de causar prejuízo às posses de outrem estão melhor situados para evitar ou prevenir os danos que consideram causar; mais ainda, a equidade sugere que eles não deveriam deslocar os custos de compensar suas vítimas para os outros. E uma exigência de compensação obviamente servirá para incentivar aqueles que poderiam causar danos a evitar que o façam.
            Regras sem exceção são mais simples, mais confiáveis e mais estáveis do que aquelas que permitem exceções. Então faz sentido que um sistema legal justo incorpore tais regras e que as pessoas as apoiem. Contudo (mantenho eu), isso significa apenas que as pessoas deveriam apoiar a provisão de compensação para danos reais que resultem da violação de tais regras, não que elas deveriam favorecer, por exemplo, princípios legais que permitiriam o uso de uma violência física ilimitada para proteger os interesses delineados pelas regras. Igualmente, embora o Princípio da Equidade dê a todos razões significativas para apoiar a manutenção das regras basais, isso não significa que o próprio Princípio não justificará, às vezes, a violação dos interesses de posse.
            Isso é porque a equidade é, finalmente, uma característica das escolhas individuais. Quando você está implementando ou apoiando uma regra que será aplicada a uma gama de casos, faz sentido pensar na regra como uma regra geral. Mas quando você está decidindo por si mesmo em um caso particular - embora você ainda precise pensar no impacto da sua escolha, por exemplo, na confiança geral de que os interesses de posse justos serão respeitados - você tem que se perguntar o que é equânime que se faça nesse caso. Assim, fará sentido que alguém simultaneamente (a) apoie uma regra que exige a compensação pelos danos causados ao se invadir ou quebrar, sem exceções e (b) invada um chalé abandonado na montanha para escapar de uma avalanche.
            Isso significa que é consistente com o Princípio da Equidade que as pessoas violem os interesses de posse justo dos outros com impunidade, contanto que estejam dispostos a pagar compensação quando causaram um dano real? Não exatamente, uma vez que haverá, como sugeri, razões para que alguém contemplando uma possível violação reconheça que a ação na qual ela está decidindo se engajar possa ser irrazoável porque tenderia a minar a confiança na confiabilidade de reivindicações justas de posse, algo que todos têm razão em favorecer. Esse não será sempre o caso, mas certamente o será de vez em quando.
            As pessoas também terão outras razões para evitar interferir com as posses dos outros a esmo. Por um lado, a compensação por interferir com os bens de alguém não representa apenas o valor do dano resultante da interferência; ela incluirá também os custos razoáveis de recuperação - os custos de identificar a pessoa responsável pela interferência e de garantir a compensação dela. E a responsabilidade por esses custos certamente servirá como desincentivo. Além disso, as pessoas que tomem, ou danifiquem, ou invadam injustamente não serão vistas de maneira muito caridosa pelas outras. Elas provavelmente serão submetidas a vários tipos de sanções sociais, acima e além da exigência de que elas compensem suas vítimas.
            Junto com uma gama de generalizações plausíveis sobre o comportamento e as preferências humanas, o Princípio da Equidade pode fundamentar um conjunto de regras simples e confiáveis sobre a justiça na posse - as regras basais de posse. O Princípio não resolve todas as questões sobre posse e é compatível com múltiplos quadros jurídicos. Mas ele restringe de maneira bastante significativa o que contará como uma regra legal razoável em relação à posse e também, ainda que de maneira menos severa, o que contará como uma escolha razoável de se interferir com as posses justamente adquiridas de outra pessoa. Entre outras coisas, levar as regras a sério significará evitar a interferência com as posses dos outros, o que parece ser a característica definidora do estado predador.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Socialismo: O Que É


Socialismo: O Que É

Benjamin R. Tucker (1884)

"Você gosta da palavra Socialismo?" disse-me uma senhora outro dia; "eu temo que não; de alguma forma, eu me encolho quando a ouço. Ela está associada com tanta coisa que é ruim! Devemos mantê-la?"
            A senhora que me fez essa pergunta é uma sincera Anarquista, uma firme amiga da Liberdade e - é quase supérfluo adicionar - altamente inteligente. Suas palavras exprimem o sentimento de muitos. Mas, afinal, é apenas um sentimento e não resistirá ao teste do pensamento. "Sim", eu respondi, "é uma palavra gloriosa, muito abusada, violentamente distorcida, estupidamente mal compreendida, mas que expressa melhor do que qualquer outra o propósito do progresso político e econômico, a meta da Revolução neste século, o reconhecimento da grande verdade de que a Liberdade e a Igualdade, através da lei da Solidariedade, farão com que o bem-estar de cada um contribua com o bem-estar de todos. Uma palavra tão boa não pode ser poupada, não deve ser sacrificada, não será roubada".
            Como ela pode ser salva? Apenas ao erguê-la para fora da confusão que a obscurece, de modo que todos possam vê-la de maneira clara e definida e o que ela fundamentalmente significa. Alguns escritores fazem o Socialismo incluir todos os esforços para se melhorar as condições sociais. Proudhon tem a reputação de ter dito algo do tipo. Como quer que seja, a definição parece ampla demais. Etimologicamente, não é injustificável, mas, derivativamente, a palavra tem um significado mais técnico e definido.
            Hoje (perdão pelo paradoxo!) a sociedade é fundamentalmente antissocial. Todo o chamado tecido social repousa sobre privilégio e poder e é desordenado e retorcido em todas as direções pelas desigualdades que necessariamente resultam disso. O bem-estar de cada um, em vez de contribuir com o de todos, como naturalmente deveria e iria, quase invariavelmente diminui o de todos. A riqueza é tornada, por meio do privilégio legal, um anzol com o qual furtar dos bolsos do trabalho. Todo homem que fica rico, assim, torna seu vizinho pobre. Quanto melhor se está, tanto pior o resto está. Como Ruskin diz, "todo grão de Incremento calculado para o rico é equilibrado por seu equivalente matemático de Decremento para o pobre". O Déficit do Trabalhador é precisamente igual ao Éficit do Capitalista.
            Ora, o Socialismo quer mudar tudo isso. O Socialismo diz que o que é carne para um homem não deve mais ser veneno para o outro; que nenhum homem deve ser capaz de adicionar às suas riquezas, exceto pelo trabalho; que, ao adicionar às suas riquezas apenas pelo trabalho, nenhum homem torna outro homem mais pobre; que, pelo contrário, todo homem, adicionando dessa maneira às suas riquezas, torna todo outro homem mais rico; que o aumento e a concentração de riqueza através do trabalho tendem a aumentar, baratear e variar a produção; que todo aumento de capital nas mãos do trabalhador tende, na ausência do monopólio legal, a colocar mais produtos, produtos melhores, produtos mais baratos, e uma grande variedade de produtos ao alcance de todo homem que trabalha; e que este fato significa o aperfeiçoamento físico, mental e moral da humanidade e a efetivação da fraternidade humana. Isso não é glorioso? Uma palavra que significa tudo isso deveria ser jogada de lado simplesmente porque alguns tentaram casá-la com a autoridade? De forma nenhuma. O homem que concorda com isso, o que quer que ele pense de si mesmo, do que quer que ele possa se chamar, não importa o quão amargamente ele possa atacar a coisa que ele confunde com o Socialismo, é ele mesmo um Socialista; e o homem que concorda com o seu oposto e age pelo seu oposto, não importa o quão benevolente ele possa ser, não importa o quão devoto ele possa ser, qualquer que seja sua posição na sociedade, qualquer que seja sua posição na Igreja, qualquer que seja sua posição no Estado, não é um Socialista, mas um Ladrão. Pois existem, no fundo, apenas duas classes - os Socialistas e os Ladrões. O Socialismo, na prática, é a guerra contra a usura em todas as suas formas, o grande Movimento Antirroubo do século XIX; e os Socialistas são as únicas pessoas a quem os pregadores da moralidade não têm nenhum direito ou motivo para citar o oitavo mandamento, "Não roubarás!”. Esse mandamento é a bandeira do Socialismo. Apenas não como um mandamento, mas como uma lei da natureza. O Socialismo não ordena; ele profetiza. Ele não diz: "Não roubarás!". Ele diz: "Quando todos os homens tiverem Liberdade, tu não roubarás".
            Por quê, então, minha senhora questionadora se encolhe quando ela ouve a palavra Socialismo? Eu lhe direi. Porque um grande número de pessoas, que vê os males da usura e está desejoso de destruí-los, tolamente imaginam que podem fazê-lo através da autoridade e, de acordo, estão tentando abolir o privilégio centralizando toda a produção e a atividade no Estado, para a destruição da concorrência e de suas bênçãos, para a degradação do indivíduo e para a putrefação da Sociedade. Elas são todas pessoas bem-intencionadas, mas equivocadas, e seus esforços estão fadados a se provarem abortivos. Sua influência é perniciosa principalmente nisso: que um grande número de outras pessoas, que ainda não viram os males da usura e não sabem que a Liberdade os destruirá, mas que, não obstante, sinceramente acreditam na Liberdade pela própria Liberdade, são levadas a confundir esse esforço para tornar o Estado o todo e o fim da sociedade com todo o Socialismo e com o único Socialismo e, corretamente horrorizadas por isso, o submetem, como tal, ao devido escárnio da humanidade. Mas as críticas muito razoáveis e justas dos individualistas dessa estirpe ao Socialismo de Estado, quando analisadas, descobre-se que são direcionadas não ao Socialismo, mas ao Estado. Até aí, a Liberdade está com eles. Mas a Liberdade insiste no Socialismo, não obstante - no verdadeiro Socialismo, o Socialismo Anarquista: a predominância sobre a terra da Liberdade, da Igualdade e da Solidariedade. Disso, a minha senhora questionadora nunca se encolherá.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Qual Laissez Faire?


Qual Laissez Faire?

Sheldon Richman (2010)

Escrevendo no The Guardian no último janeiro, sob a manchete "Caribbean Communism v. Capitalism" ("Capitalismo vs. Comunismo no Caribe"), o respeitado jornalista Stephen Kinzer começou seu artigo assim:

Visitar a infeliz Cuba é especialmente instigante para qualquer um que esteja familiarizado com seus infelizes vizinhos. Os cubanos vivem vidas difíceis e têm muito do que reclamar. E também o têm os jamaicanos, dominicanos, haitianos, guatemaltecos, hondurenhos, salvadorenhos e outros na bacia do Caribe que vivem sob governos capitalistas. Quem está pior? Uma pessoa comum vive melhor em Cuba ou em um país capitalista próximo?[1]

Muitas pessoas leriam isso sem se deter, mas presumivelmente não os libertários. A Jamaica, a República Dominicana, o Haiti, a Guatemala, Honduras e El Salvador são países capitalistas? A afirmação prosaica de Kinzer parece conflitar com outras evidências. Por exemplo, o Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation (que exagera o grau de liberdade econômica dos países) classifica a República Dominicana, a Jamaica, El Salvador e a Guatemala como "moderadamente livres" (e não "livres" ou "muito livres") e Honduras e o Haiti como "muito pouco livres". Então, como eles podem ser "capitalistas" – a menos que o capitalismo e a liberdade sejam duas coisas diferentes?
            Pode-se inferir do artigo de Kinzer que ele classifica qualquer país como "capitalista" contanto que o socialismo marxista não seja sua ideologia oficial. Então ele afirma, "Comparando os dois sistemas políticos e sociais também nos lembra que, para muitas pessoas no mundo, uma vida verdadeiramente gratificante é inatingível... A melhor esperança para a Cuba há tanto tempo comunista e para seus vizinhos há tanto tempo capitalistas seria aprender um com os outros".
            Meu propósito aqui não é focar nas afirmações curiosamente positivas de Kinzer sobre Cuba e sua "rede de segurança social", mas sim em seu uso da palavra "capitalista". Ele aparentemente considera essa designação tão incontroversa que não sente qualquer necessidade de justificá-la ou sequer definir o termo.
            Kinzer, contudo, não é uma anomalia. Considere o livro de Richard Posner sobre o recente desastre financeiro, A Failure of Capitalism ("Uma Falha do Capitalismo"). Posner não é nenhum jornalista com tendências esquerdistas. Ele é um juiz federal com uma longa associação com a Universidade de Chicago e o movimento mercadista de lei-e-economia. E, ainda assim, aqui está ele, culpando o "capitalismo" pelos atuais problemas econômicos e, como resultado, adotando o keynesianismo. Ele escreve em seu prefácio, "Estamos aprendendo com ela [a "depressão"] que precisamos de um governo mais ativo e inteligente para impedir que nosso modelo de economia capitalista saia dos trilhos. O movimento para se desregulamentar a indústria financeira foi longe demais ao exagerar a resiliência – os poderes auto-curativos – do capitalismo laissez faire".
            Posner dificilmente é um lobo solitário no seu lado do espectro político. Sintonize nos programas financeiros no Fox News Channel e na Fox Business Network qualquer dia e você ouvirá Lawrence Kudlow, Ben Stein ou uma série de outros conservadores econômicos avisando que as políticas de Barack Obama ameaçam minar "nosso sistema capitalista". Isso certamente implica que há hoje um sistema capitalista para se minar.

O Que É o Capitalismo?

            O que, então, é este sistema chamado de "capitalismo"? Ele não pode ser o livre mercado, porque não temos um livre mercado. Hoje a mão do governo está por toda a economia – do dinheiro e bancos aos transportes e à manufatura, à agricultura, aos seguros, à pesquisa básica, ao comércio mundial. Se o significado de um conceito consiste em como ele é usado (não há nenhuma forma platônica a ser adivinhada), "capitalismo" não pode significar "o livre mercado". Em vez disso, ele designa um sistema no qual os meios de produção são, de jure, propriedade privada. Deixada em aberto fica a questão da intervenção do governo. Desta forma, as frases "capitalismo de livre mercado" e "capitalismo laissez faire" tipicamente não são vistas como redundantes e as frase "capitalismo de estado" ou "capitalismo de compadres" não são vistas como contradições. Se, sem controvérsia, o "capitalismo" pode receber os qualificadores "de livre mercado" e "de estado", isso nos diz algo. (Isso é verdadeiro independentemente do que os dicionários dizem. Pelo menos desde a época de Samuel Johnson, os lexicógrafos entenderam que os dicionários devem ser descritivos e não prescritivos. Novas edições rotineiramente modificam as definições à luz do uso atual.)
            Este não é apenas um argumento semântico – pergunta-se sobre o valor de se passar tempo argumentando se o que temos "realmente" é capitalismo ou não – e é mais do que uma questão de retórica ou da arte da persuasão – por mais importante que ela seja. É uma questão de entendimento histórico, pois, embora Ludwig von Mises e Ayn Rand tenham tentado, com grande energia, fazer o "capitalismo" ser entendido como "o livre mercado", eles estavam nadando contra a corrente. Como o historiador Clarence Carson escreveu em The Freeman nos anos 1980, "'Capitalismo'... não tem um significado comumente aceito, não obstante os proponentes dele em contrário. Na situação atual, ele não pode ser usado com precisão no discurso".
            Carson se perguntou por que alguém chamaria um sistema no qual a produção e a troca são conduzidas de maneira privada de "capitalismo". "Até onde eu posso compreender", ele escreveu, "não há nenhuma razão convincente para o fazer. Não há nada indicado em tais arranjos que sugira por que o capital, entre os elementos da produção, deveria ser destacado com ênfase. Por que não a terra? Por que não o trabalho? Ou, de fato, por que qualquer um dos elementos deveria ser destacado?".
            Há outras características curiosas da palavra. "Quando um 'ismo' é adicionado a uma palavra, ele denota um sistema de crenças e, provavelmente, o que veio a ser chamado de ideologia", Carson escreve. Mas um capitalista não é alguém que defende o capitalismo, da maneira em que um socialista é alguém que defende o socialismo. Em vez disso, ele é alguém que tem capital. Um capitalista pode ser um socialista sem contradição.
            Também é útil ter em mente que a palavra não foi inicialmente adotada por defensores do livre mercado; isso foi aparentemente um fenômeno do século XX. De acordo com o Oxford English Dictionary, a palavra "capitalista" veio primeiro e foi usada de maneira pejorativa no final do século XVIII. Claro, Marx usou ela e palavras relacionadas como condenação. Mas não foram apenas oponentes da propriedade privada que usaram a palavra dessa maneira. De maneira mais notável, Thomas Hodgskin (1787-1868), um liberal de livre mercado e mentor de Herbert Spencer, precedeu Marx nesse uso. Por "capitalista" ele queria dizer alguém que controlava o capital e explorava o trabalho como resultado do privilégio do Estado na violação do livre mercado.

Uma Breve História do Capitalismo

            Por mais importante que a teoria econômica seja para entender a história, ela não é nenhum substituto da história. Saber como os livres mercados funcionam não pode, por si só, nos dizer se o livre mercado existiu em qualquer dado período histórico. Mises e Rand não obstantes, desde os primórdios o capitalismo histórico tem sido associado com a intervenção governamental em favor de latifundiários e donos de fábricas. O capitalismo está, é claro, ligado à Revolução Industrial, que começou na Inglaterra, mas o surgimento do industrialismo na Inglaterra se seguiu a expropriações massivas de pequenos fazendeiros das terras sobre as quais eles haviam lutado por gerações para adquirir direitos. Como outro Carson, Kevin Carson, escreveu no The Freeman,

No Velho Mundo, especialmente na Grã-Bretanha... a expropriação da maioria camponesa por uma oligarquia agrária politicamente dominante ocorreu ao longo de diversos séculos no final do período medieval e no início do moderno. Ela começou com o cercamento dos campos abertos no final da Idade Média. Sob os Tudors, feudos da Igreja (especialmente terras monásticas) foram expropriados pelo estado e distribuídos entre a aristocracia agrária. Os novos "donos" despejaram ou cobraram alugueis extorsivos dos camponeses.

            O processo continuou com as "reformas" agrárias e os Cercamentos Parlamentares até o século XIX, transformando lavradores do solo (aqueles que misturavam seu trabalho com a terra) em inquilinos.
            As terras comuns foram "privatizadas" pelo Estado (isto é, dadas aos privilegiados) às custas das pessoas que anteriormente tinham direitos consuetudinários de longa data a elas. Não restou outra escolha para fazendeiros de subsistência independentes e artesãos além de cultivar para outra pessoa ou trabalhar nas novas fábricas, com um pouco de sua renda retirado por senhorios e empregadores. O proletariado nasceu, como F. A. Hayek reconhece. Por padrões libertários, isso constitui exploração porque o poder do Estado jaz por trás dos apuros dos trabalhadores. A oportunidade de trabalhar nas fábricas é frequentemente apresentada como uma bênção, mas ela parece menos benigna quando o roubo de terras é reconhecido. Além disso, há evidência que os novos donos de fábricas obtiveram um pouco de seu capital dos interesses do "antigo dinheiro", mas mesmo que esse não fosse o caso, os industriais se beneficiaram da interferência do Estado com o direito à terra dos pequenos fazendeiros. Membros da classe dominante e observadores frequentemente expressavam preocupação que ninguém fosse escolher trabalhar para uma outra pessoa em uma fábrica desagradável se ele pudesse trabalhar para si mesmo na terra ou como um artesão. Eles compartilhavam a visão do escritor britânico do século XIX, E. G. Wakefield: "Onde a terra é barata e todos os homens são livres, onde todo mundo que assim deseja pode obter um pedaço de terra para si, não apenas o trabalho é muito caro, no que diz respeito à parte dos trabalhadores no produto, mas a dificuldade é obter trabalho combinado a qualquer preço que seja".
            O laissez faire de forma alguma começou neste ponto. Kevin Carson escreve,

Além disso, empregadores fabris dependiam de medidas autoritárias severas por parte do governo para manter o trabalho sob controle e reduzir seu poder de barganha. Na Inglaterra, as Leis de Assentamento [denunciadas por Adam Smith] agiam como um tipo de sistema de passaportes internos, impedindo que os trabalhadores viajassem para fora da paróquia de seu nascimento sem permissão do governo. Assim, os trabalhadores eram impedidos de "votar com seus pés" em busca de trabalhos que pagassem melhor...
            As Leis de Combinação, que impediam os trabalhadores de se associarem para barganhar com os empregadores, eram aplicadas inteiramente pelo direito administrativo, sem quaisquer das proteções do devido processo do direito consuetudinário...

            Assim, o Estado intervencionista manchou a emergência da era industrial. (Ela teria emergido espontaneamente de outra forma.)
            Como Albert Jay Nock escreveu,

Os horrores da vida industrial da Inglaterra no último século [XIX] fornecem um depoimento permanente para os viciados em intervenção positiva. O trabalho infantil e feminino nos moinhos e nas minas; Coketown e o Sr. Bounderby; salários de fome; horas mortais; condições vis e perigosas de trabalho; navios-caixões comandados por rufiões – todos estes são atribuídos, sem hesitação, por reformistas e publicistas, a um regime de individualismo rude, concorrência desenfreada e laissez-faire. Isto é um absurdo patente, pois nenhum regime assim jamais existiu na Inglaterra. Eles se deviam à intervenção primária do Estado, por meio da qual a população da Inglaterra foi expropriada da terra; deviam-se à remoção estatal da terra da concorrência com a indústria pelo trabalho...

Assim, como Kevin Carson escreve,

O capitalismo, surgindo como uma nova sociedade de classe diretamente a partir da velha sociedade de classe da Idade Média, foi fundado sobre um ato de roubo tão massivo quanto a anterior conquista feudal da terra. ... Desde o início da revolução industrial, o que é nostalgicamente chamado de "laissez-faire" foi, na verdade, um sistema de contínua intervenção estatal para subsidiar a acumulação, garantir o privilégio e manter a disciplina do trabalho.

A mancha da intervenção governamental na atividade econômica foi transferida para as colônias britânicas na América do Norte. A natureza radical da Revolução Americana mascarou a luta de classes dentro da sociedade colonial americana, entre o que o historiador Merrill Jensen chamou de "radicais" e "conservadores" em seu livro The Articles of Confederation: An Interpretation of the Social-Constitutional History of the American Revolution, 1774–1781 ("Os Artigos da Confederação: Uma Interpretação da História Social-Constitucional da Revolução Americana, 1774-1781"). (A análise de classe não se originou com Marx, mas com radicais laissez faire anteriores, Charles Comte e Charles Dunoyer.) Uma elite politicamente conectada veio a dominar cada colônia, vivendo de grandes concessões de terra e de impostos. O poder e a terra foram distribuídos como favores reais, e os ricos recipientes se enraizaram. No Norte, a classe dominante consistia de mercadores, no Sul de grandes cultivadores. Jensen nota que, na Pensilvânia, por exemplo, "os mercadores haviam tentado por vários meios derrubar o sistema de mercados e leilões, a fim de conseguirem um monopólio sobre o comércio varejista". Naquela época, como agora, as empresas estabelecidas preferiam cartéis à concorrência livre e imprevisível. As elites vieram a pensar sobre si mesmas como a aristocracia sábia, destinada a governar, e não estavam ansiosas para entregar o poder quando os radicais primeiro começaram a pressionar pela independência da Grã-Bretanha. Ficar no império era visto como a chave para se manter o poder político local.
            Os radicais e os conservadores, assim, tinham interesses econômicos e políticos diferentes e visões diferentes sobre a independência da Grã-Bretanha. Quando as usurpações britânicas tornaram intolerável uma associação continuada com o império até mesmo para muitos conservadores, esses grupos então discordaram sobre como a nova nação deveria ser governada. Os interesses mercantis tendiam a favorecer a centralização nacionalista, que era vista como a melhor maneira de manter seu poder e restringir os democratas radicais. Eles esperavam emular o sistema mercantilista britânico. Em contraste, a massa do povo, que se sentia aproveitada por esses interesses, tendia a favorecer a descentralização, uma vez que acreditavam que tinham uma chance melhor de justiça e propriedade com o autogoverno local. Desta forma, o que Jensen chama de "revolução interna" – o esforço para se quebrar o domínio das elites nas colônias – foi pelo menos tão importante quanto a externa, contra os britânicos.

A Constituição

            Dada essa imagem da pré-independência, não deveria ser nenhuma surpresa que a América independente não era nenhum bastião de libertarianismo laissez faire. De fato, o esforço para se derrubar os Artigos da Confederação – com seu semigoverno central fraco, que carecia do poder de tributar a população diretamente ou de regulamentar o comércio – e estabelecer um governo central bem mais forte sob a Constituição dos E.U.A. foi uma continuação da luta interna que havia ocorrido antes da Revolução. Para dar apenas uma indicação aqui, erroneamente se acredita que a força condutora por trás da Constituição era a determinação de se criar uma zona de livre comércio entre os estados. Assim, de acordo com o relato padrão, a Cláusula do Comércio foi a resposta a barreiras comerciais generalizadas entre os estados. Mas diversos problemas se apresentam. Primeiro, os Estados Unidos já eram uma zona de livre comércio (com a exceção de raras restrições a bens europeus passando de um estado para outro).
            Segundo, ao argumentar a favor da retificação da Constituição nos Artigos Federalistas, Alexander Hamilton reclamou que as tarifas eram baixas demais, não altas demais:

É, portanto, evidente que um governo nacional seria capaz, com muito menos custo, de estender as taxas sobre importações, para além de comparações, mais do que seria praticável aos Estados separadamente, ou a quaisquer confederações parciais: Até agora, creio que possa ser seguramente afirmado que essas taxas não excederam, na média, em qualquer Estado, três por cento... Parece não haver nada para dificultar que elas sejam aumentadas neste país a pelo menos o triplo de sua quantia atual... [O Federalista 12; ênfase adicionada].

            Em outras palavras, a concorrência entre os estados estava mantendo as tarifas baixas, ao passo que unir os estados sob um governo central forte refrearia essa concorrência, ao estilo de um cartel, e permitiria tarifas mais altas. (De fato, o primeiro ato econômico do novo Congresso em 1789 – em 4 de julho! – foi uma tarifa protetora abrangente, de 5 a 10 por cento. Ela foi chamada de "segunda Declaração de Independência".)
            Terceiro, o historiador Calvin Johnson observa,

Nos debates originais sobre a adoção da Constituição, a "regulamentação do comércio" era usada, quase exclusivamente, como uma cobertura de palavras para propostas mercantilistas específicas, relacionadas ao transporte em águas profundas e ao comércio exterior. A Constituição foi escrita antes que Adam Smith, o laissez faire e o livre comércio viessem a dominar o pensamento econômico, e a Cláusula do Comércio extrai seu significado original da anterior tradição mercantilista... Barreiras ao comércio interestadual, contudo, não eram uma questão notável nos debates originais. [Ênfase adicionada.]

            A filosofia de descentralização de Thomas Jefferson podia ser a filosofia do povo, mas as elites poderosas em todos os novos estados estavam no campo de Hamilton. Como resultado, a intervenção governamental em partes críticas da economia (melhorias internas e, mais tarde, subsídios às ferrovias) foram proeminentes. Quando Jefferson e, mais tarde, os jeffersonianos ganharam poder, eles foram capazes de reverter um pouco do dano, mas o nacionalismo e o estatismo de Alexander Hamilton e Henry Clay estavam sempre nos flancos, aguardando Lincoln ser eleito.

Distribuindo Terra

            Uma estória reveladora pode ser encontrada na disposição das terras federais. Como observado, o favoritismo político e a especulação fundiária, que gerava fortunas, eram escandalosas no período colonial. As coisas mudaram pouca depois da Revolução. Apesar da impressão dada pelo Homestead Act de 1862, a maior parte da terra – e certamente as melhores terras – foram dadas ou vendidas em termos amorosos para interesses econômicos influentes, mais proeminentemente, mas não exclusivamente, aos interesses ferroviários. Desnecessário dizer, os sem-terra e sem poder não estavam entre os compradores.
            Como o historiador Paul Wallace Gates escreveu em 1935,

[A] Lei do Homestead não mudou completamente nosso sistema fundiário... [Sua] adoção meramente superpôs ao antigo sistema fundiário um princípio a partir da harmonia com ele... Virá a aparecer que a Lei do Homestead não acabou com o sistema de leilão ou com as vendas em dinheiro, como geralmente se assume, que a especulação e a monopolização da terra continuaram depois de sua adoção, talvez de maneira tão generalizada quanto antes, e, dentro assim como fora da lei, que o verdadeiro homesteading ficou geralmente confinado às terras menos desejáveis, distantes das linhas férreas, e que o arrendamento de fazendas se desenvolveu nas comunidades de fronteira, em muitos casos, como resultado da monopolização da terra.

            As grandes propriedades produzidas por essas políticas, partes das quais foram mantidas ociosas, limitaram as oportunidades daqueles sem poder e influência, aumentando sua dependência de empregadores e senhorios. A situação, assim, tem alguma semelhança com aquela da Inglaterra.
            À parte da questão da terra, sabemos do trabalho de Jonathan R. T. Hughes e outros que, desde o princípio, o entrelaçamento do governo nas economias das colônias e dos estados era comum. Hughes escreveu em The Governmental Habit Redux ("O Hábito Governamental Revisto"),

A maioria dos estudos dos controles modernos não-mercadistas consideram que a história relevante se estende de volta até o New Deal. Alguns retornam mais, até o final do século XIX. Mas, na verdade, o hábito poderoso e contínuo de controle não-mercadista na nossa economia remonta a séculos...

            Assim, durante o período colonial, virtualmente todo aspecto da vida econômica estava sujeito a controles não mercadistas. Um pouco dessa tradição não sobreviveria, um pouco se tornaria ainda mais poderoso, ao passo em que um pouco ascenderia ao nível de controle federal. O pano de fundo colonial era como um pool genético institucional. A maior parte das instituições e práticas coloniais continua a viver hoje de alguma forma, e há muito pouco nas maneiras do controle não-mercadista que não tenha um precursor colonial ou inglês. A história americana não começou em 1776.

A Expansão do Capitalismo

            Revisando algumas dúzias de estudos sobre intervenção econômicas estadual e local no século XIX, o historiador Robert Lively concluiu em 1955,

O Rei Laissez Faire, então, de acordo com esses relatos, não estava apenas morto; o relato consagrado de seu reino havia todo sido um erro. O erro foi um de proporções monumentais, uma mistura de dados negligenciados, distorção interessada e preconcepções persistentes.... As energias substanciais do governo... foram empregadas mais frequentemente para a ajuda do que para o entrave das empresas. O tema amplo e bem documentado revisado aqui é aquele do apoio público ao desenvolvimento empresarial.

            Na segunda metade do século XIX, a América se moveu para mais longe, não mais perto, do laissez faire, graças à adoção, feita por Lincoln, do Sistema Americano estatista de Henry Clay, que incluía um banco nacional, melhorias internas, tarifas e, por um tempo, um imposto de renda. Como Joseph R. Stromberg escreve, "Na verdade, a Era Dourada testemunhou um 'grande churrasco', para usar a frase de Vernon Louis Parrington, enraizado no estatismo desenfreado dos anos de guerra, cujos participantes se defendiam com retórica spenceriana, enquanto seguravam com as duas mãos".
            O século XX apenas acelerou este processo ao deslocá-lo ainda mais para o nível nacional. A cumplicidade das grandes empresas nas "reformas" da Era Progressista está bem documentada, graças a Gabriel Kolko e outros. Se você contar favores para as principais empresas como intervenção governamental, então não houve nenhum laissez faire no século XX, mesmo durante os anos de Harding-Coolidge. A ficha intervencionista de Herbert Hoover é bem conhecida. E deve se entender que as grandes empresas apoiaram a eleição de Franklin Roosevelt em 1932 e sua administração durante seu período inicial. A corporativista Administração de Recuperação Nacional era do seu agrado e, para algumas, não foi longe o suficiente. Caso se acredite que, nas agonias da Depressão, a América poderia ter adotado uma nacionalização explícita dos meios de produção, então pode-se concluir que Rooselvelt de fato "salvou o capitalismo", mas não no sentido do livre mercado, que já havia sido comprometido virtualmente para além de qualquer reconhecimento.
            A conclusão é que o capitalismo histórico não era o livre mercado. Em vez disso, ele foi um sistema anti-competitivo e pró-empresas de controles e subsídios, no qual o governo e os interesses mercantis trabalharam juntos, em uma tentativa equivocada de produzir crescimento econômico e de promover as fortunas de interesses bem-conectados específicos. Como em qualquer período, há rentistas e governantes que os favorecem, com uma porta giratória entre os dois grupos. Mas é importante notar que não houve nenhuma tentativa de planejamento econômico abrangente. Desta forma, havia escopo para empreendedorismo, que precisa de pouco encorajamento para florescer. Por padrões históricos, o fardo do governo era leve. A grama brota através das rachaduras na calçada. Um pouco de liberdade econômica já faz muito.
            Este relato histórico é relevante para entender a base a partir da qual a economia dos E.U.A. evoluiu e perceber que a trajetória de desenvolvimento foi diferente do que teria sido se um verdadeiro livre mercado tivesse existido. O privilégio teve efeitos de longa duração, os quais nós ainda sentimos hoje, devido ao que Kevin Carson chamou de "subsídio da história".
            Assim, não se pode dizer que aqueles que chamam o sistema de hoje de "capitalismo" estejam usando o termo erroneamente. Defensores do verdadeiro livre mercado, portanto, seriam bem aconselhados a evitar usá-lo para descrever seu sistema social preferido.


NOTAS:

[1] Stephen Kinzer, “Caribbean Communism v Capitalism,” The Guardian (Guardian News and Media, Jan. 22, 2010) <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/cifamerica/2010/jan/ 22/cuba-communism-human-rights> (March 13, 2011).

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Defensores do Livre Mercado Devem Se Opor ao Capitalismo

Defensores do Livre Mercado Devem
Se Opor ao Capitalismo
Gary Chartier (2010)
[Tradução parcial realizada por Marcelo de Arruda, Diretor Acadêmico do ILA – Instituto Liberal de Alagoas, disponível em <http://www.il-al.com.br/os-defensores-do-livre-mercado-devem-se- opor-ao-capitalismo/>. A tradução abaixo foi revisada, alterada e expandida por Uriel Alexis]

I. Introdução

Defensores de mercados libertos têm boas razões para identificar sua posição como uma espécie de “anti-capitalismo”.[1] Para explicar o porquê, eu diferencio três significados possíveis para “capitalismo” antes de sugerir que as pessoas comprometidas com mercados libertos devem se opor ao capitalismo no meu segundo e terceiro sentidos. Depois oferecerei algumas razões para utilizar “capitalismo” como um rótulo para alguns dos arranjos sociais que os defensores do mercado liberto deveriam contestar.

II. Três definições de “capitalismo”

Existem pelo menos três definições distintas para “capitalismo”:[2]

capitalismo1
um sistema econômico que possui direitos de propriedade e trocas voluntárias de bens e serviços.
capitalismo2
um sistema econômico que possui uma relação simbiótica entre grandes empresas e o governo.
capitalismo3
domínio – dos locais de trabalho, da sociedade e (se existir um) do estado – por capitalistas (isto é, por um número relativamente pequeno de pessoas que controlam a riqueza que pode ser investida e os meios de produção)[3]

            O capitalismo1 simplesmente é um mercado liberto; então se “anticapitalismo” significasse oposição ao capitalismo1, “anti-capitalismo de livre mercado” seria um oximoro. Mas os defensores do anti-capitalismo de livre mercado não se opõem ao capitalismo1; ao invés disso, eles são contrários ou ao capitalismo2, ou a ambos o capitalismo2 e o capitalismo3.[4]
            Muitas pessoas parecem empregar definições que combinam elementos desses diferentes sentidos de "capitalismo". Tanto entusiastas quanto críticos do capitalismo parecem muito frequentemente utilizar a palavra como algo parecido com “um sistema econômico que possui direitos de propriedade e trocas voluntárias de bens e serviços e, portanto, previsivelmente, dominado por capitalistas”. Mas existe boas razões para desafiar essa suposição de que a dominação de um pequeno número de pessoas ricas seja um aspecto possível em um mercado liberto. Tal dominação é possível somente quando o uso da força e da fraude impede a liberdade econômica.

III. Por que o capitalismo2 e capitalismo3 são inconsistentes com os princípios do mercado liberto

A. Introdução

            O capitalismo2 e o capitalismo3 são ambos inconsistentes com os princípios do mercado liberto: o capitalismo2 porque envolve uma interferência direta com a liberdade de mercado, o capitalismo3 porque depende dessa intervenção – tanto passada quanto atual – e porque bate de frente com o comprometimento geral com a liberdade que está na base da defesa da liberdade de mercado em particular.

B. O Capitalismo2 Envolve Intervenção Direta na Liberdade de Mercado

            O capitalismo2 é claramente inconsistente com o capitalismo1 e, assim, com um mercado liberto. Sob o capitalismo2, políticos interferem com os direitos de propriedade pessoal e com as trocas voluntárias de bens e serviços para enriquecerem a si mesmos e a seus constituintes, e grandes empresas influenciam políticos com objetivo de fomentar interferências com direitos de propriedade e trocas voluntárias para enriquecerem a si mesmas e a seus aliados.

C. O Capitalismo3 Depende de Intervenção Passada e Atual na Liberdade de Mercado

            Existem três maneiras nas quais o capitalismo3 pode ser entendido como inconsistentes com o capitalismo1 e, assim, com um mercado liberto. A primeira depende uma visão plausível, ainda que contestável, sobre a operação dos mercados. Chame essa visão de que Mercados Enfraquecem Privilégios (MEP). De acordo com a MEP, em um mercado liberto, ausentes os tipos de privilégios concedidos aos (normalmente bem conectados) beneficiários do poder estatal sob o capitalismo2, a riqueza seria amplamente distribuída e empresas grandes e hierárquicas se provariam ineficientes e não sobreviveriam.
            Tanto porque a maioria das pessoas não gosta de trabalhar em ambientes de trabalho hierárquicos, quanto porque organizações mais horizontais e ágeis seriam muito mais viáveis do que as imensas e desajeitadas sem o apoio do governo às grandes corporações, a maioria das pessoas em um mercado liberto trabalharia como contratantes independentes ou em parcerias ou cooperativas. Haveria um número bem menor de grandes empresas, aquelas que ainda existissem não seriam tão imensas quanto as gigantes corporativas de hoje, e a riqueza social estaria vastamente dispersa em meio a um vasto número de empresas menores.
            Outros privilégios para os politicamente bem conectados que tendem a tornar e manter as pessoas pobres — pense em licenciamento ocupacional e leis de zoneamento, por exemplo — estariam ausentes em um mercado liberto.[5] Então, as pessoas comuns, mesmo aquelas no parte inferior da escada econômica, teriam uma probabilidade maior de desfrutar de um nível de segurança econômica suficiente que lhes possibilitaria largar um emprego em um ambiente de trabalho desagradável, incluindo grandes empresas. E, já que uma sociedade livre não possuiria um governo com o suposto direito, muito menos a capacidade, de interferir com os direitos pessoais de propriedade e com as trocas voluntárias, aqueles que ocupam o topo da escada social no capitalismo3 não seriam capazes de manipular os políticos para ganhar e manter riqueza e poder em um mercado liberto, de modo que a propriedade sobre os meios de produção não estaria concentrada em algumas poucas mãos.
            Além da contínua intervenção na liberdade de mercado, a MEP sugere que o capitalismo3 não seria possível sem atos passados de injustiça em grande escala. E uma extensa evidência da imensa interferência com os direitos de propriedade e com a liberdade de mercado, interferência essa que levou ao empobrecimento de um enorme número de pessoas, na Inglaterra, nos Estados Unidos e em outros lugares.[6] Defensores de mercados libertos deveriam, assim, contestar o capitalismo3 porque os capitalistas só são capazes de dominar em virtude das violações em grande escala e sancionadas pelo Estado dos direitos de propriedade legítimos.

D.  A Defesa do Capitalismo3 é Inconsistente com a Defesa da Lógica Fundamental da Liberdade

            O capitalismo3 também poderia ser entendido como inconsistente com o capitalismo1 à luz da lógica fundamental da defesa dos mercados libertos. Sem dúvida, algumas pessoas são a favor de direitos pessoais de propriedade e de trocas voluntárias — o capitalismo1 — por sua própria causa, sem tentar integrar a defesa do capitalismo1]em um entendimento mais amplo da vida e da interação social humanas. Para outras, contudo, a defesa do capitalismo1 reflete um princípio subjacente de respeito pela autonomia pessoal e pela dignidade. Aqueles que assumem essa visão — defensores do que eu chamarei de Liberdade Abrangente (LA) — querem ver as pessoas livres para se desenvolverem e florescerem como desejarem, de acordo com suas próprias preferências (desde que elas não agridam aos outros). Proponentes da LA valorizam não apenas a liberdade contra a agressão, mas também a liberdade do tipo de pressão social que as pessoas podem exercer porque elas ou outras se envolveram em agressões ou se beneficiaram delas, assim como a liberdade contra pressões sociais não agressivas, mas irracionais — talvez mesquinhas e arbitrárias — que restringem as opções das pessoas e suas capacidades para moldarem suas vidas como preferirem.
            Valorizar diferentes tipos de liberdade de maneira enfática não é o mesmo que aprovar que os mesmos tipos de soluções usados para agressão sejam usados para esses tipos diferentes de liberdade. Embora a maioria dos defensores da LA não seja pacifista, eles não querem ver argumentos sendo resolvidos à mira de uma arma; eles se opõem inequivocamente à violência agressiva. Então, eles não supõem que indignidades mesquinhas merecem respostas violentas. Ao mesmo tempo, contudo, eles reconhecem que não faz sentido favorecer a liberdade como um valor universal enquanto se trata ataques não-violentos às liberdades das pessoas como triviais. (Desta forma, eles preferem a utilização de uma variedade de respostas não violentas a esses ataques, incluindo humilhação pública, listas negras, greves, protestos, recusa de certificações privadas e boicotes.)[7]
            A LA fornece, então, mais uma razão para se opor ao capitalismo3. A maioria das pessoas comprometidas com a LA acham a MEP muito plausível e, assim, estão inclinadas a pensar sobre o capitalismo3 como um produto do capitalismo2. Mas o entendimento da liberdade como um valor multidimensional que pode estar sujeito a ataques tanto violentos quanto não violentos fornece boas razões para se opor ao capitalismo3, mesmo que — como é muito improvável — ele ocorresse em completo isolamento do capitalismo2.

E. Conclusão

            O capitalismo2 e o capitalismo3 são ambos inconsistentes com os princípios do mercado liberto: o capitalismo2 porque envolve intervenção direta na liberdade de mercado, o capitalismo3 porque depende dessa intervenção — tanto passada quanto atual — e também pela razão de bater de frente com o comprometimento geral com a liberdade que está na base da defesa da liberdade de mercado em particular.

IV. Por que os defensores do mercado liberto deveriam chamar o sistema a que se opõem de “capitalismo”

            Dados os significados contraditórios do termo “capitalismo”, talvez pessoas sensatas devessem evitar sua utilização em geral. Mas "as palavras são conhecidas pelas companhias que mantêm";[8] então, embora certamente eles não devam a utilizar para definir o sistema que elas defendem, existem boas razões para os defensores dos mercados libertos utilizarem essa palavra para aquilo a que se opõem.[9]
            1.         Para Enfatizar a Indesejabilidade Específica do Capitalismo3. Rótulos como “capitalismo de estado” e “corporativismo” capturam o que há de errado com o capitalismo2, mas não atinge profundamente o problema do capitalismo3. Mesmo que, como parece ser plausível, o domínio dos capitalistas necessite de uma explicação política — uma explicação em termos do mau comportamento independente dos políticos e da manipulação dos políticos por líderes empresariais[10] — é válido se opor ao domínio das grandes corporações em adição ao questionamento da simbiose entre empresas e governo. Na medida em que aqueles que possuem e lideram grandes corporações são frequentemente rotulados de “capitalistas”, identificar o que os defensores da liberdade se opõem como “capitalismo” ajuda a evidenciar apropriadamente a crítica ao capitalismo3.
            2.         Para Diferenciar Defensores dos Mercados Libertos de Entusiastas Vulgares do Mercado. A bandeira "capitalista" é frequentemente levantada de forma entusiasta por pessoas que estão inclinadas a confundir o apoio ao livre mercado com apoio ao capitalismo2 e ao capitalismo3 — talvez ignorando a realidade ou a natureza problemática de ambos, talvez até celebrando o capitalismos3 como apropriado sob a luz do suposto caráter admirável dos titãs empresariais. Opor-se ao “capitalismo” ajuda a garantir que os defensores do livre mercado não sejam confundidos com apoiadores vulgares de uma liberdade-em-favor-das-elites-do-poder.
            3.         Para Enfatizar Que o Mercado Liberto Realmente é um Ideal Desconhecido. De maneira similar, considerando a frequência que a ordem econômica contemporânea nas sociedades ocidentais é classificada como “capitalismo”, qualquer um que reconheça a vasta lacuna entre os ideais de liberdade e uma realidade econômica distorcida por privilégios e deformada por atos passados de violenta desapropriação vai ter uma boa razão para se opor ao que é normalmente chamado de capitalismo, ao invés de abraçá-lo.
            4.         Para Desafiar uma Concepção da Economia de Mercado que Trata o Capital como Mais Fundamental que o Trabalho. Múltiplos fatores de produção — incluindo, particularmente, o trabalho — contribuem para a operação de uma economia de mercado. Referir-se a essa economia como "capitalismo" é implicar, incorretamente, que o capital desempenha o papel mais central em uma economia de mercado e que o "capitalista", o proprietário absenteísta da riqueza que pode ser investida, é, em última análise, mais importante do que as pessoas que são as fontes de trabalho. Defensores de mercados libertos deveriam rejeitar essa visão imprecisa.[11]
            5.         Para Reivindicar o "Socialismo" para os Radicais do Mercado Liberto. "Capitalismo" e "socialismo" são caracteristicamente vistos como se formassem um par opositor. Mas era precisamente o rótulo de "socialista" que um proponente radical dos mercados libertos, Benjamin Tucker, tinha na época em que esses termos estavam sendo apaixonadamente debatidos e definidos.[12] Tucker claramente não via nenhum conflito entre seu intenso comprometimento com os mercados libertos e sua afiliação à Primeira Internacional. Isso porque ele entendia o socialismo como uma questão de liberar os trabalhadores da opressão de aristocratas e executivos empresariais e ele — de forma plausível — acreditava que acabar com os privilégios conferidos a elites econômicas pelo estado seria a maneira mais efetiva — e mais segura — de alcançar a meta liberadora do socialismo. Opor-se ao capitalismo ajuda a sublinhar o importante lugar de radicais como Tucker na linhagem do movimento pela liberdade contemporâneo e a fornecer aos atuais defensores da liberdade uma base persuasiva para capturar o rótulo socialista dos socialistas de estado. (Isso é especialmente apropriado porque defensores da liberdade acreditam que a sociedade — pessoas conectadas cooperando livre e voluntariamente — ao invés do estado deveria ser vista como a fonte de soluções para os problemas humanos. Desta forma, pode-se razoavelmente dizer que elas favorecem o socialismo, não como um tipo, mas como uma alternativa ao estatismo.)[13] Abraçar o anti-capitalismo sublinha o fato de que os mercados libertos oferecem uma maneira de alcançar metas socialistas — fomentando o empoderamento dos trabalhadores e a ampla dispersão da propriedade e do controle sobre os meios de produção — usando meios de mercado.[14]
            6.         Para Expressar Solidariedade com os Trabalhadores. Se a MEP está correta, a capacidade das grandes empresas — o "capital" — de maximizar a satisfação de suas preferências mais plenamente do que os trabalhadores são capazes de maximizar a sua satisfação é uma função da simbiose empresas-estado, que é inconsistente com os princípios do mercado liberto. E, por uma questão de defesa da LA, frequentemente há mais razão para ficar do lado dos trabalhadores quando eles estão sendo ameaçados, mesmo que de maneira não agressiva. Na medida em que os chefes a que os trabalhadores se opõem frequentemente são chamados de "capitalistas", de modo que "anti-capitalismo" perece um rótulo natural para sua oposição a esses chefes, e na medida em que os mercados libertos — em contraste com o capitalismo2 e o capitalismo3 — aumentariam dramaticamente as oportunidades para que os trabalhadores simultaneamente moldassem os contornos de suas próprias vidas e experimentassem uma prosperidade e uma segurança econômica maiores, adotar o "anti-capitalismo" é uma maneira de sinalizar claramente solidariedade com os trabalhadores.[15]
            7.         Para Se Identificar com as Preocupações Legítimas do Movimento Anticapitalista Global. Concordar com o "anti-capitalismo" também é uma maneira, mais amplamente, de se identificar com as pessoas comuns ao redor do mundo que expressam sua oposição ao imperialismo, ao poder cada vez maior das corporações multinacionais em suas vidas e à sua crescente vulnerabilidade econômica chamando seu inimigo de "capitalismo". Talvez alguma delas endossem relatos teóricos imprecisos de suas circunstâncias, de acordo com os quais realmente é um sistema de mercados libertos — o capitalismo1 — que deveria ser entendido como estando por trás do que elas opõem. Mas para muitas delas, contestar o "capitalismo" não significa realmente se opor aos mercados libertos; significa usar um rótulo conveniente fornecido por críticos sociais que estão preparados — como os defensores da liberdade muito frequentemente não estão, infelizmente — para se levantar com elas ao desafiar as forças que parecem empenhadas em deformar suas vidas e aquelas dos outros. Defensores da liberdade têm uma oportunidade de ouro de construir um terreno comum com essas pessoas, concordando com elas sobre a injustiça de muitas das circunstâncias que elas confrontam, ao passo em que fornecem uma explicação embasada na liberdade das suas circunstâncias e uma solução para os problemas concomitantes.[16]

V. Conclusão

Trinta e cinco anos atrás, Karl Hess escreveu: "Eu perdi minha fé no capitalismo" e "Eu resisto ao estado-nação capitalista", observando que ele havia se "afast[ado] da religião do capitalismo"[17]. Distinguir três sentidos de "capitalismo" — ordem de mercado, parceria de empresas, e governo e domínio dos capitalistas — ajuda a deixar claro por quê, como Hess, alguém poderia estar consistentemente comprometido com a liberdade ao passo em que exprime uma oposição apaixonada a algo chamado "capitalismo". Faz sentido que os defensores dos mercados libertos se oponham tanto a interferência com a liberdade de mercado por políticos e líderes empresariais quanto ao domínio social (agressivo ou não) dos líderes empresariais. E faz sentido que eles chamem aquilo a que se opõem de "capitalismo". Fazê-lo chama atenção para as raízes radicais do movimento da liberdade, enfatiza o valor de entender a sociedade como uma alternativa ao estado, ressalta a diferença entre o ideal do mercado liberto e a realidade presente, sublinha o fato de que proponentes da liberdade contestam restrições não agressivas à liberdade assim como às agressivas, garante que os defensores da liberdade não sejam confundidos com pessoas que usam a retórica do mercado para sustentar um status quo injusto e expressa solidariedade entre os defensores dos mercados libertos e os trabalhadores — assim como com as pessoas comuns ao redor do mundo que usam "capitalismo" como rótulo abreviado para o sistema mundial que restringe sua liberdade e dificulta suas vidas. Defensores do mercado liberto deveriam adotar o "anti-capitalismo" a fim de encapsular e ressaltar seu comprometimento completo para com a liberdade e sua rejeição de alternativa que usam o discurso da liberdade para ocultar uma aquiescência à exclusão, à subordinação e à privação.[18]

NOTAS
[1] Para "mercados libertos", vide William Gillis, "O Mercado Liberto", cap. 1 (pag-pag), neste volume; para "anti-capitalismo de livre mercado", vide Kevin A. Carson, Mutualist Blog: Free Market Anticapitalism (n.p.) <http://mutualist .blogspot.com> (Dec. 31, 2009)
[2] Compare Charles Johnson, “Anarquistas por La Causa”, Rad Geek People’s Daily (n.p., March 31, 2005) <http://radgeek.com/gt/2005/03/31/anarquistas_por/> (Dec. 31, 2009); Roderick T. Long, “POOTMOP ReduxAustro-Athenian Empire (n.p., June 22, 2009) <http://aaeblog.com/2009/06/22/pootmop-redux/> (Dec. 31, 2009); Fred Foldvary, “When Will Michael Moore Nail Land Speculators?”, The Progress Report (n.p., Oct. 19, 2009) <http://www.progress.org/2009/fold635.htm> (Jan. 18, 2010). "Capitalismo", no terceiro sentido de Johnson se refere ao "trabalho direcionado por um chefe", ao passo que a expressão paralela de Long, "capitalismo-2", denota "controle dos meios de produção por alguém além dos trabalhadores–i.e., por proprietários capitalistas". A proposta paralela de Foldvary é "exploração do trabalho pelos grandes proprietários do capital". Estou inclinado a pensar que muitos daqueles que empregam "capitalismo" no sentido pejorativo pretendem que ele abranja a dominância por capitalistas de todas as instituições sociais e não apenas dos locais de trabalho, embora eles sem dúvida vejam a dominância social e dominância do local de trabalho como conectadas. De qualquer forma, supor que elas estejam fornece uma magra justificativa para distinguir minha tipologia daquelas oferecidas por Johnson, Long e Foldvary. Para uma discussão mais antiga, por parte de um libertário, do caráter inerentemente ambíguo de "capitalismo", vide Clarence B. Carson, “Capitalism: Yes and No”, The Freeman: Ideas on Liberty 35.2 (Feb. 1985): 75-82 (Foundation for Economic Education) <http://www.thefreemanonline.org/columns/ capitalism-yes-and-no> (March 12, 2010); agradecimentos a Sheldon Richman por trazer este artigo à minha atenção.
[3] Ao passo em que o capitalismo2 sempre ocorre quando quer que as empresas e o estado estejam juntos na cama, sob o capitalismo3, as empresas estão claramente por cima.
[4] Não está claro quando a palavra "capitalismo" foi primeiro empregada (o Oxford English Dictionary identifica William Makepeace Thackeray como o primeiro usuário do termo: vide The Newcomes: Memoirs of a Most Respectable Family, 2 vols. [London: Bradbury 1854–5] 2:75). Em contraste, "capitalista" enquanto pejorativo tem uma história mais antiga, aparecendo pelo menos desde 1792 e figurando repetidamente na obra do socialista de livre mercado Thomas Hodgskin: vide, p. ex.,  Popular Political Economy: Four Lectures Delivered at the London Mechanics Institution (London: Tait 1827) 5, 51-2, 120, 121, 126, 138, 171 (“capitalistas gananciosos”!), 238-40, 243, 245-9, 253-7, 265; The Natural and Artificial Right of Property Contrasted: A Series of Letters, Addressed without Permission to H. Brougham, Esq. M.P. F.R.S. (London: Steil 1832) 15, 44, 53, 54, 67, 87, 97-101, 134-5, 150, 155, 180. O uso pejorativo ocorre quase oitenta vezes por todas as trinta e poucas páginas do Labour Defended against the Claims of Capital, or, The Unproductiveness of Capital Proved (London: Knight 1825) de Hodgskin. Também é possível encontrar "capitalista" sendo empregado de maneiras menos do que elogiosas por outro notável liberal clássico: vide John Taylor, Tyranny Unmasked (Washington: Davis 1822).
[5] Para uma crítica devastadora de regras—frequentemente apoiadas por políticos em dívida para com pessoas ricas e bem conectadas que esperam benefícios deles—que sistematicamente tornam e mantêm as pessoas pobres, vide Charles Johnson, “Scratching By: How Government Creates Poverty As We Know It”, The Freeman: Ideas on Liberty 57.10 (Dec. 2007): 33-8 (Foundation for Economic Education) <http://www.thefreemanonline.org/featured/ scratching-by-how-government-creates-poverty-as-we-know-it> (Jan. 2, 2010). [Nota do Tradutor: Versão em português disponível em: <http://liberacaohumana.blogspot.com/2015/06/ segurando-as-pontas-como-o-governo-cria.html>. Acesso em 14 de Jul. de 2018)
[6] Compare Albert Jay Nock, Our Enemy the State (New York: Morrow 1935); Kevin A. Carson, “The Subsidy of History”, The Freeman: Ideas on Liberty 58.5 (June 2008): 33-8 (Foundation for Economic Education) <http://www.thefreemanonline.org/featured/the-subsidy-of-history> (Dec. 31, 2009); Joseph R. Stromberg, “The American Land Question”, The Freeman: Ideas on Liberty 59.6 (July-Aug. 2009): 33-8 (Foundation for Economic Education) <http://www.thefreemanonline. org/featured/the-american-land-question> (Dec. 31, 2009).
[7] Compare Charles Johnson, “Libertarianism through Thick and Thin”, Rad Geek People’s Daily (n.p., Oct. 3, 2008) <http://www.radgeek.com/gt/2008/10/03/libertarianism_through> (Dec. 31, 2009); Kerry Howley, “We’re All Cultural Libertarians”, Reason (Reason Foundation, Nov. 2009) <http://www.reason.com/archives/2009/10/20/are-property-rights-enough> (Dec. 31, 2009).
[8] Eu me familiarizei com essa frase graças a Nicholas Lash, Believing Three Ways in One God: A Reading of the Apostles’ Creed (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press 1992); vide, p. ex., 12. Mas ela parece, subsequentemente eu descobri, ter uma procedência legal e ser uma tradução aproximada da frase latina noscitur a sociis.
[9] Por certo, proponentes dos mercados libertos e, assim, do capitalismo1, poderiam obviamente se referir ao capitalismo2, pelo menos, como "capitalismo de estado", "capitalismo corporativo", "capitalismo realmente existente" ou "corporativismo". Mas fazer isso não deixaria clara sua oposição ao capitalismo3.
[10] Vide, p. ex, Roderick T. Long, “Toward a Libertarian Theory of Class”, Social Philosophy and Policy 15.2 (Sum. 1998): 303-49; Tom G. Palmer, “Classical Liberalism, Marxism, and the Conflict of Classes: The Classical Liberal Theory of Class Conflict”, Realizing Freedom: Libertarian Theory, History, and Practice (Washington: Cato 2009) 255-76; Wally Conger, Agorist Class Theory: A Left Libertarian Approach to Class Conflict Analysis (n.p., n.d.) (Agorism.info, n.d.) <http://www.agorism.info/AgoristClassTheory.pdf> (Jan. 18, 2010); Kevin A. Carson, “Another Free-for All: Libertarian Class Analysis, Organized Labor, Etc.”, Mutualist Blog: Free-Market Anticapitalism (n.p., Jan 26, 2006) <http://www.mutualist.blogspot.com/2006/01/ another-freefor-all-libertarian-class.html> (Jan. 18, 2010); Sheldon Richman, “Class Struggle Rightly Conceived”, The Goal Is Freedom (Foundation for Economic Education, July 13, 2007) <http://www.fee.org/articles/in-brief/the-goal-isfreedom-class-struggle-rightly-conceived> (Jan. 18, 2010); Walter E. Grinder e John Hagel, “Toward a Theory of State Capitalism: Ultimate Decision Making and Class Structure”, Journal of Libertarian Studies 1.1 (1977): 59-79.
[11] Vide Kevin A. Carson, “Capitalism: A Good Word for a Bad Thing”, Center for a Stateless Society <http://www.c4ss.org/content/1992> (Mar. 6, 2010).
[12] Vide Benjamin R. Tucker, “State Socialism and Anarchism: How Far They Agree and Wherein They Differ,” Instead of a Book: By a Man Too Busy to Write One (New York: Tucker 1897) (Fair-Use.Org, n.d.) <http://www.fairuse.org/benjamin-tucker/instead-of-a-book> (Dec. 31, 2009). Cp. Kevin A. Carson, “Socialist Def­initional Free-for-All: Part II,” Mutualist Blog: Free Market Anticapitalism (n.p., Dec. 8, 2005) <http://www.mutualist.blogspot.com/2005/12/socialist- definitional-free-for-all_08.html> (Dec. 31, 2009); Brad Spangler, “Re-Stating the Point: Rothbardian Socialism,” BradSpangler.Com (n.p., Oct. 10, 2009) <http://bradspangler.com/blog/archives/1458> (Dec. 31, 2009); Gary Chartier, Socialist Ends, Market Means: 5 Essays (Tulsa, OK: Tulsa Alliance of the Libertarian Left 2009) (Center for a Stateless Society, Aug. 31, 2009) <http://c4ss.org/wp-content/uploads/2009/08/Garychartier_forprint_binding.pdf> (Dec. 31, 2009).
[13] Agradeço a Sheldon Richman por me ajudar a ver este ponto.
[14] Alex Tabarrok, “Rename Capitalism Socialism?” Marginal Revolution (n.p., jan. 25, 2010) <http://www.marginalrevolution.com/marginalrevolution/2010/01/rename-capitalism-socialism.html> (Feb. 3, 2010), mantém que: "o capitalismo é um sistema verdadeiramente social, um sistema que une o mundo em cooperação, paz e comércio. Desta forma, se tudo fosse tabula rasa, socialismo poderia ser um bom nome para o capitalismo. Mas esse navio já zarpou." Parece-me que Tabarrok não percebeu o ponto do argumento sobre "capitalismo", que é precisamente se o que é regularmente rotulado como "capitalismo" pela maioria das pessoas no mundo realmente é um "sistema verdadeiramente social... que une o mundo em cooperação, paz e comércio".
[15] Compare Sheldon Richman, “Workers of the World Unite for a Free Market,” The Freeman: Ideas on Liberty (Foundation for Economic Education, Dec. 18, 2009) <http://www. thefreemanonline.org/tgif/workers-of-the-world-unite> (Dec. 31, 2009).
[16] "'Se você perguntasse, "O que é anarquismo?" todos discordaríamos', disse Vlad Bliffet, um membro do coletivo que organizava a... [Feira de Livros Anarquistas de Los Angeles de 2010]. Embora a maioria dos anarquistas concorde com o princípio básico de que o mundo seria melhor sem hierarquia e sem capitalismo, ele disse, eles tem teorias concorrentes sobre como alcançar essa mudança" (Kate Linthicum, “Book Fair Draws an Array of Anarchists,” LATimes.Com [Los Angeles Times, Jan. 25, 2010] <http://www.latimes.com/news/local/la-me- anarchists25-2010jan25,0,3735605.story?track=rss> [Jan. 27, 2010]). Dado o foco na oposição à hierarquia no mundo real, suspeito eu, sem evidência, que a objeção primária de Bliffet não era ao capitalismo como um sistema de propriedade e troca no abstrato—o capitalismo1—mas sim à dominância social pelo capitalistas—o capitalismo3. A falha em ver este ponto tenderá a impedir uma aliança de outra forma natural, que foque em questões que vão da guerra à tortura à vigilância às drogas à liberdade de expressão ao corporativismo aos bailouts à descentralização ao alcance do estado administrativo.
[17] Karl Hess, Dear America (New York: Morrow 1975) 3, 5. De maneira ainda mais contundente, Hess escreve: "O que eu aprendi sobre o capitalismo corporativo, a grosso modo, é que ele é um ato de roubo, em geral, através do qual muitos poucos vivem muito alto do trabalho, da invenção e da criatividade de muitos, muitos outros. É a Grande Espoliação de nossa época particular da história, a Grande Espoliação na qual um futuro de liberdade que poderia ter se seguido ao colapso do feudalismo foi roubado sob nossos narizes por um novo bando de chefes fazendo as mesmas velhas coisas" (1). (Complicando a estória há o fato de que Hess subsequentemente escreveu Capitalism for Kids: Growing up to Be Your Own Boss [Wilmington, DE: Enterprise 1987].)
[18] Brian Doherty, “Ayn Rand: Radical for Something Other Than Capitalism?”, Hit and Run: Reason Magazine (Reason Foundation, Jan, 20, 2010) <http://www.reason.com/blog/2010/01/20 /ayn-rand-radical-for-something> (Jan. 21, 2010), relata: "Tenho sido feliz em usar capitalismo no sentido ideal de Rand como aquele que os libertários americanos defendem..., que eu acho que é verdadeiro e não acho que represente um problema intelectual, de marketing ou histórico tão severo quando Long diz...". Doherty opina que Long "é por demais negligente em sua conclusão de que o fato de que a prosperidade ocidental pode ser atribuída à medida em que ela honrou os direitos de propriedade, a livre troca e um sistema de preço merece apenas o status intelectual daquela parte de nossa cultural que 'não está doente'". Não me está muito claro o que significa dizer que "o sentido ideal de Rand... é verdadeiro" (de qual maneira definições ou sentidos são verdadeiros?) e estou inclinado a suspeitar que um grupo de alegações praxeológicas, morais e históricas fornecem um apoio crível para a crítica da esquerda libertária ao "capitalismo" e ao diagnóstico de muito da ordem econômica vigente no Ocidente contemporâneo como doente. (Isso, muito enfaticamente, não equivale a uma avaliação positiva das alternativas realmente existentes.)